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"É muito difícil suportar a hipocrisia, ver os políticos a culpar as pessoas que vieram para cá trabalhar por problemas que não causaram. Acusar os imigrantes de roubarem empregos ou de fazerem baixar os salários ou de trazerem a criminalidade…"
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"É muito difícil suportar a hipocrisia, ver os políticos a culpar as pessoas que vieram para cá trabalhar por problemas que não causaram. Acusar os imigrantes de roubarem empregos ou de fazerem baixar os salários ou de trazerem a criminalidade…"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"É muito difícil suportar a hipocrisia, ver os políticos a culpar as pessoas que vieram para cá trabalhar por problemas que não causaram. Acusar os imigrantes de roubarem empregos ou de fazerem baixar os salários ou de trazerem a criminalidade…"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Hein de Haas: “Não se pode viver numa sociedade capitalista democrática e, ao mesmo tempo, não querer imigrantes”

“Como Funciona Realmente a Migração”: o título do livro é autoexplicativo e o autor, Hein de Haas, é um dos maiores especialistas na área. Entrevistámo-lo em Lisboa, onde esteve para uma conferência.

Sabia que apenas 3% da população mundial é migrante — isto é, está há mais de seis meses a viver fora do seu país de origem? Ou que a maior parte dos migrantes não são nem refugiados nem pessoas a fugir da miséria? E que a maior parte das políticas migratórias de linha dura tendem a agravar a mesma situação que tentam combater? Hein de Haas sabe — afinal de contas, escreveu um guia sobre isso.

Professor de Sociologia na Universidade de Amesterdão e professor de Migração e Desenvolvimento na Universidade de Maastricht, o neerlandês é uma das figuras de proa a nível mundial nos estudos migratórios. A súmula do seu trabalho pode ser encontrada em Como Funciona Realmente a Migração: Um guia factual sobre a questão que mais divide a política, livro recentemente disponibilizado em Portugal através da Temas e Debates. Apesar da quantidade torrencial de informação e da análise exaustiva dos problemas, esta obra é de fácil leitura. Aliás, o seu propósito é precisamente esse. Organizado em 22 capítulos, cada um representa um mito que de Haas pretende desmentir — desde “as fronteiras estão incontroláveis” até “a opinião pública virou-se contra a imigração”.

O seu propósito, contudo, não é o de apresentar respostas mágicas àquele que é um dos temas quentes a definir a política interna e externa de países um pouco por todo o globo. Até porque “se abordarmos as coisas complexas com soluções simplistas, elas vão falhar”, avisa ao Observador antes de subir ao palco da conferência “Hein de Haas ao vivo: Migrações não é assim tão simples”, organizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O que o professor pretende, acima de tudo, é estabelecer um ponto de base realista e sintético para que se possa pensar o tema da migração e definir políticas públicas em conformidade  sem seguir “uma política de avestruz” e tentar ignorar o problema. “Se dissermos que a migração é inevitável, não é uma declaração a favor, é um facto, um reconhecimento da realidade”, afirma.

Tentando não fazer política com o seu livro, como afirma durante a conversa, a posição de Hein de Haas é de que “devemos deixar de tratar a migração como um problema a resolver ou como uma solução para os problemas”. No entanto, não deixa de apontar o dedo à “hipocrisia” de uma classe política que condena os mesmos trabalhadores imigrantes de que depende para manter a economia a funcionar. “Só seria credível para os políticos se, ao mesmo tempo que construíssem uma vedação, criminalizassem os empregadores que empregam imigrantes ilegais”, aponta.

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A capa de "Como Funciona Realmente a Migração", de Hein de Haas, na edição portuguesa da Temas e Debates

Um dos principais problemas que aponta quanto à forma como a migração é tratada é o facto de nos concentrarmos no que deveria ser, em vez de nos concentrarmos no que de facto é. Em que sentido?
A questão da migração é muito ideológica e o problema não é o facto em si, mas sim o enquadramento em termos pró e contra. Essa é uma forma muito pouco útil de discutir a migração, porque também não se pergunta a um economista se é contra ou a favor da economia. A migração existe e sempre existiu. Por isso, o que quer que se queira fazer com a migração, primeiro é preciso compreendê-la. Não há nada de errado em ter preferências, mas isso leva a políticas que não funcionam porque não se baseiam em qualquer conhecimento sobre o seu funcionamento. E é também essa a razão do título do meu livro: primeiro temos de compreender como funciona a migração antes de podermos pensar em políticas. E é complexo! Se abordarmos as coisas complexas com soluções simplistas, elas vão falhar.

