Uma greve “cruel”, “estranha” e “não aceitável”; um “problema nacional”, “extremo” e “preocupante”; e uma falta de “bom senso” e de “consciência”. As críticas vão ganhando volume à medida que crescem os números de cirurgias adiadas nos cinco principais centros hospitalares do país. Até esta quarta-feira, estima-se que possam ter sido cerca de 7.500.
Parados até 31 de dezembro, os enfermeiros preparam já mais uma greve —sem o apoio do sindicato mais representativo (que fala em “greve populista”) e mesmo depois de o Governo dizer que não se senta à mesa das negociações enquanto não voltarem todos ao trabalho.
Até agora, estão a ser cumpridos apenas os serviços mínimos. Cirurgias programadas e consideradas não urgentes, são inevitavelmente adiadas — mesmo na pediatria. E ninguém parece disposto a ceder. O que explica a eficácia desta greve? E como foi cirurgicamente pensada para durar o tempo que for preciso — com consequências extremas?
Máximo impacto com o mínimo de perdas no vencimento
O descontentamento dos enfermeiros não é de agora — dura, pelo menos, desde 2009. Ouve-se nas ruas e nos corredores dos hospitais e centros de saúde, mas também no Facebook. O grupo dos enfermeiros naquela rede social tem mais de 40 mil participantes e foi aí que nasceu a ideia da greve mais longa que já fizeram.
De uma publicação que foi muito bem recebida pela comunidade, a um grupo de WhatsApp que excedeu a lotação, os enfermeiros estavam cheios de ideias para um novo protesto — e diferente dos anteriores. Os membros mais ativos criaram, então, um grupo mais pequeno, uns saíram, outros entraram, mas a ideia manteve-se: a Greve Cirúrgica começava, assim, a ganhar forma.
O desejo era ter uma paralisação por tempo indeterminado. Acabaram por ter uma greve prolongada — de 22 de novembro a 31 de dezembro, com possibilidade de ser alargada por mais 45 dias ou tantos quantos forem precisos.
Claro que era preciso garantir uma adesão que justificasse o esforço, com a garantia de que ninguém ia desistir. E, para isso, primeiro era preciso perceber se os colegas estavam dispostos a contribuir para um fundo social que apoiasse os grevistas. Depois, era preciso saber se os enfermeiros dos blocos operatórios estavam disponíveis para fazer greve e se queriam servir de elos de ligação dentro dos hospitais, conta ao Observador Catarina Barbosa, uma das enfermeiras do grupo de cinco que lançou a Greve Cirúrgica. “Tivemos um feedback muito positivo.” Até os colegas emigrados quiseram contribuir com donativos.
No dia 10 de outubro, o grupo lançou, assim, uma campanha de angariação de fundos, no site PPL, para viabilizar o protesto. O que queriam era garantir que conseguiam ter a maior adesão possível, por um período de tempo alargado, com o mínimo de perda remuneratória para os enfermeiros, como o próprio movimento afirmava. Já tinham contactado todos os sindicatos, mas só tinham recebido apoio de dois — o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) e a Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) — ambos criados em 2017. Ainda assim, apoio não significava que houvesse garantias de que os sindicatos avançassem com o pré-aviso de greve.
O grupo arriscou — mesmo sem o apoio da Federação Nacional do Sindicatos dos Enfermeiros (FENSE). “É uma greve populista que nasceu fora das estruturas por um grupo anónimo”, diz ao Observador José Azevedo, presidente do Sindicato dos Enfermeiros, um dos dois sindicatos representados na federação. Além disso, as negociações entre a FENSE e o Governo estavam bem encaminhadas, garante José Azevedo — o que afastava o cenário de greve, pelo menos no imediato.
Ao fim de 17 dias, a campanha da Greve Cirúrgica já tinha conseguido angariar 50% do valor necessário. Mas os promotores estavam preocupados que a campanha chegasse ao fim sem se ter atingido os 300 mil euros — que implicaria a devolução de todo o dinheiro doado. Não foi preciso esperar pelo final do prazo — cinco dias depois, a campanha já tinha o valor pedido e ainda lhe sobrava quase duas semanas para continuar a juntar dinheiro. No final, tinham conseguido 360.297 euros, de 14.415 apoiantes — uma média de 25 euros por pessoa.
