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Um cómico, o seu chapéu, e zero cenários. À frente da cortina, Solnado discava o telefone para a História © Grafismo Kimmy Simões/Ana Martingo
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Um cómico, o seu chapéu, e zero cenários. À frente da cortina, Solnado discava o telefone para a História © Grafismo Kimmy Simões/Ana Martingo

Um cómico, o seu chapéu, e zero cenários. À frente da cortina, Solnado discava o telefone para a História © Grafismo Kimmy Simões/Ana Martingo

Há 60 anos havia bombas às terças, quintas e sábados: quando Raul Solnado chegou à guerra e ela estava fechada

Avisaram-no que seria fatal para a carreira mas o soldado ignorou. Em outubro de 1961, o número da "Guerra de 1908" estourava mesmo no Maria Vitória. Em palco, uma bala de prata chamada Raul.

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Pum. Uma bala contra o guarda-roupa, “que enferma bastas vezes de mau gosto”. Uma outra contra os “cenários chochos”. Em palco, porém, uma competente tropa impermeável a críticas. O soldado capaz de “arrancar uma gargalhada ao mais sisudo espectador” é “um grande actor cómico em qualquer parte do Mundo”, sentencia o Diário de Lisboa a 21 de outubro de 1961, no rescaldo da estreia da revista “Bate o Pé”. Excluindo a “pobreza da montagem”, “ao fim e ao cabo o saldo é positivo”, concluem. E se Maria Alice Correia — “com o estofo do ídolo da multidão” — ou Florbela Queiroz — “Bardot de Pias” e “comediante cheia de finesse” –, convencem o escriba na análise do elenco, ninguém bate o número da Guerra de 1908.

Raul Solnado, vedeta nacional com 32 anos, é recebido com ovação na sua primeira entrada em cena. O resto é “dicção singularmente pitoresca e trabalhada” e o “poder mímico”, a munição que o acompanhará carreira fora e que perdura até hoje. “Aquilo tinha tudo. O Raul tinha tudo. Tinha uma magia especial na forma como dizia as verdades mais bárbaras com a inocência de uma criança de sete anos. Como se ele fosse um puto a contar uma historinha a outro puto. O texto é muito bom, mas nem toda a gente o podia fazer”, recorda Florbela 60 anos depois daquele que foi a sua estreia na revista, vinda do Teatro Nacional. Uma “miúda ingénua” a caminho dos 18 que cedo viu sucesso num momento que começou por merecer grande hesitação por parte da maioria.

[O essencial de Solnado, compilação que incluiu o número da Guerra de 1908]

“Lembro-me perfeitamente. Nem sempre era permitido estar a assistir aos ensaios mas como me achavam muita piada deixavam-me estar ali. Estive a ouvir a Guerra toda e toda a gente dizia que ia ser um flop desgraçado, mas a mim até me doía a barriga de tanto rir. Cheguei ao pé dele e disse-lhe: ‘ó senhor Raul, isto vai ser um êxito!’. E ele, ‘Deus te ouça, miúda!’. Ninguém acreditava, nem queria que ele fizesse aquilo. Nem cenários arranjaram. O Raul fez aquilo apenas com um chapéu na cabeça e à frente da cortina”. Foi assim a estreia, e o que se seguiu foi história.

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O destaque, continuará a prosa do jornal, foi para a “nota surrealista, honra e humor de quem o escreveu e recoseu, salpicando-se de non sense” e, claro, para “o estilo único, fantasia pessoalíssima e a arte de dar vida à palavra e de transmutar em riso que Raul Solnado possui”, presentes “de uma ponta à outra” no espectáculo.

"Eu vou contar-lhes a história da minha ida à Guerra de 1908. Eu trabalhava numa fábrica de produtos farmacêuticos. Um dia sem querer parti um comprimido e despediram-me. Fui então lá para casa sentar-me numa cadeira que nós lá temos para quando somos despedidos. Estava-me a balançar quando entrou o meu tio Gustavo com um jornal que trazia um anúncio da guerra: “precisa-se de soldado que mate depressa".
"A História da Minha Ida à Guerra de 1908"

Com Salazar na cadeira do poder e uma entorpecida censura nas cadeiras da plateia, o humor é o do absurdo e a gargalhada que se escuta à terceira linha, vencida a dúvida inicial, é mais violenta que um tiro. “Eles não perceberam nada, que era a nossa grande vantagem em revista nesse tempo. Fiz imensa coisa que só foi cortado oito dias depois de ser feito, e isto porque havia alguém que lá ia e tinha melhor cabeça e lá percebia a coisa. Então lá ia eu para o SNI [Secretariado Nacional de Informação]”, recorda a atriz que se prepara para voltar aos palcos com “Virados do Avesso”. “Nós éramos macacos e dizíamos as frases mas contundentes para dentro, engolíamos palavras”.