Logo no início do livro menciona que a migração é tão antiga quanto a humanidade. É algo que não faz sentido enquadrar numa lógica contra ou a favor?
Isso não significa que não se possa mudar nada ou que não se possa tentar gerir melhor a situação. Mas se uma política se baseia em desejar que [a migração] desapareça, essa é uma forma de magia, não funciona. Se pensamos realmente que podemos parar a migração, isso é ingénuo, porque sempre existiu, as pessoas sempre se deslocaram por todo o tipo de razões. Primeiro temos de perceber porque é que as pessoas se deslocam, porque é que a migração é como é, antes de podermos começar a pensar no que uma política pode fazer. E é também como uma imunização contra a ideia de que a migração é como uma torneira que se abre e fecha, não é assim que funciona. É mais ou menos um processo natural. No momento em que se tenta realmente pará-lo, só é possível fazê-lo quando nos tornamos como a Coreia do Norte — um Estado totalitário. E já vimos o que acontece quando se tenta realmente travar a migração ou a mobilidade com o período da Covid-19 — significa práticas totalitárias e é por isso que a Covid-19 criou tantas reações no Ocidente, as pessoas aperceberam-se subitamente do poder que o Estado tem e nós não queremos que ele controle a mobilidade! Mas, na realidade, mesmo que digamos que queremos acabar com toda a migração, se isso acontecesse de facto, seriam necessárias intervenções tão drásticas que basicamente destruiriam a nossa democracia. Por isso, não se pode viver numa sociedade capitalista democrática e rica e, ao mesmo tempo, não querer imigrantes. É impossível.

O maior mito que pretende desmentir no seu livro é que a migração está a ficar fora de controlo. Se não está, porque é que a perceção atual — principalmente no mundo ocidental — é de que está?
A nível global, a migração não é, de todo, excecionalmente elevada. Foi provavelmente mais elevada há um século, quando muitos europeus foram para a América. Apenas 3% da população mundial é migrante e essa percentagem quase não se alterou [nas últimas décadas]. A percentagem de refugiados é ainda mais pequena e também não se alterou. Há altos e baixos e não uma grande vaga de pessoas a chegar. Mas, de uma perspetiva europeia, é lógico [pensar-se assim], porque as coisas mudaram. A Europa foi o último continente de colonizadores — Portugal é um grande exemplo e o meu país, os Países Baixos, é também. Foram impérios coloniais marítimos. Por isso, sempre fomos habituados a ir para o estrangeiro e a instalar-nos noutros locais sem pedir autorização. Por isso digo que o colonialismo europeu é a maior migração ilegal da história da humanidade, porque nunca pedimos autorização! Bem, é claro que isso mudou nos últimos 50 anos, com a descolonização em primeiro lugar, o que significou que algumas das pessoas das colónias foram para Portugal, para os Países Baixos, para França, para a Grã-Bretanha, etc… E depois veio o fator económico, que em Portugal é relativamente recente, mas noutros países europeus é mais antigo. Há falta de mão de obra e isso atrai pessoas.

Portanto, a Europa alterou fundamentalmente a sua posição no mapa global das migrações, passando de continente de saída a continente de acolhimento de imigrantes. E isso é uma verdadeira mudança! Por isso, é compreensível que as pessoas vejam-no assim. A primeira vez que vim a Lisboa foi em 1997 e é possível ver isso nas ruas. Há muitos mais estrangeiros, o que é uma mudança real, mas isso não quer dizer que Portugal esteja a ser invadido! O problema são os políticos que põem lenha na fogueira. E a comunicação social — não toda, mas a de massas — tem tendência para o sensacionalismo. Por isso, o que vemos na televisão são os barcos e na América as caravanas. E isso cria a imagem de que “isto é realmente o que está a acontecer”. Para dar um exemplo sobre a migração africana para a Europa: nove em cada dez africanos que se deslocam para a Europa, deslocam-se legalmente. Não é essa a impressão que se tem quando se vê televisão! Vemos pessoas a afogarem-se no Mediterrâneo. Está, de facto, a acontecer e é um problema, mas não é representativo.

"A pobreza impede as pessoas de se deslocarem. Se há uma grande causa da migração é a procura de mão de obra. E isso é claramente o que mudou em Portugal. Se quisermos explicar porque é que cada vez mais pessoas vêm para Portugal, toda a gente sabe a razão: há emprego."

