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No primeiro dia em que os (antigos ou atuais) estudantes puderam pedir o prémio salarial de valorização das qualificações — a chamada “devolução” de propinas —, Cláudia Fernandes ficou em fila de espera até conseguir submeter a sua candidatura. Preencheu os dados da licenciatura e do mestrado, mas sabia que apenas o segundo seria aceite. Semanas depois foi informada de que, afinal, o pedido tinha sido rejeitado, mesmo cumprindo os requisitos. A jovem não foi a única a deparar-se com o que dizem ser erros ou injustiças no processo de candidatura para o reembolso das propinas. Mais de 91 mil tentaram a sua sorte, mas muitos tiveram o pedido recusado (e alguns nem sequer o conseguiram efetuar). Algumas destas candidaturas estão novamente em análise (sendo que o Governo não adianta números) — mas não se sabe até quando.
Entre 23 de fevereiro e 31 de maio esteve disponível na plataforma ePortugal o formulário para pedir o prémio salarial que ficou conhecido por “devolução” de propinas. No Orçamento do Estado para 2024, ainda no governo de António Costa (que criou a medida), previa-se que o prémio pudesse abranger 250 mil estudantes do Ensino Superior e custar, nesse primeiro ano, cerca de 215 milhões de euros. Até 31 de julho, dos 91.585 pedidos validados pelo Ministério da Educação, a Autoridade Tributária — no âmbito de uma segunda triagem para avaliar se todos os candidatos cumpriam os critérios fiscais — validou 79.578 pedidos.
Prémio salarial: quem recebe, durante quanto tempo e qual o valor?
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Tinham direito a esta oportunidade jovens até aos 35 anos (ou inclusive) que tivessem concluído o grau académico antes de 2023 desde que o número de anos entre o ano em que terminou o curso e 2023 fosse menor que o número de anos de duração desse curso. Além disto, tinham de ser residentes em Portugal, fazer IRS separado dos pais e ter rendimentos próprios.
Quem tirou o curso fora do país também podia pedir a “devolução” das propinas, desde que a formação fosse reconhecida em Portugal. No momento do preenchimento do formulário era necessário indicar o “número único de reconhecimento” do grau académico ou diploma.
Este prémio — depois de aprovada a candidatura pela DGES e pela Autoridade Tributária — será pago anualmente por transferência bancária, não estando sujeito a IRS nem a contribuições para a Segurança Social.
No que toca a valores, o grau de licenciado corresponde a 697 euros por ano e o de mestre a 1500 por ano. Só é possível receber o prémio salarial durante o mesmo tempo de duração do ciclo de estudos. Exemplificando, uma licenciatura de quatro anos, irá equivaler à atribuição de um prémio salarial de 697 euros por ano durante quatro anos.
Foi no final de julho que as respostas começaram a ser emitidas, sendo depois aberta uma janela temporal (até dia 22 de agosto) para quem quisesse preencher a audiência de interessados, uma espécie de reclamação que tinha de ser devidamente fundamentada. O Observador questionou o Ministério da Educação e o Ministério das Finanças sobre quantas pessoas preencheram esta reclamação, mas não obteve resposta.
Excluída por preencher demasiados dados (por engano)
Cláudia Fernandes sabia que não poderia ter direito à “devolução” das propinas investidas na licenciatura que frequentou entre 2017 e 2020, mas sabia que o mestrado que concluiu em dezembro de 2022 era elegível. “Fiz a candidatura no primeiro dia e até havia fila, havia muita gente. Acabei por preencher licenciatura e mestrado, mesmo sabendo que a licenciatura não era elegível”, começa por dizer.
E explica: “O sistema não era suficientemente userfriendly para eu saber que podia candidatar-me só com o mestrado.” Uma vez que a plataforma “pedia dados da licenciatura, preenchi e na minha cabeça não ia haver problema”. Por segurança, conta Cláudia Fernandes, a antiga estudante decidiu verificar que, no email de confirmação que recebeu horas depois, constava a referência ao mestrado em Ciências Forenses.
Os candidatos começaram mais tarde a receber emails com o resultado da candidatura. “E eu, nada”, lembra. “Mais tarde, recebi o email e dizia que [o pedido] tinha sido indeferido, apesar de dizer que o mestrado é elegível”. No total, só por este ciclo de estudos, Cláudia iria receber 3 mil euros (1.500 euros por ano).