“A que horas pensam atacar amanhã?”. Quando Gilas pôs duas espanhas a rir juntas

Quando outubro estoura, há muito que 1961 é de digestão difícil para o Estado Novo, e a procissão ainda não chegou ao fim. A cronologia negra arrancara em janeiro com o assalto ao paquete Santa Maria e não terminaria sem a ocupação de Goa, Damão e Diu por tropas da União Indiana. Pelo caminho, um protesto na ONU contra o debate sobre Angola, uma abrilada liderada pelo Ministro da Defesa, Botelho Moniz (ou “o golpe que nunca existiu mas que podia ter derrubado Salazar”); o boicote das listas afetas à Mocidade Portuguesa nas eleições associativas estudantis de Coimbra; a Operação Vagô, com Palma Inácio a desviar um avião da TAP que sobrevoa Lisboa e outras localidades com uma chuva de panfletos sobre a “burla das eleições”, e a fuga de Caxias de vários dirigentes comunistas. E a guerra. Falta falar da guerra, claro. No mesmo dia em que se estreia a revista, o Diário Popular lançava um especial dedicado ao Ultramar Português.

A inspiração para o número que pôs o Parque Mayer a rir chegara do outro lado da fronteira, através de outro cómico do non sense, com o próprio Solnado a recordar as origens do fenómeno em “A Vida não se Perdeu”, biografia assinada por Leonor Xavier, em 1991. Também ali seria a guerra, sempre a guerra, outra guerra, a dar o mote para a apresentação em português. Solnado estava a fazer “A Tia de Charley” quando o encenador espanhol Antonio de Cabo lhe trouxe o disco de Miguel Gila. “Fiquei louco de paixão por aquele texto, era uma coisa nova que me apetecia muito fazer, mas não sentia coragem para o experimentar. Sabia que o monólogo tinha muita graça, que era humor de primeira qualidade e ali havia a grande força de uma verdade caricatural, aquela guerra era uma profunda mensagem de paz”.

Em 2018, o El País escrevia sobre o humorista (1919-2001) que transcendeu a cultura  popular espanhola com os seus monólogos surrealistas — “A que horas pensam atacar amanhã?” –, reiventando a guerra civil no país vizinho, reescrevendo-a e sobretudo nunca a esquecendo, num exercício terapêutico. “Gila pegou no seu síndroma pós-traumático, agitou-o com força e não só o converteu em arte como numa rentável carreira, um legado cultural e um bálsamo social. Graças a Gilas, as duas Espanhas começaram, aos poucos, a rir-se juntas”. No La Vanguardia, depois de partir, deixando para trás meio século de gargalhadas, destacou-se o papel de um “miliciano de humor”, que com o seu telefone em riste contagiou diferentes gerações.

[“A Guerra” por Miguel Gila]

Para a posteridade ficava o dia em que começou a improvisar monólogos sobre as suas próprias experiências na guerra, no palco madrileno do teatro Fontalba, em 1951, uma década antes da versão de Solnado — ou sobre uma popular fantasia que assumiu as feições de verdade e pegou de estaca. O artista nascido em Chamberí que figurou em 27 filmes e programas de TV entre 1954 e 1993, forjara uma biografia repleta de inexatidões. “Ninguém fuzilou o Gila, nunca esteve preso, e nunca foi exilado político”, sentenciaria o testemunho de Ángel Palomino, militar franquista, escritor, e amigo de Gila — o mesmo que em 1962, afinal, não zarpara pela Argentina fugido do franquismo mas antes por causa de um caso de adultério.