Refere que a maioria das migrações tem fluxos, mas o que tende a ocorrer é que sempre que aumentam, isso aparece nas notícias, e sempre que diminuem, isso não acontece. Por isso, temos esta perceção de que está a aumentar continuamente, certo?
Sim, temos esta narrativa de crise, tanto à esquerda como à direita. É o mito mais partilhado, sobretudo nos extremos. O que achei realmente interessante quando fiz a minha pesquisa de fundo é que a extrema-esquerda e a extrema-direita têm uma tendência para o pensamento apocalíptico, mas que não se baseia em provas — e penso que é aí que as coisas correm mal. A escala da migração é normalmente exagerada e as suas causas são mal interpretadas, porque na realidade a migração não é motivada pela pobreza. A pobreza impede as pessoas de se deslocarem. Se há uma grande causa da migração é a procura de mão de obra. E isso é claramente o que mudou em Portugal. Se quisermos explicar porque é que cada vez mais pessoas vêm para Portugal, toda a gente sabe a razão: há emprego.

Essa é uma questão muito interessante que também aborda no livro. Há o argumento de que se melhorarmos o estatuto económico dos países de origem, isso impedirá as pessoas de emigrar. Mas mostra como, na realidade, é o contrário.
Sabemos que os níveis de migração mais elevados se registam nos países de rendimento médio. E até há pouco tempo, Portugal era um bom exemplo disso. Quando ainda tinha muita emigração, nos anos 60 e 70, não era o país mais pobre do mundo, estava algures no meio, certo? E isso é típico. Se olharmos atualmente para os países de maior emigração do mundo — Filipinas, México, Turquia, Marrocos —, estes não são de todo os países mais pobres do globo, são de rendimento médio. E o que vemos agora é que a emigração está a aumentar em alguns países da África Subsariana, o que é resultado do desenvolvimento. É esse o paradoxo. As pessoas geralmente não se deslocam a menos que tenham a oportunidade, porque a migração é cara. E é por isso que a emigração exige aspirações e capacidades. O que significa que se ficarmos um pouco mais ricos, com um pouco de dinheiro, podemos pagar pela nossa migração. E, normalmente, a educação também muda as ideias das pessoas sobre o que é uma vida boa, sobre o tipo de futuro que desejam, o que leva a que deixem de querer ficar numa pequena aldeia. Vão para as cidades, que é a maior fonte de migração. Só algumas pessoas vão para o estrangeiro. É esta a história da Europa.

No livro, explora a ideia de que a globalização tem um papel ambivalente nas migrações. Em que sentido?
Uma das razões pelas quais as pessoas pensam que há uma aceleração da migração é que os avanços tecnológicos tornaram mais fácil viajar, o que é verdade, mas a tecnologia também tornou mais fácil ficar em casa e continuar a trabalhar. Ou, de facto, deslocar a produção — em vez de os trabalhadores irem para as fábricas, essas fábricas deslocam-se para os países onde a mão de obra é barata. É exatamente isso o que tem acontecido. Portanto, a tecnologia tem um impacto muito ambíguo, há muitas razões para acreditar que tanto aumenta como diminui a migração. Isso mostra que temos de ser muito mais críticos e mudar realmente a forma como pensamos o tema, porque a perceção dominante é que a miséria e a pobreza estão a levar as pessoas a afastarem-se, mas elas precisam daquilo a que chamamos agência, precisam de ter os recursos para se deslocarem. Para a maioria das pessoas, a migração é uma forma de melhorar o futuro, é um investimento, não um ato de desespero. As pessoas mais desesperadas não conseguem fazê-lo. Esta é também a razão pela qual, para as pessoas mais vulneráveis do mundo, é muito pouco provável que as alterações climáticas conduzam a uma migração de longa distância. As alterações climáticas vão prendê-las onde estão e esse é o problema. A imobilidade é o problema.

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"A política entre o México e os Estados Unidos falhou porque o que fizeram foi interromper um fluxo circular natural que já existia"

AFP via Getty Images

Outro ponto crucial que refere é que a maioria das posições de linha dura sobre a imigração tendem a produzir os efeitos contrários aos que se propõem. Porquê?
Porque não compreendem como funciona a migração. Se nos concentrarmos apenas no número de pessoas que chegam, perdemos metade da história. A migração é um processo de ir e vir: a maioria dos migrantes vem e a maioria regressa aos seus países — e podem voltar novamente. É a isto que chamamos circulação. Se quisermos compreender o que uma fronteira faz, temos de compreender o seu impacto num processo de ir e vir. E o que as fronteiras mal concebidas fazem muitas vezes é que, se não eliminam as causas da migração — como a procura de trabalho ou os conflitos —, normalmente levam as pessoas a ficar permanentemente. Porque se for muito dispendioso deslocar-se, se uma pessoa tiver de pagar muito por um visto ou um documento, ou se tiver de pagar a um contrabandista e isso for arriscado, não vai regressar [ao país de origem] depois de ter entrado. Por isso, quanto mais difícil for a entrada no país, mais pessoas tendem a ficar. É outro paradoxo. Não significa que devamos abolir os controlos fronteiriços, mas temos de pensar de forma muito mais crítica. Em muitos casos, os controlos fronteiriços que não são realmente inteligentes podem produzir os efeitos exatamente opostos. É por isso que há um milhão de marroquinos a viver em Espanha, é por isso que há 11 milhões de mexicanos a viver nos Estados Unidos — são pessoas que costumavam ir e voltar, e há muitos exemplos destes.

