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Texto e fotografias dos enviados do Observador à Ucrânia, Carlos Diogo Santos e João Porfírio
“Pode tirar a máscara para eles conseguirem tirar fotos com este enquadramento?” António Guterres estava a pé, a poucos metros do hotel Hyatt Regency — o 5 estrelas no centro de Kiev onde está hospedado — quando rejeitou o pedido do assessor: “Mas eu ando sempre de máscara…” E continuou, tal como estava até aí. Eram 20h (18h em Lisboa) e percorria a pé os 350 metros que separam o Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas e a Catedral de Santa Sofia de Kiev. O secretário-geral da ONU, acabado de chegar à capital ucraniana após 10 horas de carro desde Lviv, na fronteira com a Polónia, já tinha dado uma conferência de imprensa aos jornalistas portugueses (no terraço do Hyatt Regency), saído para um compromisso numa unidade hoteleira a poucos metros e estava a regressar para o seu quarto. “Esta praça é tão bonita”, disse enquanto apontava para Praça Sofia.
O staff que acompanhava Guterres era curto e o número de seguranças também (quatro das Nações Unidas e uma dezena de militares do Exército ucraniano), não impossibilitando sequer os jornalistas de fotografar e questionarem o secretário-geral da ONU. Mas Guterres preferiu ficar-se pelo que já tinha dito minutos antes, no 8º piso do seu hotel.
[O resgate de Azovstal e a “humildade” da diplomacia. Declarações de Guterres em Kiev na íntegra]
O acordo com o presidente russo e as incertezas
Às 19h locais — tinham tocado há alguns minutos as sirenes a alertar para o perigo de um ataque aéreo — António Guterres entrara no terraço descoberto e subira um dos dois degraus de madeira que foram colocados de improviso à frente das câmaras para o colocar numa espécie de mini plataforma. Estavam perto de uma dezena de jornalistas, um esquema de segurança ainda menos apertado, e a primeira pergunta foi sobre a reunião de terça-feira com Vladimir Putin, em Moscovo.
Guterres respondeu de imediato. “Houve um acordo de princípio com o Presidente Putin, ficou acordado que os detalhes seriam discutidos em reuniões que estão a decorrer neste momento”. As negociações em curso referidas por António Guterres envolvem não só o ministério da Defesa russo, as autoridades ucranianas, bem como as Nações Unidas e o CCR (Centro de Solidariedade para Refugiados) e têm o objetivo de “ver as modalidades concretas para a evacuação” de Mariupol. Uma evacuação que o secretário-geral da ONU não tem dúvidas de que “é muito complexa”.
“Esta operação é em relação a Azovstal. Nós esperamos que se encontre uma solução de acordo entre todos para que se possa realizar uma operação humanitária que tem um valor extraordinário“, disse, acrescentando: “Imaginem o que é um conjunto de mulheres e crianças em bunkers, no escuro, desprovidos de tudo e no meio de uma guerra. É a prioridade das prioridades. Era assim entendido pelo governo ucraniano, é assim entendido por nós”.
Não escondendo que o seu objetivo é conseguir que esta operação fosse levada a cabo esta sexta-feira, Guterres fez a ressalva de que é preciso que as condições estejam criadas: “Não posso garantir porque estamos ainda a discutir as modalidades”.
Ainda assim, garantiu, “há uma disponibilidade para, em geral, se discutirem corredores” e “há vários corredores que já foram abertos”. Corredores esses que são “mais simples, desde que haja a possibilidade de cessarem as hostilidades por um certo período numa determinada zona”. Guterres focou, aliás, por diversas vezes a complexidade acrescida de Mariupol, sobretudo, “porque não se trata de pessoas que estão nas suas casas ou em sítios públicos de cidades para serem evacuadas”: “Trata-se de pessoas que estão dentro de uma fortaleza subterrânea em condições verdadeiramente dramáticas”.
Guterres disse em frente às câmaras da televisão russa: “É uma invasão”
O secretário-geral das Nações Unidas também aproveitou a chegada a Kiev para deixar claro que nunca estiveram envoltas em segredo quais as posições que defende: “Eu disse em Moscovo, ao lado do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Lavrov, e disse em Moscovo ao Presidente Putin, com a televisão russa a filmar, que para nós esta era uma invasão da Ucrânia pela Federação Russa. E que esta invasão era contrária à Carta das Nações Unidas, que ela violava a integridade territorial da Ucrânia e que esta guerra deveria acabar o mais cedo possível”.