De norte a sul, da desconfiança à apoteose, batendo o pé “dadas as limitações”

Se do lado chegava bom vento, vale a pena escrutinar as origens de um número que em solo nacional teve efeito de furacão. “Nunca até hoje foram contadas, do princípio ao fim, as peripécias que envolveram a integração numa revista de um texto tão diferente do que seria habitual”, escrevia Leonor Xavier na sua obra, admitindo que o “tom quase mítico” do episódio pudesse ter ultrapassado esses mesmos detalhes — convém lembrar que o anfiteatro do Maria Vitória rapidamente se tornou pequeno para tão grande sucesso, com as multidões a fazerem fila à porta do teatro para conhecerem a história ao vivo.

Recuando a esses idos de sessentas, Solnado vive “todas as noites, nas duas sessões da revista no Teatro Maria Vitória, um dos momentos mais alucinantes da sua carreira”. “A partir de 20 de outubro de 1961 a revista “Bate o Pé” sugere aos lisboetas a ideia de que, enquanto não aparecem grandes mudanças em Portugal, a solução é ir ao Parque Mayer e bater mesmo o pé com as rábulas de múltiplos sentidos apresentadas em cena”, dadas as “limitações actuais”, como lembra O Século.

"Diz a minha tia: “Porque é que tu não respondes a esse anúncio?”
E diz a minha mãe: “isso, isso. Olha, o que era preciso era comprar lhe um cavalo”.
E diz a minha tia: “Mas eles na guerra dão cavalos”
E diz a minha mãe: “Pois, e o meu filho vai agora para a guerra montar um cavalo que os outros já montaram. Eu sei lá quem é que já montou naqueles cavalos”
"A História da Minha Ida à Guerra de 1908"

Lágrimas e riso confundem-se a cada palavra pronunciada naquela histórica cena do primeiro ato. “Vai ser sempre assim, em Lisboa e no Porto, ao longo de seis meses”. O ator, que conta “A História da Minha Ida à Guerra de 1908”, haveria de narrar também, com a remodelação do espectáculo em 16 de fevereiro de 1962, “A História da Minha Vida”. “Estivemos um ano e meio em cena e depois fomos para tourné”, explica Florbela Queiroz, que sublinha as diferentes reações do público às palavras do cómico. “Ao princípio não se começavam a rir logo. Em Lisboa, sim, porque na estreia havia muita gente de teatro, e amigos, bastava ele aparecer. Aí foi sempre apoteótico. Em tourné o povo desconfiava um pouco, sem perceber. À terceira fala lá rebentava a rir”.

Um tubo de ensaio madeirense. Já agora, dá para mudar o ano da guerra?

Uns meses antes dessa estreia absoluta no teatro, a rábula que escapou ao veredito do fracasso teve direito a estágio. Nesse verão de 1961, Raul Solnado vai ao Funchal com Humberto Madeira e é na ilha que o texto começa a ganhar forma.” Ficámos lá um mês e como o público era sempre o mesmo tínhamos de ter muito repertório para ir variando os espectáculos. De modo que decidi, muito a medo, contar aquela história. Fiquei logo assustado com o ruído das gargalhadas que explodiram, nunca pensei que aquele texto provocasse uma gargalhada quase violenta. Estava já contratado para a revista do Portela no Maria Vitória e quando voltei para Lisboa resolvi contar a história aqui”, cita Leonor Xavier na biografia do ator.

"Fomos à feira de gado mas não vendiam cavalos sozinhos. Só vendiam cavalos com as carroças e com as moscas.
E a minha mãe disse: “O meu filho não vai agora para a guerra encher a guerra de moscas. O meu filho vai a pé mas vai limpo”
"A História da Minha Ida à Guerra de 1908"

De volta à capital, se os autores da revista começam por achar o trecho “sensacional” e por incluir o número no espectáculo, em dois tempos se confirma o ceticismo que ia matando o sketch, como recorda  Joana Stichini Vilela em Lisboa, Anos 60. “Como é um monólogo Solnado prepara-se sozinho. A primeira vez que diz em público é pouco antes do ensaio geral e na azáfama dos preparativos ninguém lhe percebe o encanto. Ensaiador, empresário e autores da revista tentam convencê-lo a desistir da história. Vai enterrrar-se, avisam. Em vão”.

“Ou faço ou não entro”, teimou Solnado, com Nelson de Barros — que queria que o ator aparecesse na revista com um terceto — a cortar relações. Raul levou a melhor, mas “de vez em quando ainda vinha um ou outro embaixador do bom senso tentar, cheio de delicadeza, convencer-me de que me ia enfiar num buraco num momento alto da revista”, recorda em “A Vida não se Perdeu”.