“Acho que não faz sentido rejeitarem totalmente [a candidatura], uma vez que eles próprios admitem que é elegível. Podiam ter indeferido parcialmente”, diz. Por acreditar que se tratou de uma injustiça, a jovem preencheu a audiência de interessados, uma espécie de reclamação online na qual o interessado deve apresentar os argumentos pelos quais considera que a decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira não foi a mais adequada.
Entretanto, o processo “mudou de estatuto para ‘em análise’”, mas até ao momento nada se alterou. “Não faço ideia de quando poderão dar-me uma resposta”, diz. Cláudia ainda tentou “ligar para alguém quando rejeitaram”, mas o processo foi tão complicado — com atendedores automáticos — que acabou “por desistir” e virar-se para o digital.
Mas até aí houve problemas em tudo: “Havia problemas de login [na plataforma ePortugal], tive de fazer a candidatura pelo telemóvel e [tive de] mandar também o diploma, apesar de terem acesso. A Chave Móvel Digital (para fazer a autenticação) não funcionava e eu não tinha leitor de cartões… foi imenso trabalho”.
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Registo da candidatura falhou por erro informático
Mas Cláudia não foi a única a apontar o dedo ao portal ePortugal. Catarina Leitão junta-se às vozes críticas, mas por outro motivo: a plataforma não registou a sua candidatura, ficando sem o direito de receber um prémio de mais de 3.500 euros.
“A 14 de maio fiz o registo da candidatura no ePortugal e achei que o assunto estava tratado. Só quando vi que havia gente a receber [a “devolução”] é que fui ver o site e o email e reparei que não tinha nada”, recorda. Afinal, “a plataforma não tinha registado o pedido”.
No momento em que se submete a candidatura na plataforma ePortugal, surge a indicação de que será enviado um email de confirmação (que pode demorar até 24 horas a chegar) e, caso não aconteça, é recomendado que se verifique se o pedido está na área reservada da plataforma. Se não estiver, deve ser submetido novo pedido. Catarina Leitão nunca recebeu este email, mas quando soube que mais colegas estavam na mesma situação, não estranhou: “Muita gente com quem falei disse-me que o pedido ficou registado, mas que também não tinha recebido email. Achei que não seria um problema.”
Quando deu pela falha era dia 22 de agosto e o prazo para novas candidaturas já tinha acabado. “Percebi que o pedido nem chegou à DGES [Direção-Geral do Ensino Superior], o erro foi do portal, que não funcionou. [Nesse dia] andei a ligar para o apoio do ePortugal, tudo por telefone. A própria linha de apoio é confusa, foi tudo por tentativa e erro” até conseguir falar com alguém sobre esta situação, lembra Catarina Leitão.
Uma das pessoas com quem falou explicou à jovem que “a solução era ter tirado um print como comprovativo de que tinha feito o pedido, caso contrário não havia nada a fazer”. O problema é que na plataforma “não havia avisos sobre essa necessidade”. Em resposta, ainda argumentou que, “se [a funcionária] estava a assumir que havia um problema com a plataforma, então [a estudante] não podia ser responsabilizada”, mas nada feito.
Catarina Leitão candidatou-se ao prémio salarial com a licenciatura (realizada entre 2018 e 2021) e o mestrado (entre 2021 e 2023) e ia receber, no mínimo, 3.697 euros. Neste momento, não sabe “como agir”, mas continua a defender que “merecia este valor”, principalmente porque ao longo da sua formação esteve sempre a trabalhar em simultâneo.
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“Era um dinheiro que dava imenso jeito. Já tentei informar-me com ajuda legal, mas sem provas não dá. É uma plataforma que faz um serviço para o Estado, nunca pensei que tivesse de me proteger, [mas] tornou-se uma questão de culpabilização”, diz. E acrescenta que, de acordo com o que ouviu do outro lado da linha de apoio, mais pessoas tiveram este problema.
Segundo Catarina Leitão, a falha teve origem numa incompatibilidade entre a plataforma e dispositivos da Apple. “A plataforma tem lá um aviso a dizer que não posso usar aparelhos da Apple, que há coisas que não são compatíveis, mas na altura não estava lá. Se estivesse eu não ia arriscar com algo tão sério”, garante. A mesma informação foi mais tarde confirmada ao Observador por outro jovem que também ficou fora deste prémio salarial, César Coelho, que confirmou que o aviso — que se encontra após a autenticação na plataforma — só surgiu mais tarde.