Já mencionou várias vezes a questão do trabalho nesta entrevista e essa é uma parte importante de toda esta constelação. Aponta uma contradição fundamental nos países ocidentais entre a tentativa de travar a imigração e a manutenção dos seus sistemas económicos e laborais. Como é que isso acontece?
Não sei como se diz em português que “não se pode ter o bolo e comê-lo” [“you can’t have your cake and eat it too”]. Têm uma?

Sim, vou traduzi-la mal mas: é “não se pode querer sol na eira e chuva no nabal”.
Não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo! O facto de termos uma imigração tão elevada não é um fenómeno natural. É, em parte, o resultado inevitável de uma sociedade envelhecida com elevados níveis de educação, o que significa que há simplesmente menos pessoas para fazer certos trabalhos, como na agricultura e nos serviços. Mas outro fator também é que as pessoas não querem fazer esses trabalhos — mesmo que estejam desempregadas, consideram-nos abaixo do seu nível. E isso explica o facto de haver uma grande procura de mão de obra. Mas, além disso, temos levado a cabo toda uma série de reformas que criaram um mercado de trabalho flexível. E ambos os fatores explicam o facto de terem sido criados muitos empregos que as pessoas locais, por exemplo os cidadãos portugueses, já não querem fazer, o que atrai os imigrantes. Não se pode ter esta economia de mercado aberta e próspera numa sociedade envelhecida e querer muito menos imigração. Isso não combina, por isso os governos têm de fazer uma escolha. E os governos que prometem aos seus eleitores que vão ter uma economia aberta e próspera, com um mercado de trabalho flexível e uma migração reduzida, fazem políticas de ilusão.

Tenta manter a moralidade fora do seu livro, mas não consigo evitar a noção de que parece haver uma hipocrisia subjacente a esta ideia de tentar captar esse tipo de mercado de migrantes e, simultaneamente, dizer a toda a gente “não queremos estas pessoas aqui”.
É hipócrita! Evito essa palavra no meu livro porque não quero fazer política, mas se me faz a pergunta, sim, é hipócrita. E é muito difícil suportar a hipocrisia, ver os políticos a culpar as pessoas que vieram para cá trabalhar por problemas que não causaram. Acusar os imigrantes de roubarem empregos ou de fazerem baixar os salários ou de trazerem a criminalidade…

Ou de se aproveitarem dos sistemas de segurança social.
Sim, e tudo isso é mentira. Acho que não coloquei o gráfico no meu livro, mas as estimativas  em Portugal mostram que os imigrantes contribuem muito mais em termos de impostos do que recebem. Sobretudo os imigrantes ilegais. E isto parece contraditório, mas os imigrantes ilegais pagam impostos de todas as formas, mas não podem beneficiar dos serviços sociais!

"Se quisermos fazer alguma coisa quanto aos receios dos portugueses com baixos rendimentos e contra a exploração dos imigrantes, temos de aumentar a proteção do trabalho. Isso significa não só mudanças nas leis, mas também na sua aplicação. Muitos países já têm todas estas leis, mas elas simplesmente não estão a ser aplicadas."

E censura também a ideia de que os migrantes devem ser autorizados por causa dos benefícios económicos que podem trazer. Ou seja, não aborda criticamente apenas o lado contra a migração, como também o lado a favor.
Para resumir uma longa história, devemos deixar de tratar a migração como um problema a resolver ou como uma solução para os problemas. É por isso que sou muito crítico em relação às pessoas que dizem “sim à migração, precisamos de mais migrantes para resolver todo o tipo de problemas”, porque essa não é uma solução a longo prazo para os verdadeiros problemas estruturais das nossas sociedades, como a desigualdade crescente, a falta de segurança no emprego e o envelhecimento. Isso exige abordagens políticas muito diferentes, pelo que a migração também não é uma solução rápida. E é isso que os defensores da migração tendem a esquecer. As verdadeiras questões são de natureza laboral e do facto de muitas pessoas, hoje em dia, devido à globalização neoliberal, se sentirem menos seguras. É claro que varia um pouco de país para país, mas há um padrão ou sentimento geral entre as gerações mais jovens, as classes médias e, certamente, as pessoas com baixos rendimentos. Não beneficiaram de todo este crescimento económico das últimas décadas. Mas isso não foi causado pela migração nem ela pode resolver o problema!