Talvez porque também não lhe encontrem grande interesse, os censores não veem inconveniente no texto, texto esse que até essa altura situa o ano da guerra uns degraus acima da versão final. “Os censores foram para a plateia, falei muito depressa e consegui que o efeito negativo da história, quando o texto não era perfeitamente entendível, fosse inteiramente positivo naquela ocasião. Porque os censores não entenderam nada, não fizeram cortes”. Um pedido apenas, uma retificação ligeira:

“Há uma coisa que tenho de proibir. Você fala da guerra de 1914, isso não pode. Pode ser de 1908?”

“Pode, à vontade”.

Passada a prova da censura visual, falta superar a da censura de leitura. “Isto é pôr a guerra num charco, não vai passar”, alertou Nelson de Barros, que sugere o despiste perfeito:

"Vamos experimentar escrever em cima do texto: 'Entra Cantinflas e diz…' a ver se as gente os baralha".

“A verdade é que conseguiu”.

Foi coincidência que o texto aparecesse na revista “Bate o Pé”, em outubro de 1961, logo a seguir ao eclodir da guerra no chamado Ultramar português?, perguntam a Solnado num artigo publicado na Revista Única de 27 de dezembro de 2008. “Coincidência não foi, que naquela altura tudo era político. Mas nunca esperei que fosse um êxito tão grande e que ainda hoje, passados quase 50 anos, haja gente a falar nisso. A culpa é toda do Gila”, lembra Raul, que vira o autor de “Ida à Guerra” pela última vez num dos seus espectáculos na Catalunha, pouco tempo antes de morrer. “Estava mal e não era só de saúde. Deu que pensar. Depois de o ver decidi que nunca mais havia de fazer a “Guerra de 1908”, contava então o ator, a propósito do lançamento do disco “O Irresistível Raul Solnado “, uma compilação de dez monólogos e duas canções.

[Em julho de 1967, num espectáculo no Brasil, gravado pela Record]

“Tenho-me na conta de alguém que é divertido… às vezes. Mas preferia que não tivesse sido destruído o registo televisivo de “O Valente Soldado Schweik”, que fiz no Maria Matos. De resto, a digressão de mais de dois anos à volta das minhas memórias, com um elenco composto por mim, uma mesa, uma cadeira e um computador, deu-me um prazer muito grande.”, desabafava pouco tempo antes de morrer o cómico que também transportou a Guerra para o outro lado do Atlântico no final dos anos 60.

O sucesso que chegou a disco, novo recorde e aquela “poeira dos astros”

Gravada para a posteridade ficava esse combate que ia beber a inspiração no disparate do quotidiano e na famosa esperteza saloia. A Guerra de 1908 é um conflito de trazer por casa, com moscas, laçarotes e almoçaradas, lê-se no verso da edição da Parlophone em 45 rotações, que incluía ainda “A História da Minha Vida”, um novelo de horríveis desastres domésticos, absurdos acidentes e incríveis acidentes. Um conjunto de adjetivos que poderia servir para descrever o amontoado de gente no centro de Lisboa quando as primeiras rodelas viram a luz do dia. “Naquele tempo, a Ida à Guerra foi dos maiores êxitos no mercado discográfico. As gravações são um fascínio de miúdo. Eu devia ter sete, oito anos, e lembro-me de a minha mãe contar que na Valentim de Carvalho da Baixa havia uma fila que dava a volta ao quarteirão de pessoas que queriam comprar o disco Foi um sucesso incrível”, recorda David Ferreira, que meio século depois desse estrondo inicial em disco, e desse período áureo dos monólogos, lançava a primeira compilação em CD. “Gabo-me que as últimas compilações de coisas do Raul em disco, fui eu que as fiz. Fiz duas vezes ainda no meu tempo na EMI Valentim de Carvalho, em 90 e picos, com um texto inédito do meu pai, que ainda era vivo, e outro já em 2008, e já depois de sair da indústria”.

"Fomos para casa. A minha mãe preparou-me umas papas de serrabulho para o caminho. Tomei um táxi e fui para a guerra. Cheguei à guerra eram sete horas da manhã, estava a guerra ainda fechada. E estava uma mulherzinha a vender castanhas à porta da guerra e eu perguntei: “Minha senhora, faz favor diz-me, aqui é que é a Guerra de 1908”?

