“Para gastares dinheiro, tens de ganhar dinheiro”. O pai de Harneet Baweja, natural de Calcutá, disse-lhe aos 18 anos aquilo que tantos outros educadores, muito ou nada abastados, se esforçam por transmitir aos filhos. As lapalissadas são nesta fase importantes, não fossem tantas vezes o pontapé de saída oficial para aprender a lidar com a inevitabilidade (e imprevisibilidade) que, fora da asa da família, toca à grande maioria.
Cassete rebobina para a frente e em novembro de 2022 entramos no número 13 da Rua Nova da Trindade, no Chiado, em Lisboa, para vermos os frutos da máxima aplicada: estamos nas vésperas da abertura do terceiro Gunpoweder de Harneet Baweja (à frente, temos o próprio, enérgico e bom disposto), uma espécie de portal mágico, que nos transporta para sabores distantes da costa sudoeste da Índia, começando em Bombaim, rumando a Goa e seguindo caminho, rumo ao sul. Provamos as influências das até então desconhecidas culturas Konkani e Malavini. Estamos num restaurante indiano — “progressivo” e “nostálgico” —, diferente de todos aqueles que conhecemos.
As chamuças, o tikka masala ou o naan dão lugar a outras delícias, que se concentram numa carta que destaca o bom marisco português, aplicando-lhe sabores, texturas e as formas da costa de Goa: caranguejo com ovos bhurji mexidos (11€), brócolos grelhados com mostarda de Malai (8€), a super-vencedora tosta de camarão CPC (8€), que é uma memória da sua infância dos tempos em que o pai era presidente do Calcutá Punjab Club.
1 Gunpoweder, 2 Gunpoweder, 3 Gunpowder
O primeiro Gunpoweder abriu em 2015, em Spitalfields, sem a expectativa de se transformar na casa badalada que hoje é na cena londrina. “Cozinhávamos com o que queríamos”, diz, atirando como exemplos o borrego, peixe, os “bons produtos”. Apesar da reduzida dimensão daquele espaço, rapidamente as filas começaram a formar-se à porta — nelas viam-se algumas celebridades bem conhecidas. Captando também o olhar atento dos críticos, dois anos depois recebeu um Bib Gourmand, distinção do Guia Michelin para os espaços com a melhor relação qualidade/preço.
Tudo aconteceu porque Harneet Baweja decidiu regressar ao caminho da cozinha, sem a ambição de se tornar num grande chef, mas com a vontade de dar a conhecer os sabores da sua infância à cidade onde a comida indiana era toda igual. Aos 18 anos, quando o pai o introduziu à máxima de que para se gastar é preciso ganhar, cozinhou num hotel em Calcutá, mas, pelos mesmos motivos, foi dissuadido de seguir o caminho que tanto lhe tinha agradado. Um curso em Gestão (frequentado e concluído em Manila, nas Filipinas) seria economicamente mais promissor. Por esse setor se foi mantendo, até casar com Devina (também a sua parceira de todos os negócios) e mudar-se para Londres, capital que, desde há muito tempo lhe era bem conhecida, não tivessem lá os pais uma casa.
Desencantado com o mundo do fato e gravata, regressou à cozinha para pensar e reprogramar a vida. É lá que encontra calma, apesar do rótulo contrario que lhe é frequentemente atribuído. “Quando estamos a descascar 11 quilos de gengibre, não pensamos em quem será o próximo presidente do Brasil ou o que é que ele vai fazer com a Amazónia.” Decidiu-se a apostar naquilo que, mais do que dinheiro, lhe trazia a felicidade, e acabou por ganhar os dois.
Em 2018 abre o segundo Gunpowder em Tower Bridge (no primeiro dia, tiveram uma fila à porta de 900 pessoas) e em 2020 o terceiro, agora no Soho. Pelo meio, dois projetos falhados (o Madame D e o Gul and Sepoy) que o ensinaram a “ser melhor profissional” e a “desacelerar”.
Não o suficiente para dois anos depois chegar a Lisboa. A cidade, explica, já é para si uma segunda casa, não fosse o surf uma das suas atividades preferidas. O mar tem nele um efeito semelhante ao da cozinha, dá a entender.
Ostras com molho moilee, caranguejo crocante e um donut de borrego
Harneet deixa claro: o menu que ali provamos não é típico de uma cidade ou de um país em exclusivo. “Não existe comida indiana, da mesma forma que não existe cozinha europeia”. Isto porque — e é até possível fazer o paralelo em Portugal — a gastronomia de um país ou cidade não é hermética, imprimindo influências das regiões circundantes.
Contrariamente aos Gunpowders ingleses, onde a presença de carne é mais expressiva (ainda que haja planos para fazer alterações), na versão lisboeta do indiano progressivo o marisco é rei, muitas vezes adaptado aos hábitos (e possibilidades) portuguesas.
Porque a comida tem sempre História, saímos desta refeição mais sabedores. Harneet Baweja explica-nos que as especiarias são o elemento que atribui o sabor típico às comidas da sua terra, mas cuja utilização nasce da funcionalidade: estes temperos têm muitas vezes propriedades antibacterianas que, aliadas aos molhos, a técnicas de cura e cozimento especificas, purificam e neutralizam a proteína animal. A curcuma é um exemplo disto, explica. Uma forma de fazer frente às impurezas dos animais selvagens, particularmente importante num país de clima extremamente quente.
As ostras algarvias chegam-nos à mesa nas grandes e irregulares conchas, com molho moilee (4€), composto por leite de coco, marisco e curcuma, mas na Índia come-se de outra forma: as ostras não vêm em conchas. Este é um exemplo da adaptação do Gunpowder aos hábitos locais.
Jeera em indiano significa cominhos e aloo significa batatas. O jeera aloo gratin (7€) é, assim, um gratinado de batata com especiarias indianas, incluindo cominhos, servido com pasta de ovas de peixe fresco, grão-de-bico ou pão esfarelado.
O caranguejo de casca mole karwari (18€) é servido inteiro, frito e crocante, coberto com molho vermelho (com um toque picante) e é outra escolha a não perder de vista na carta. Já a santola com ovos mexidos bhurji representa mais uma interpretação indiana do marisco, aqui temperado com gengibre, especiarias e cebola e recheado com ovos mexidos bhurji.
Apesar do festim de produtos do mar, na carta encontra duas opões com carne, incluindo o vermicelli doughnut (8€), prato de assinatura composto por uma casca de aletria crocante, recheada com borrego picante.
No campo dos vinhos, a cargo do sommelier Diogo Catarino, encontra uma seleção composta por entre 25 a 30% de vinhos portugueses mais exclusivos, pretendendo-se ainda chegar aos 20% de vinhos naturais.
O restaurante tem 70 lugares, 12 na esplanada, 33 no rés-do-chão (sete ao balcão, virados para a cozinha aberta) e 30 no primeiro andar, distribuídos por uma sala com vista para o Convento da Trindade e pela garrafeira que, pensada para uma refeição mais intimista, tem mais oito lugares. Já pode reservar.
O Gunpowder abriu portas esta sexta-feira, 25 de novembro, em Lisboa. Está aberto de segunda-feira a domingo, do 12h às 16h e das 19h à 00h. Reservas através do emaillisboa@gunpowderrestaurants.com e do número 218 227 470.