A definição do valor também não foi deixada ao acaso. O grupo já tinha feito contas a quanto dinheiro poderia precisar para apoiar os colegas que quisessem fazer greve. “Quando decidimos o valor do crowdfunding já tínhamos tudo preparado.” Catarina Barbosa garante que o dinheiro é suficiente para pagar a todos os colegas que se inscreveram para beneficiar do fundo, mas não quis dizer quantos são.
Alfredo Preto, sindicalista no Sindepor, diz ao Observador que os enfermeiros em greve não chegam aos dois mil. Mas nem todos precisam de recorrer ao fundo, conforme explica Catarina Barbosa. Alguns só faltaram ao trabalho dois ou três dias e abdicaram dessa compensação, outros estão em greve, mas como estão escalados para os serviços mínimos são pagos pela entidade patronal. É o caso desta enfermeira, que trabalha no bloco operatório do Centro Materno-Infantil do Norte (Porto). Quem precisar, vai receber do fundo de 42 euros por cada dia de greve, mediante a apresentação da folha de vencimento com os dias descontados.
Sobre a origem do dinheiro doado, Catarina Barbosa rejeita as acusações de que tenha vindo de empresas ou de hospitais privados, alegadamente interessados em criar o caos no Serviço Nacional de Saúde, em benefício próprio. “As pessoas que têm contribuído são pessoas individuais”, diz. Os valores máximos recebidos de cada vez situam-se na casa dos 100 euros. As exceções são os serviços dos hospitais que se juntaram e depositaram o dinheiro em conjunto — aí pode ter chegado aos mil ou 1.200 euros, afirma.
A segunda campanha — Greve Cirúrgica 2 — foi lançada esta terça-feira, e pretende angariar 400 mil euros. O objetivo é ter 45 dias de greve em 2019, mas ainda não está definido em quantos centros hospitalares, nem que centros serão escolhidos. Em dois dias, a campanha já juntou mais de 20 mil euros e tem mais 33 dias pela frente.
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Greve só às cirurgias — e só em cinco hospitais
“A ideia inicial sempre foram os blocos operatório”, diz Catarina Barbosa. Para os enfermeiros era claro: são os blocos operatórios que fazem entrar dinheiro nos hospitais e bloqueá-los é fazer secar a fonte. Essa seria a única maneira de colocar os administradores hospitalares a enfrentar a tutela. “A nossa perspetiva estratégica é pressionar a tutela, não sacrificar os doentes”, diz a enfermeira. Mesmo que, para isso, milhares estejam a ver as suas cirurgias adiadas.
Esta não é a primeira vez que os enfermeiros param, nem que há cirurgias canceladas, mas nenhuma outra greve teve um impacto igual. O segredo estará no facto de ser limitada a um serviço específico, por estar a ter uma grande adesão — 95% diz a bastonária da Ordem dos Enfermeiros — e pela duração. Além disso, há um apelo a que a Greve Cirúrgica seja estendida às cirurgias extraordinárias, feitas aos sábados de forma voluntária — mas pagas a peso de ouro —, integradas nos programas especiais de combate às listas de espera.
Escolhido o serviço, a proposta do grupo era que a greve se realizasse em três hospitais centrais — Centro Hospitalar São João (Porto), Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e Centro Hospitalar Lisboa Norte. Parecem poucos, mas só por si já era uma medida suficientemente inovadora e difícil de implementar, assumia o grupo de enfermeiros. O pré-aviso foi lançado para iniciar a greve 8 de novembro, mas os 10 dias úteis à justa fizeram com que houvesse quem questionasse a legalidade da paralisação. “Uma fonte do setor”, diz Catarina Barbosa, citando (e criticando) a informação avançada pelo Diário de Notícias.
Para não correrem o risco de terem falta injustificadas, como tinha acontecido no ano anterior, decidiram cancelar esta greve e anunciar outra uns dias mais tarde, com uma ameaça: “Já que mexeram connosco, vamos ser mais agressivos”, conta a enfermeira. E foi assim que o Centro Hospitalar e Universitário do Porto e Centro Hospitalar de Setúbal se juntaram à lista de hospitais em greve.
