“A vida em Kiev hoje é quase normal”. As pessoas vão a restaurantes, ao cinema, frequentam os jardins e vão trabalhar todos os dias. Falta eliminar o “quase”. Oleg Polovynko era o responsável pelo departamento de tecnologia da capital ucraniana quando a Rússia invadiu o país e a vida deixou de ser normal. A 26 de fevereiro do ano passado, a aplicação para smartphones Kyiv Digital, que servia para facilitar aos habitantes tarefas banais como pagar contas e parques de estacionamento, passou a mostrar aos cidadãos de Kiev qual o abrigo antiaéreo mais próximo ou os locais onde ainda era possível comprar comida ou combustível. Hoje, ainda não voltou ao normal.
Quando Oleg conversou com o Observador, pouco depois das 12 horas da passada quarta-feira, as sirenes tinham acabado de tocar em Kiev. Na aplicação que conhece de olhos fechados, o atual conselheiro do presidente da Câmara de Kiev para a digitalização, que esteve em Lisboa para participar na Web Summit, mostra as centenas de pontos vermelhos, os abrigos antiaéreos, que o departamento de tecnologia da câmara teve de digitalizar em tempo recorde para salvar vidas.
“Estes são os abrigos públicos. Há grandes zonas onde parece que não existe nenhum abrigo, mas é porque são fábricas e indústrias, e só quem lá trabalha é que consegue vê-los”, explica. Além dos locais dos abrigos, foi preciso desenvolver as notificações dos ataques aéreos, para que a população fosse avisada em tempo real.
Dos primeiros dias da invasão, Oleg Polovynko lembra a adrenalina e o medo. “Quase sentia o sangue a correr nas veias”. O tempo era escasso, até porque em Kiev ninguém foi capaz de prever que a entrada dos russos acontecesse como aconteceu. “Nos dias anteriores à invasão, os media estavam repletos de notícias sobre o facto de os russos estarem a preparar-se para fazer alguma coisa. Esperávamos alguma atividade na zona este, como já tinha acontecido em 2014. Esperávamos que essa linha fosse completamente queimada. Mas não esperávamos que entrassem diretamente em Kiev e que atravessassem o território de Chernobyl”, a norte da capital.
O elevado teor de poeira radioativa da região “onde ninguém passa” levou os responsáveis de Kiev a duvidar da incursão. “Foi de loucos, eles não pensaram nos seus soldados. Ficámos mesmo surpreendidos que entrassem por aquele lado”. A prioridade, recorda Polovynko, foi “reunir uma equipa e dar algum tempo às pessoas para colocarem as suas famílias a salvo, apesar de estarem sempre em contacto connosco”.
As operações foram geridas a partir de um centro de monitorização, onde a equipa de Oleg Polovynko tinha acesso às imagens de todas as câmaras de vídeo-vigilância de Kiev. “Monitorizávamos a partir dali todo perímetro da cidade”, e bastava um zoom nas imagens para conseguir ver “até os rostos dos russos que atravessavam” para a capital. “Usámos todos os instrumentos que tínhamos ao dispor, e esta aplicação foi um deles”. Antes da guerra, tinha 1,1 milhões de utilizadores. Após a invasão, passou a ser usada por 2,6 milhões. Kiev tem cerca de 3,4 milhões de habitantes.
“Há quase dois anos que não dormimos bem”
Uma das primeiras tarefas da divisão tecnológica foi “reinventar o Google Maps”, destaca. A Google fechou, durante algum tempo, a ferramenta de edição de mapas, que permitia, por exemplo, alterar os horários de funcionamento dos serviços. Em muitos casos, as lojas estavam encerradas, mas no Google Maps surgiam como abertas. Foram os programadores da câmara municipal que, um a um, inseriram na aplicação as informações de todos os negócios que estavam a funcionar na cidade, “nem que fosse por umas horas”.
Naquele momento, lembra o conselheiro de Vitali Klitschko, “era crucial informar as pessoas” com dados fidedignos, “porque a informação vinha sobretudo das redes sociais”. E quem é especialista em redes sociais e desinformação? Os russos. “Na Ucrânia o Telegram é muito popular e houve muita gente a inscrever-se em canais de Telegram nessa altura. Mas nesses canais não sabemos quem está a escrever os posts e quem está por trás da informação. Muitos canais são geridos por russos e pró russos, e era frequente encontrar mensagem que diziam para as pessoas não se preocuparem, para ficarem na cidade, que estavam seguros e que não ia acontecer nada. Esta informação era manipulação”.