No final do livro, chega mesmo a defender que os trabalhadores com baixos rendimentos e os imigrantes não devem opor-se entre si e que ambos os grupos devem unir-se e exigir melhor qualidade de vida e melhores condições de trabalho.
As narrativas anti-imigração são, basicamente, uma forma de “dividir para reinar”. Porque o problema é que, se quisermos fazer alguma coisa quanto aos receios dos portugueses com baixos rendimentos e contra a exploração dos imigrantes, temos de aumentar a proteção do trabalho. Isso significa não só mudanças nas leis, mas também na sua aplicação. Muitos países já têm todas estas leis, mas elas simplesmente não estão a ser aplicadas. Por isso, é necessária uma verdadeira vontade dos políticos para melhorar os salários e as condições do trabalho menos qualificado. E penso que essa é a questão fundamental, porque vivemos nesta fantasia de que, no futuro, deixaremos de precisar desses trabalhadores. Precisaremos deles, sim, em especial no sector da prestação de cuidados. Esse vai ser um problema real. Para mim, a principal questão é saber quem vai cuidar das crianças, mas sobretudo dos doentes e dos idosos. É uma boa pergunta. Isso significa que não podemos resolver todos estes problemas com a migração. É uma ilusão completa. Temos de refletir sobre a forma como valorizamos este tipo de empregos. E isso, claro, pode ser alterado com legislação. Por exemplo, podemos tributar menos o trabalho menos qualificado para que as pessoas tenham mais dinheiro. Na verdade, é possível manter os custos iguais para os empregadores se tributarmos menos o trabalho das pessoas menos qualificadas. Damos-lhes benefícios fiscais, diminuímos a desigualdade e aumentamos a segurança no emprego. Isto pode ser feito através de políticas. A questão é: estarão os políticos dispostos a fazê-lo? É que é muito atrativo — se os políticos não estiverem dispostos a fazê-lo — culpar o migrante. E é esse o jogo que está a ser jogado pela extrema-direita.

No caso de Portugal, a imigração assumiu o seu lugar como um dos principais debates no país, sobretudo devido à perceção do crescente afluxo de migrantes brasileiros, africanos e do sudeste asiático. Como resultado, há cada vez mais menções de “insegurança” e, nas últimas eleições, o Chega, o partido de extrema-direita, registou um enorme aumento no parlamento. Consegue traçar um panorama num futuro breve?
Não consigo prever o futuro, mas penso que o perigo é que os partidos centristas estejam a assumir a mesma narrativa da extrema-direita. Isso é muito perigoso. Penso que os políticos centristas precisam de ganhar coragem, e espero que o meu livro ajude a fornecer provas, novas histórias, novas narrativas e novas formas de pensar sobre o assunto, para contar uma história honesta sobre a migração às pessoas. Não se trata de uma solução para os problemas nem de um grande problema a resolver, mas sim de reconhecer que a migração é, antes de mais, inevitável. Comparo-o com os mercados: não se pode ser contra ou a favor deles. Os mercados sempre existiram, as pessoas fazem negócios desde que existimos, é parte integrante do que somos. Podemos ser anti-capitalistas mas não podemos dizer “vou negar o facto de as pessoas negociarem”. E, em paralelo, as deslocações também sempre fizeram parte do nosso quotidiano, não só por motivos laborais, mas também por amor, por educação, por motivos religiosos…

Devido ao clima…
A história da humanidade começou algures em África e espalhou-se por todo o mundo, certo? Por isso, faz parte do que somos. Se dissermos que a migração é inevitável, não é uma declaração a favor, é um facto, um reconhecimento da realidade. E depois podemos pensar no que quisermos, essa é a base para um discurso político honesto sobre a migração, que é dizer “bem, é inevitável, mas pode criar problemas se grandes grupos de migrantes estiverem a ser explorados ou segregados em bairros específicos” — o que aparentemente está a começar a acontecer em Lisboa, segundo sei. Esses são problemas e é preciso resolvê-los. Os governos são responsáveis por evitar que os imigrantes se afundem e acabem em situações de segregação e pobreza.