As contas tinham sido feitas para apoiar os colegas de três hospitais, não de cinco, mas “Setúbal tem poucos enfermeiros” e “no Santo António do Porto basta que um terço dos enfermeiros faça greve para bloquear o serviço”, conta Catarina Barbosa. O fundo beneficiou ainda do facto de existirem serviços mínimos alargados, porque quem está de greve, mas a cumprir serviços mínimos recebe o dia normalmente. Não só os serviços mínimos decretados pelo tribunal arbitral foram muitos, como os sindicatos negociaram com as administrações de todos os hospitais para duplicarem esses serviços, conta Alfredo Preto.
“O Hospital de Santa Maria foi o único que não quis negociar”, diz Catarina Barbosa. Carlos Ramalho, presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor), acrescenta uma crítica a esta unidade hospitalar: “O Centro Hospitalar de Lisboa Norte podia ter-se reorganizado e transferido as cirurgias para outras unidades, mas não o fez”. Ainda assim, Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, diz que teve a garantia dos cinco enfermeiros diretores, dos cinco centros hospitalares, que em nenhuma situação tinha sido colocada em risco a vida dos doentes.
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Um dos pontos que tem feito a greve funcionar tão bem é que o movimento e, consequentemente, os sindicatos, têm elos de ligação dentro dos hospitais, que lhes vão fornecendo informações sobre como estão a decorrer as greves em cada local.
Outro, é que os enfermeiros estão ligados à greve, não aos sindicatos, como lembra Alfredo Preto. Isto quer dizer que os enfermeiros em greve podem pertencer ou não a um sindicato. Os que pertencem, muito provavelmente serão associados do Sindicato dos Enfermeiros — o mais representativo do setor, com mais de 10 mil enfermeiros (em todos os serviços) —, apesar de esta organização não aprovar a paralisação.
Muitos deles estarão, por isso, a mudar de sindicato, para aquele que apoiaram o protesto. Carlos Ramalho diz que os enfermeiros estão descontentes com as plataformas tradicionais e veem no Sindepor e na ASPE uma alternativa de representação. “As pessoas reveem-se num sindicato que tem outra perspetiva das coisas.”
As negociações que terminaram sem chegarem ao fim
Os enfermeiros tinham, em 1991, uma carreira com cinco categorias, mas em 2009 foram negociadas apenas duas categorias. Não fosse isso suficientemente mau, na opinião dos enfermeiros, o pior é que uma delas nunca chegou a ser implementada. Trata-se da categoria de enfermeiros principais, que incluiria os chefes, supervisores e especialistas. Além disso, há enfermeiros com contratos diferentes para as mesmas funções, o descongelamento das progressões não está a ser feito de forma justa e o subsídio do enfermeiro-especialista não está a ser dado a todos os enfermeiros que teriam o direito de o receber, acrescenta ao Observador Carlos Ramalho, presidente do Sindepor.
As negociações entre os sindicatos e o Ministério da Saúde começaram ainda com Adalberto Campos Fernandes. “O anterior ministro disse que as reivindicações eram justas, mas que o entrave era o Ministério das Finanças”, conta Alfredo Preto, do Sindepor. No entanto, no mesmo período, foram negociadas as carreiras de outros grupos profissionais na área da saúde, como a dos farmacêuticos, contesta o sindicalista. A justificação para deixar os enfermeiros de fora é a de que seriam muitos, diz.
O Sindepor quer discutir com o Governo os estatutos da carreira, progressões feitas da mesma forma para todos e contratos individuais de trabalho com os mesmos direitos de quem contratos de trabalho em funções públicas. Mas Alfredo Preto diz que o Governo tem dificuldade em ouvir. “Se se consultar as atas das 30 reuniões em que estivemos presentes, vê-se que são praticamente iguais: o Governo chega e diz que não tem nada de novo para propor.” A bastonária da Ordem dos Enfermeiros confirma que a proposta do Governo não foi assinada pelos sindicatos. “Não era uma proposta séria. É o que se tem desde 2009.” E, desde então, as condições de trabalho só se degradaram, lamenta Ana Rita Cavaco.