Um episódio em particular sustenta esse best of do novo milénio, garantia de que os dotes do soldado continuavam a recomendar-se várias décadas depois de se aventurar em campo minado. “Dei com os meus filhos e um primo a dizerem uns aos outros frases inteiras do Raul. Eu tinha-lhes pegado o vício do Raul!. Fiz logo dois telefonemas e é nesta altura que surge essa coletânea. Um para ele, a dizer-lhe que os miúdos continuavam a achar piada. E outro para a Paula Homem a dizer que se tinha que fazer algo porque continuava a ser lembrado. Sei que o Raul ficou muito contente, e que tinha amizade e gratidão por este disco. A ultima vez que falámos ele desejou-me boas festas para 2009″.

Para esse segundo volume de melhores momentos, Solnado elegeu três novidades para acrescentar ao material antigo. Pelo caminho, ficaram projetos na calha, como a ideia de fazer um trivial pursuit com as histórias de um exímio quebra-gelo no mais frio dos ambientes. “Tive a sorte de o ouvir contar anedotas. Ele pôs-me a rir no velório do meu pai com histórias que se tinham passado entre os dois! A sua primeira mulher, que era brasileira, contou-me uma história…não estava habituada a esse ritual muito lisboeta dos velórios, só que o Raul ia e contava anedotas. Um dia vão a um, dão os pêsames, o Raul lá está a fazer toda a gente rir, e de repente vai ter com ela e diz-lhe “vamos embora, vamos embora..não é este velório!”.

A edição em disco de 45 rotações

Os primeiros registos da Guerra foram gravados ao vivo no Maria Vitória, em 1962. O disco que reunia “A Guerra de 1908” e “A História da Minha Vida”, editado em abril desse ano, bateu todos os recordes de vendas de discos, chegando aos 20 mil. É nesse ano, aliás, que Solnado entra em “Lisboa à Noite”, em cena no Teatro Variedades, onde interpreta os sketcks “É do Inimigo” e “Concerto do Inimigo”. Protagonista do filme neo-realista “Dom Roberto”, de José Ernesto de Sousa venceria o Prémio de Imprensa para melhor ator de cinema, 11 anos depois dessa estreia na revista, em 1953, com “Viva O Luxo”, apresentado no Teatro Monumental. Seguir-se-ia “Ela não Gostava do Patrão” (1956), e “Três Rapazes e Uma Rapariga” no Teatro Avenida. Em 1960 entra na peça “A Tia de Charley” apresentada no Teatro Monumental, temporada em que se torna empresário e explora o cine-teatro Capitólio, que se estreia na revista com ‘A Vida é Bela’ — em palco, Solnado, Humberto Madeira, Carlos Coelho e Milu.

"A única coisa que Raul fazia questão era de não atribuirem a ele o que era do Gila. Uma vez houve um erro de simpatia. Ficou zangadíssimo. Era um tipo muito sério. Tinha uma noção da dignidade do humor hoje talvez quase perdida".
David Ferreira

Único no estilo, “muito musical”, Raul personalizou de tal forma a rábula que facilmente a guerra perderia data para ganhar apelido imbatível. A Guerra de 1908 não é hoje senão a Guerra de Solnado, estejamos no começo do século XX ou XXI, ainda que o ator detestasse apropriações indevidas. “O Raul tinha imenso prazer naquilo. A única coisa que fazia questão era de não lhe atribuírem a ele o que era do Gila. Um dia na EMI Valetim de Carvalho, por erro de simpatia, uma secretária atribuiu a autoria do texto ao Raul onde devia estar Miguel Gila, e ele ficou zangadíssimo. Era um tipo muito sério além de ser uma pessoa de quem se gosta. Tinha uma noção da dignidade do humor hoje talvez quase perdida”, diz David Ferreira, que explica porque é que esta guerra acaba por ter um dono involuntário. “Uma boa versão é isso. O “My Way” também não é do Sinatra, era uma canção francesa mais ou menos engraçada. O mesmo se aplica à Amália, que parece que apanha ali uma poeira dos astros e enche coisas antigas de luz. Os monólogos do Gila são bons e o Raul criou uma personagem com a sua graça natural; é um grande ator”.