Mestrado Integrado recusado (mas não entende porquê)
Além de Catarina, também a arquiteta Raquel Sobral devia já ter recebido a primeira parte do prémio salarial, mas a conclusão que constava do email não era a que esperava. A recusa da candidatura, que resultou da análise da DGES, tinha dois fundamentos — que a jovem ainda não entendeu bem.
Raquel Sobral terminou, em 2020, o Mestrado Integrado em Arquitetura com especialização em Urbanismo na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, uma formação de cinco anos — pelo que deveria receber parte das propinas pagas. A jovem conta que o início do seu mestrado integrado foi em 2013, mas lembra que o que conta é o ano de obtenção do grau académico.
“O primeiro [fundamento da DGES] dizia que a diferença entre o ano de referência (2023) e o ano de obtenção do grau é igual ou superior ao número de anos de duração do curso. Se fiz o mestrado integrado, o meu curso é de cinco anos. Acabei em 2020 e até 2023 são três anos, não cinco”, diz.
Já no segundo fundamento, lê-se que “o grau de mestre indicado não consta nos graus académicos elegíveis e comunicados pela instituição de Ensino Superior referida no formulário”. Neste momento, já “não sei se o problema é do meu mestrado integrado ou da minha faculdade”, afirma Raquel Sobral. E acrescenta que tentar obter qualquer esclarecimento junto da sua instituição de ensino é bastante complexo, pelo que nem tentou ligar para a Faculdade de Arquitetura.
Em vez disso, optou por simular novamente a sua situação no portal ePortugal: “Aí, apareceu o meu curso, preenchi tudo e dizia que ia receber a ‘devolução’”. Agora, resta a Raquel Sobral esperar pela decisão que surgirá em virtude do preenchimento da audiência de interessados (que, tal como Cláudia Fernandes, não sabe quando irá chegar).
Rejeição com base numa “dualidade de tratamento”
Menos sorte teve César Coelho, que também estudou cinco anos, mas não fez Mestrado Integrado, o que levou a que o seu pedido fosse igualmente recusado. Quando o Governo anunciou a medida, logo começaram a surgir problemas relacionados com a injustiça que se ia fazer sentir: quem fez Mestrado Integrado teria mais benefícios que aqueles que fizeram Licenciatura seguida de Mestrado.
Isto porque, de acordo com a portaria que regulamenta o procedimento do prémio salarial, o candidato pode usufruir da “devolução” desde que o número de anos decorridos entre o ano da obtenção do grau académico (neste caso 2021) e o ano de 2023, seja menor que a duração do ciclo de estudos (que em caso de Mestrados Integrados é de cinco anos).
O jovem licenciou-se na Universidade de Aveiro, em Gestão Autárquica (agora denominado Gestão Pública), que frequentou entre 2016 e 2019. Depois “optei por entrar logo esse ano no Mestrado”, nomeadamente Gestão na Universidade Católica Portuguesa, que concluiu no verão 2021.
“Não é comum haver Mestrado Integrado em Gestão”, diz. Na verdade, são poucos os Mestrados Integrados que o país tem para oferecer. De acordo com a DGES, para o ano letivo que agora se inicia, apenas 66 formações se inserem neste tipo, nas áreas de: Arquitetura; Arquitetura e Urbanismo; Arquitetura, na área de especialização em Interiores e Reabilitação do Edificado; Ciência Farmacêuticas; Ciências Militares (na especialidade de Fuzileiro, Marinha, Artilharia, Cavalaria, Infantaria e Segurança); Medicina, Medicina Dentária e Medicina Veterinária.
A formação foi “bastante cara”, admite, mas quando soube da oportunidade de obter pelo menos parte do investimento de volta, essa possibilidade fez César Coelho pensar: “Ao menos vou ter reembolso, faz sentido.” Mas agora “fica aqui um amargo, porque fiquei a estudar o mesmo tempo dos outros e é uma injustiça, porque no mesmo intervalo temporal a pessoa está a estudar o mesmo e investe o mesmo”.
O jovem alega que “esta dualidade de tratamento” põe em causa o princípio da igualdade, motivo pelo qual, esperançoso, preencheu a audiência de interessados. “Tive bastantes problemas, a plataforma ia abaixo, havia problemas com a Apple e houve alguma frustração”, começou por contar. “Disse que o meu tempo de estudos vai ao encontro do tempo dos mestrados integrados, apresentei o certificado de conclusão da licenciatura e o diploma do mestrado. Agora está em análise, mas espero que a resposta seja positiva.”