Esta foi outras das preocupações dos engenheiros e programadores da câmara de Kiev. “Na nossa aplicação é difícil manipular informação porque há verificações de segurança do Google e da Apple. Foi por isso que criámos canais oficiais na aplicação para o presidente [Zelensky], para o presidente da câmara e para o general Valerii Zaluzhnyi. Para garantir que a informação era confiável”. O que os russos fazem, conta, “é pegar num post do presidente da câmara, por exemplo, recortam e mudam a legenda, e postam a mesma foto com a informação que lhes interessa”. E espalham nas redes.
Hoje, Kiev não está na linha da frente da batalha. Mas a guerra é presença diária na vida dos cidadãos. Apesar de os mísseis russos lançados contra a cidade, que está protegida por via aérea, seja pelos Patriots ou pelo escudo aéreo IRIS, serem menos frequentes por estes dias, os cidadãos sentem que a qualquer momento podem ser alvo de um ataque por drones kamikaze, revela Oleg Polovynko. “O risco esteve perto hoje, como viste. Há quase dois anos que não dormimos bem, que estamos sempre com medo que algo aconteça. Isto cria muito stress nas pessoas, em todos os ucranianos, não só em Kiev. Sentimos que as pessoas precisam de ajuda, que estão mentalmente cansadas”.
Um gémeo digital de Kiev para prever todos os cenários
Os recursos são escassos, tanto os financeiros como os humanos, mas nem por isso Kiev parou de inovar nos últimos 20 meses, ressalva o conselheiro tecnológico do mayor. O próximo passo será a criação de um gémeo digital de Kiev. “Na prática, é uma cópia digital da cidade onde podemos fazer modelos e construir cenários”. E exemplifica. “No reservatório de Kiev há uma barragem. Em Kherson, os russos destruíram uma barragem e houve grandes inundações. Se algo do género acontecer em Kiev, a margem esquerda da cidade vai ficar debaixo de três a cinco metros de água”.
O que a equipa tecnológica da capital ucraniana quer fazer é criar modelos que repliquem todos os cenários possíveis para, por exemplo, saber o que devem fazer os serviços médicos em cada caso. “Se a Rússia atacar as nossas fontes de energia e perdermos 30%, 40% ou 50% da capacidade, com este recurso saberemos como é que poderemos fornecer os hospitais, quem pode usar geradores… todos os cenários estarão previstos”.
O sistema vai estar ligado à “vida real”, ou seja, se mudar alguma coisa na infraestrutura da cidade, a alteração será repercutida no “irmão gémeo”. “Vamos poder tomar as decisões corretas com base nos dados. E vamos ter opções para cada caso”.
A lista de projetos da equipa tecnológica de Kiev é extensa, e é preciso estabelecer prioridades. “Neste momento estamos a fazer metade do que temos planeado. Há um ano e meio os projetos estavam mais focados na segurança e na resiliência da cidade”. Hoje, é preciso planear o futuro. Até porque a guerra, sublinha, “neste momento é tecnológica”. E a Ucrânia está alguns níveis atrás da Rússia, admite Oleg Polovynko. “Precisamos de um boost tecnológico para ganhar a guerra”.
Na Web Summit do ano passado, o evento foi totalmente centrado na Ucrânia. A presença surpresa da primeira-dama, Olena Zelenska, dominou as atenções e nos pavilhões da FIL, o stand amarelo e azul turqueza foi sempre um dos mais concorridos. Um ano depois, estalou uma nova guerra, entre Israel e o Hamas, que até conduziu à demissão do CEO da Web Summit, Paddy Cosgrave. Na Web Summit, apesar de ter havido pouco espaço para debater Israel, também a Ucrânia acabou relegada para um plano secundário. E no espaço mediático, também é assim?
“Se falamos de atenção, não é só com Israel que competimos, é também com a Netflix, porque as pessoas preferem ver séries do que ver notícias sobre a guerra”, defende Polovynko. “A nossa presença aqui é sobre esta guerra, estamos a contar a nossa história e estamos a lutar por atenção. Mas não somos os únicos, há outros países que querem chamar a atenção para os seus problemas”, ressalva.
“Fomos todos surpreendidos com o 7 de outubro, foi terrível, o Hamas fez em Israel coisas ainda piores do que a Rússia fez em Bucha. Claro que sentimos que a atenção é menor em relação a nós, mas ao mesmo tempo, sentimos um forte apoio dos nossos aliados. Sinto isso nas comunicações que mantemos, na disponibilidade para ajudar, nos projetos que lançamos juntos. O apoio está estável”. Até que um dia a vida volte ao normal.