Uma companhia para o ouvido e uma “responsabilidade gigante”

Poucos se atreveriam a mexer num monumento, a repescar uma versão quase sem paralelo, a agarrar no telefone para fazer mais uma chamada épica, para Washington ou para o cabeleireiro. Mas em 2019, em jeito póstumo e uma década depois do seu desaparecimento físico, a família do ator abençoava a ousadia de Telmo Ramalho no palco do Auditório dos Oceanos, no Casino de Lisboa. “A dada altura disseram me que a filha Alexandra foi ver um dos ensaios e eu estava muito nervoso. Durante um mês e meio estive a ensaiar literalmente para uma parede. Mas a verdade é que riu, chorou, foi uma coisa forte, e fiquei um pouco mais descansado depois de falar comigo no final. Depois, no dia de estreia, também estava a família toda e foi uma responsabilidade gigante. Mas pronto, a homenagem ficou feita. Se a família estava feliz, então a minha missão estava cumprida“, confia o humorista sobre o espectáculo encenador por Henrique Dias, que cosia diferentes monólogos eternizados por Raul.

"Quando eu começava a fazer o número parecia que estava a ver um concerto. Sabe quando as bandas cantam e o público canta com elas? De norte a sul havia gente a dizer a deixa, era incrível. Havia uma geração da minha idade, dos 30/40, que apanharam ainda alguma coisa do Raul, e depois uma mais velha, que traziam também os netos".
Telmo Ramalho

A relação com os textos ditos por Solnado é bastante anterior a essa prova de fogo ao vivo e a cores. Aos 14 anos, numa viagem em família ao Porto, o pai comprou uma cassete com monólogos do ator numa estação de serviço. Alguns anos depois, então a trabalhar como vigilante da natureza, o estilo do futuro mestre serviria de conforto nas jornadas solitárias. “Pelos 20 anos a 28, quando trabalhava no Parque Natural do Douro Internacional, tinha que andar muitas horas sozinho no campo, e ouvia muitas vezes a cassete; tanto que sabia as rábulas de cor, os tempos e pausas do Raul“, lembra Telmo, que sempre teve gosto pelo teatro e comédia, inclinação que não escapou ao olho da família: a certa altura, a mãe inscreveu-o no formato “Aqui há talento” e Telmo percebeu que tinha apetência para contar histórias. “Quis explorar isso e em 2007 inscrevi-me no primeiro curso que me apareceu no Google, o do Raul Solnado, ali na Guilherme Cossul. Era supervisionado pelo Raul e toda a família dava as aulas. Primeiro vinha todos os fins de semana da zona da Guarda. A certa altura despedi-me lá de cima e comecei a trabalhar em peças infantis em Lisboa”.

Ao fim de um ano lançou um desafio de apresentar um espectáculo final sozinho, um monólogo com os texto de Solnado. Inicialmente o professor anuiu na ideia do aluno, depois “achou que me limitava muito”, ainda que mais tarde o próprio Solnado tenha oferecido a Telmo um DVD com o texto que ele achava que tinha sido melhor dito por ele, ao nível das pausas, movimentos das mãos, etc. “Assim nasceu o ‘Portugal das Bifanas’, que esteve em cena alguns anos. Mas tive sempre este bichinho pelos textos dele. Comecei a trabalhar com o Paulo Dias, da UAU. Falei com a família, especialmente o filho Zé Renato, que nos cedeu muita coisa do pai para pesquisa”.

Entre esse arranque em jeito de estágio e a concretização do tributo, a epifania dá-se num quadro banal do quotidiano, que poderia ter saído de uma das inúmeras rábulas de Raul. “Um dia estava a lavar a louça e a minha esposa disse uma frase da Ida à Guerra. E eu comecei a dizer o monólogo todo. Ela disse-me para falar com o Paulo e lá criamos o espectáculo de homenagem ao Raul”, reconstitui Telmo Ramalho, que destaca a aparente simplicidade de um trabalho complexo, com muitas camadas; de alguém que a “brincar a brincar, diz coisas muito sérias”, mantendo-se intemporal.

Da capital para o país, com uma digressão que correu vários auditórios e uma reação unânime de norte a sul, num encontro de idades, porque esta guerra é daquelas que nunca mais acaba. “Havia uma geração dos 30/40, que apanharam ainda alguma coisa do Raul, e depois uma mais velha, que traziam também os netos. Quando eu começava parecia que estava a ver um concerto. Sabe quando as bandas cantam e o público canta com elas? Ali havia gente a dizer a deixa, era incrível”.

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