A Federação Nacional do Sindicatos dos Enfermeiros tem tido mais sucesso nas negociações que iniciou em agosto do ano passado. José Azevedo, presidente do Sindicato dos Enfermeiros, diz que já conseguiram que o acordo coletivo de trabalho se aplicasse a todos os enfermeiros do serviço nacional de saúde e que se definissem três categorias na carreira profissional — enfermeiro, enfermeiro-especialista e enfermeiro-diretor. Os profissionais de categorias distintas teriam funções diferentes, assim como teriam uma formação distinta para as desempenhar e, naturalmente, remunerações ajustadas. Neste momento, mesmo quem tem formação complementar e é especializado está integrado na categoria de enfermeiro.
Embora partilhem algumas exigências, a FENSE e o Sindepor não concordam na forma de as resolver. Foi por isso que, embora tivessem estado sentados à mesma mesa negocial, optaram por se separar. Apesar das divergências, estes sindicatos apontam o dedo a todos os governos e ao sucessivo desinvestimento no serviço nacional de saúde. “Tudo tem sido feito para descredibilizar o setor público e privilegiar o privado”, diz Alfredo Preto. “A greve só veio evidenciar as fragilidades do serviço nacional de saúde”, acrescenta Carlos Ramalho.
Ministra admite recorrer a privados para realizar cirurgias adiadas
Enfermeiros e sindicatos dizem que está nas mãos do Governo decidir quando acaba a greve. E a Ordem está disponível para mediar as negociações, diz a Bastonária. Mas a ministra da Saúde, Marta Temido, já disse que não fala com os grevistas. Ao Observador, o gabinete da ministra sublinha que é esta a postura assumida pelo Governo — embora a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, tenha aberto uma exceção com os estivadores. Uma exceção que os enfermeiros não se cansam de lembrar.
Solução está nos privados?
A mais de duas semanas do fim da greve atual — e com uma nova paralisação longa já a ser preparada — o Ministério da Saúde continua à procura de soluções para atenuar os efeitos do protesto. A ministra, Marta Temido, diz que a prioridade, para já, é tentar que “todas as cirurgias que neste momento não estão a ser realizadas possam ser reagendadas no mais curto prazo possível”. Haverá, ainda, a tentativa de conseguir que, “ainda dentro do período da greve, algumas das cirurgias que não correspondem ao padrão de serviços mínimos” possam ser realizadas.
Nas declarações feitas na terça-feira, à margem da sessão de encerramento das comemorações dos 20 anos da Ordem dos Médicos Dentistas, Marta Temido admitia ainda um plano C — começar a enviar alguns doentes para os hospitais privados, da lista dos 7.500 que se estima que, por esta altura, podem já ter visto as suas cirurgias adiadas. “Temos tido alguma colaboração dos piquetes de greve no sentido do alargamento de salas para alguns casos específicos ou para que essas cirurgias possam ser realizadas noutros hospitais, preferencialmente do Serviço Nacional de Saúde”, mas “se for necessário também com hospitais privados”, explicou.
Mas isso, sublinha a ministra, não pode ser a regra, porque uma greve dos enfermeiros não pode servir para promover o setor privado “Este tipo de movimento, que tem por objetivo a defesa de reivindicações dos trabalhadores, não pode dar azo a algo relativamente ao qual certamente todos temos algumas reservas que é a questão de reforçar o setor privado, que tem o seu espaço próprio, em detrimento de uma fragilidade aparente, criada, do serviço público.”
A acontecer, servirá para engrossar a lista, cada vez maior, de doentes enviados para os hospitais privados, por incapacidade de resposta do SNS — e o valor da dívida do Estado por esses serviços. Nos primeiros sete meses do ano, o número de vales-cirugia já tinha ultrapassado o total emitido em 2017 e as dificuldades para pagar as dívidas aos privados iam crescendo. Segundo o Expresso, em outubro eram já mais de 40 milhões de euros, com pagamentos a demorarem, em alguns casos, cerca de dois anos.
Na preparação deste artigo, o Observador tentou falar com o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), mas não foi possível obter declarações dos seus dirigentes.
Correção: os contratos individuais de trabalho também dizem respeito ao setor público, mas são diferentes dos contratos de trabalho em funções públicas. Têm as mesmas funções, mas direitos diferentes.