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"As pessoas não querem fazer esses trabalhos — mesmo que estejam desempregadas, consideram-nos abaixo do seu nível"

AFP via Getty Images

O que acaba por marginalizar as comunidades migrantes e ao mesmo tempo dar razão à retórica anti-imigração, ou não?
Temos de deixar de tratar os migrantes como fatores de produção e parar de falar de migração como se se tratasse apenas de economia, porque a economia faz parte da sociedade. Penso que um dos maiores males do nosso tempo é pensar que a economia não faz parte da sociedade, ao ponto de, no que diz respeito às universidades, muitos departamentos de economia já não fazerem parte das faculdades de ciências sociais, o que é uma loucura. Para citar Max Frisch, um escritor suíço muito famoso, que escreveu sobre os trabalhadores convidados italianos na Suíça nos anos 60, ele disse “queríamos trabalhadores, mas recebemos pessoas em vez disso”. Por isso, não criem ilusões — e eu chamo a isto “a ilusão do trabalhador convidado” — de que estas pessoas estão lá apenas para trabalhar e que podem simplesmente descartá-las quando já não precisarem dessa mão de obra.

Sabemos pela história da migração que quando as pessoas estão num país durante um certo número de anos e começam a constituir família, não se vão embora. E é bom que ponham ordem na casa, para que essas crianças se integrem bem; por exemplo, na sociedade portuguesa, para que se sintam em casa e aprendam a língua portuguesa. Depois não há problema nenhum. Temos visto uma enorme capacidade de adaptação de todo o tipo de grupos migrantes. Veja-se quem é o primeiro-ministro do Reino Unido neste momento. Ele vem de um grupo de pessoas que não eram consideradas britânicas há 50 anos. Isso aconteceu com todo o tipo de grupos de migrantes no passado. Os migrantes católicos nos Estados Unidos não eram vistos como adequados — isso é agora inimaginável. No meu livro, descrevo como os alemães eram vistos como hostis à nação americana. Consegue imaginar isso?

E os italianos também.
Sim, eram um grupo grande — a dada altura, chegou a levantar-se a questão se os italianos poderiam ser considerados brancos! É realmente interessante como estas coisas estão sempre a mudar. O que geralmente acontece com os grupos que estão presentes há mais tempo é que eles próprios começam a virar-se contra os novos imigrantes. E isso tem uma dupla faceta, porque mostra que a integração acontece — as pessoas estão cá há tempo suficiente para começarem a pensar como os outros portugueses, “não quero que entrem mais pessoas” — mas também mostra que os grupos que antes eram excluídos começam a tornar-se também hostis em relação aos novos grupos. É um processo contínuo.

Normalmente, é a direita e a extrema-direita que são vistas como mais salientes na esfera política como os lados que mais combatem a migração. Mas no livro mostra que a esquerda, na prática, não é muito diferente. Como é que isso acontece?
Existe um enorme fosso entre a retórica política e a sua prática. Por isso, o que vemos, sobretudo na extrema-direita e na direita, é que falam muito duramente sobre a imigração, mas na prática não fazem muito a esse respeito. E vemos isso, de facto, na tolerância em larga escala da exploração dos trabalhadores migrantes. Trabalham ilegalmente e sem documentos e isso é o “elefante na sala”. Toda a gente sabe disso. É um segredo aberto. E quer o governo seja de esquerda ou de direita, não importa, todos compreendem que estes migrantes estão a fazer um trabalho essencial. Começou com a Covid, certo? Na verdade, em todo o setor alimentar, desde os campos até aos restaurantes, passando pelas entregas, são predominantemente os migrantes que trabalham hoje em dia, em particular na maioria dos países ocidentais.

Em Portugal é certamente esse o caso.
São toda a cadeia! Portanto, se as pessoas encomendam Uber Eats em casa, essa comida foi provavelmente colhida por migrantes, foi provavelmente processada por migrantes e foi provavelmente entregue por migrantes. E isso, durante a Covid, tornou-se muito claro, porque o setor das entregas foi muito importante durante esse período. E os políticos toleram isso, particularmente os políticos de direita, porque tendem a ser os partidos da economia e dos negócios, certo? Isso mostra um enorme fosso. Mas também à esquerda há ambiguidade, porque tradicionalmente os sindicatos, os partidos socialistas, não estavam muito satisfeitos com os trabalhadores migrantes — muitas vezes tinham alguns elementos racistas como “oh, eles vêm tirar-nos os empregos”, o que também não é verdade. Portanto, não se trata apenas de uma simples divisão entre esquerda e direita, vemos essas ambiguidades em ambos os lados, e isso reflete realmente que a maioria das pessoas tem sentimentos contraditórios sobre a questão, é muito mais sensata em relação à imigração do que os políticos, de facto. E é por isso que penso que este discurso não é sustentável.