António Guterres lembrou igualmente que outras vozes se têm levantado pelo mundo inteiro, incluindo a do Papa Francisco, sem que até agora tenha sido possível “um cessar-fogo completo nesta região”. Sem que se tenha conseguido que as negociações políticas possam decorrer após esse cessar-fogo. E daí a relevância destas reuniões neste momento em concreto. “Dado que a questão de Mariupol estava completamente paralisada, foi muito importante poder ter com o Presidente Putin uma conversa séria sobre a necessidade desta operação, e esperemos, obtido o acordo de princípio, que seja possível encontrar as modalidades práticas que, simultaneamente, satisfaçam as autoridades russas, as autoridades ucranianas e os nossos princípios”.
Isso não significa, porém, que tenha atingido todos os objetivos que levou consigo para Moscovo: “Nunca são conseguidos todos os objetivos”.
A “humildade” de “um mensageiro” que não consegue mudar Putin
O que Guterres foi fazer a Moscovo foi dar um contributo, disse estar ciente disso, até porque já sabia que dificilmente faria com que Putin mudasse de ideias. “Quantas e quantas pessoas visitaram o Presidente Putin? Quantas e quantas pessoas falaram com o Presidente Putin? Eu tenho a humildade de entender que posso dar um contributo. Mas tenho também a humildade de perceber que não consigo chegar a uma sala e convencer, de repente, o Presidente Putin de tudo aquilo em que eu acredito, mas que não corresponde, de todo, à posição que a Federação Russa tem nesta questão”.
Por todos esses motivos, no terraço do hotel, perante a imprensa portuguesa, o secretário-geral da ONU assumiu como objetivo principal da sua intervenção ser “mensageiro de paz e tentar ajudar a resolver alguns dos problemas mais difíceis, problemas pendentes”. E contrariou todas as críticas que têm sido feitas sobre a ausência de uma intervenção efetiva: “A intervenção da ONU tem sido permanente. Nós temos 1.400 pessoas a trabalhar na Ucrânia. Mais de 3 milhões de ucranianos já receberam apoio humanitário por parte das Nações Unidas”.
E disse mesmo que estas reuniões não marcam qualquer alteração de postura face à que tem tido até aqui: “Entendi que este era o momento em que, na minha apreciação das dificuldades que se estão a atravessar com uma batalha tremenda no leste da Ucrânia, falhado o apelo para um cessar-fogo pela Páscoa, que este era o momento de fazer um esforço ainda mais visível e, por isso, escrevi aos presidentes da Ucrânia e da Rússia”.
As palavras de Lavrov que Guterres não viu como ameaça
Nas últimas horas, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo disse que o risco de uma guerra nuclear “é real e não pode ser subestimado”. Mas Guterres acredita que não se tratou de “uma ameaça”. “Todos nós temos de trabalhar para que uma hipótese dessas seja uma hipótese completamente impensável nas nossas sociedades”, disse, salientando que “a mediação política do conflito é uma mediação na qual as Nações Unidas não estão integradas”: “Desde o princípio não houve aceitação da integração das Nações Unidas nessa mediação política”.
E não se trata de algo estranho, “é uma posição muito clara que vem dos acordos de Minsk, que vem do formato da Normandia, em que as Nações Unidas nunca foram convidadas a participar”. Ainda assim, Guterres, antes de ir a Moscovo, esteve com o Presidente Erdogan. Isto, porque a Turquia tem sido o país que mais apoia em direto essas negociações e o secretário-geral da ONU garante que tem “acompanhado todos os passos das negociações”.
“Espero que elas um dia — infelizmente neste momento a situação não é a melhor, as negociações têm estado muito lentas e muito complexas — façam com que a paz regresse a estas terras, que bem necessitam dela […] Isto é uma coisa que tem de acabar”, rematou, recusando antecipar o que vai dizer esta quinta-feira a Zelensky, em Kiev: “O nosso princípio é de que a integridade territorial da Ucrânia deve ser preservada”. O resto, não quis revelar.