A hipocrisia está a tornar-se tão grande que eu espero — e foi por isso que escrevi o meu livro — que, com a informação que está a ser divulgada, isso ajude os membros da sociedade, os eleitores, os jornalistas, a fazerem perguntas mais críticas. Temos de levantar a cortina de fumo e expor a hipocrisia, até ao ponto em que os políticos não podem continuar a agir desta forma, porque se está a tornar inaceitável e eles têm de assumir a responsabilidade. E não se trata apenas de questões à direita, também os governos de esquerda toleram estas situações.

"Podemos reprimir ainda mais as fronteiras, construir ainda mais vedações, mas isso só vai perpetuar os problemas. Voltando à questão inicial: aos migrantes que deixamos entrar, damos-lhes uma proteção decente, garantimos que a entrada é legal e depois controlamos melhor a situação."

Também fala de como ambos os lados do espetro político podem ser acusados de fomentar o medo para os seus próprios fins. Pode dar exemplos?
Penso que o que se vê frequentemente nas organizações de refugiados como a ACNUR ou nos ativistas climáticos é que tendem a exagerar os números quanto ao aumento dos migrantes e de refugiados, tenho um capítulo em que mostro como manipulam os números. Compreendo o incentivo, as suas intenções são boas — mas, como se costuma dizer, “de boas intenções está o inferno cheio”. O número de refugiados é muito mais estável a longo prazo do que parece, porque têm sido acrescentadas muitas categorias que insuflam os números. Isto leva a um enorme exagero quanto ao aumento da migração de refugiados e o incentivo é, obviamente, para chamar a atenção das pessoas, dos meios de comunicação social, e permitir financiamento, mas aumenta a imagem sensacionalista de que está a ficar fora de controlo. E isso, penso eu, sai pela culatra, porque cria este medo, esta ideia de que “temos de fechar as fronteiras, já não podemos proteger os refugiados, claro, porque são simplesmente demasiados”. Na década de 1950, havia mais refugiados do que atualmente, com uma população mundial muito mais pequena. E o mesmo se passa com os ativistas do clima, que sequestraram a questão da imigração. Estão a dizer: “haverá centenas de milhões de africanos a vir para a Europa”. E, evidentemente, isso não é apoiado por qualquer prova, porque sabemos que é muito improvável que as alterações climáticas — que são reais, não o estou a negar — conduzam a movimentos de massas de longa distância, porque quem serão as maiores vítimas das alterações climáticas? Os pequenos camponeses. Enfrentarão as consequências das secas, das inundações e de outros fenómenos semelhantes, que irão aumentar no futuro, sem dúvida. Mas o pequeno camponês não é, normalmente, a pessoa que pode ir para a Europa.

Na verdade, mostra que, para um pequeno camponês, mudar-se para uma cidade no seu próprio país é um choque tão grande como mudar-se para outro país.
Por exemplo, fiz trabalho de campo na Etiópia e, só para as pessoas se mudarem para Adis Abeba é muito caro. Não é acessível. Por isso, para a maioria das pessoas pobres, se tiverem mesmo de se mudar, tendem a mudar-se para a aldeia ou cidade mais próxima. Não quer dizer que isso não seja um problema. Se as pessoas quiserem mudar-se, tendem a perder as suas quintas.

Mas é um problema diferente.
Sim, é um problema diferente, e as maiores vítimas são as pessoas que estão encurraladas, que não podem mudar-se. Por isso, temos de inverter toda a lógica, porque esta ideia baseia-se numa noção errada sobre as causas da migração. Ainda estamos neste quadro de puxa-empurra, como se as pessoas estivessem a ser empurradas para fora, mas as pessoas não são como a pasta de dentes. Se apertarmos o tubo, a pasta de dentes sai; não é assim que a migração funciona. As privações extremas impedem as pessoas de se deslocarem e prendem-nas à imobilidade. Como referi, a migração é um investimento e, geralmente, é algo que as pessoas só podem fazer se tiverem alguns recursos.

Se a maior parte das políticas de migração de um lado ou de outro tendem a falhar, qual é a solução?
Não é verdade que todas as políticas de migração falhem. Há certas políticas que sim, mas isso tem a ver sobretudo com a política europeia de fronteiras externas. Penso que essa estratégia foi um verdadeiro tiro pela culatra, e o mesmo se aplica à política entre o México e os Estados Unidos, porque o que fizeram foi interromper um fluxo circular natural que já existia. E penso que isso foi mais motivado por razões políticas do que por uma forma inteligente de gerir a migração. Mas agora criámos um problema e não é fácil resolvê-lo, não podemos abrir todas essas fronteiras amanhã, isso iria criar demasiada instabilidade. É necessário encontrar gradualmente formas de facilitar a vinda e o trabalho das pessoas que vivem no Norte de África, por exemplo. Isso não significa que se abra simplesmente a fronteira, mas que se torne mais fácil ir e voltar. Penso que esta é uma abordagem sensata. Criámos toda uma população no Norte de África Ocidental completamente obcecada com a migração. Nesse sentido, as políticas saíram completamente ao lado. Precisamos de um movimento de reabertura gradual e parcial, que se baseie numa compreensão real do tipo de mão de obra de que precisamos. E depois também dar a essas pessoas certos direitos.

O que não podemos é enfiar a cabeça na área, seguir uma política de avestruz, mas isso é o que temos vindo a fazer nos últimos 33 anos, desde 1991, o que não resolveu nenhum problema. Só seria credível para os políticos se, ao mesmo tempo que construíssem uma vedação, criminalizassem os empregadores que empregam imigrantes ilegais. Não criminalizar os imigrantes — porque isso só os torna mais vulneráveis — e sim o empregador. Mas não é isso que queremos fazer e, por isso, a política falhará sempre. Não é coerente, e essa é a hipocrisia de que falámos anteriormente. Podemos reprimir ainda mais as fronteiras, construir ainda mais vedações, mas isso só vai perpetuar os problemas. Voltando à questão inicial: aos migrantes que deixamos entrar, damos-lhes uma proteção decente, garantimos que a entrada é legal e depois controlamos melhor a situação.

Um grupo de estudantes brasileiros protestam em frente à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 16 de maio de 2023. Em causa estão os comentários de um estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no dia 20 de abril, a alunos brasileiros, a propósito de uma carta dirigida ao Presidente do Brasil, Lula da Silva, aquando da sua vinda a Portugal. FILIPE AMORIM/LUSA

"O perigo é a normalização de certas ideias e sabemos pela história como isso se pode tornar perigoso"

FILIPE AMORIM/LUSA

No início do livro, fala de um caso em que estava a debater num painel televisivo e o moderador classificou-o como pró-migração, embora não fosse esse o seu objetivo. Considera que esta é uma questão que se presta particularmente a este tipo de dicotomia pró-contra ou faz parte de uma tendência mais alargada?
Penso que faz parte de uma tendência mais alargada, há uma polarização mais alargada na política. Mas penso que este tema, por ser um tema muito emocional por natureza, é muito adequado a esse efeito, porque é muito fácil criar medo em torno da migração. É por isso que é tão atrativo. Como qualquer estratega político sabe, o medo é a forma mais fácil de reunir as pessoas em torno de um líder forte, porque assim este pode apresentar-se como o salvador que vai ganhar a luta contra o inimigo externo — neste caso, a migração ilegal ou a migração em geral. Para alguém se manter no poder, ou faz uma guerra ou inventa um inimigo, como um inimigo migratório. É muito atrativo para os políticos, mas é incrivelmente irresponsável, especialmente para os políticos tradicionais. Voltando à nossa conversa, o maior perigo é que os políticos centristas assumam a narrativa da extrema-direita. E isso também não é sensato, porque não lhes vai fazer ganhar eleições, sabemos pela ciência política que as pessoas votam no original de qualquer maneira. Mas também o torna aceitável, o perigo é a normalização de certas ideias e sabemos pela história como isso se pode tornar perigoso.

Poder-se-ia argumentar que, uma vez que a maioria dos políticos — como refere — pega em argumentos e factos sensatos e os distorce em seu benefício, talvez esteja a travar uma batalha perdida. Mas mostra esperança no futuro. O que é que o sustenta?
Temos sempre este pendor para a polarização, porque na política é preciso algum nível de polarização e simplificação. Compreendo isso. A política não é uma ciência social. Mas penso que fomos simplesmente longe demais e o meu otimismo baseia-se em estudos de opinião pública que mostram que a maioria das pessoas tem sentimentos mistos, são ambivalentes em relação à imigração. O número de racistas radicais não é tão grande como se pensa e o número de pessoas que apoia fronteiras abertas também não. A maioria das pessoas está um pouco confusa e há uma enorme necessidade de melhor informação. A segunda razão que me leva a ser otimista são as reações ao meu livro. Muitas pessoas do centro político ou leitores comuns enviaram-me cartas ou e-mails a dizer “fiquei tão aliviado ao ler o seu livro”. Porque muitas pessoas sentem que há algo de errado com o que os políticos nos dizem, mas não temos nenhuma narrativa alternativa e há uma falta de coragem política para contar uma história diferente. Penso que chegou o momento de mudar a situação, porque já vimos isso acontecer com muitos outros temas no passado, em que há uma mudança repentina de paradigma. Se isso não acontecer, a narrativa de extrema-direita está a assumir o controlo e isso é perigoso. Penso que é urgente, estou preocupado mas também otimista.

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