Em 2013, sentado na cadeira do estúdio da TVI onde comentava semanalmente, Marcelo Rebelo de Sousa gesticulava como habitualmente para expor a sua análise e falava do Presidente da República Cavaco Silva. “É um herbívoro, não é carnívoro. De quem é herbívoro não se espere vê-lo refastelado a comer carne. Come erva”. A frase ao estilo National Geographic pretendia mostrar uma espécie presidencial mais frugal quanto ao entendimento dos poderes do Presidente da República. Marcelo avisava, já na altura, que não era essa a sua “visão”. E a seis meses de terminar um mandato em Belém, de facto, já deu uso a um dos poderes mais relevante de um Presidente — o veto — quase tantas vezes como Cavaco Silva em dois mandatos inteiros — 22 dele, até agora, e 25 do antecessor. Eis a espécie presidencial carnívora.
Marcelo está também à beira de bater o seu recorde pessoal num ano, em matéria de diplomas (do Governo ou do Parlamento) que envia para trás por discordar do seu conteúdo. Ainda estamos em agosto e Marcelo já vetou tanto como em todo o ano de 2018 (o com mais vetos até aqui): usou seis vezes este poder. E a grande maioria (quatro) neste verão. Aliás, quase um terço (27,7%) do total de vetos desde março de 2016 aconteceu nestes meses (entre junho e agosto.) A relevância política também foi crescente, sobretudo em dois deles. E o mandato ainda não acabou.
Dias 10 e 12 de agosto o Presidente vetou um diploma do Parlamento que reduzia o número de vezes que o primeiro-ministro tem de ir à Assembleia da República debater temas europeus e também o número mínimo de assinaturas para que uma petição pudesse ser discutida em plenário. Em ambos os vetos pesava o mesmo argumento, embora os temas fossem diferentes: a democracia está a fechar-se numa caixa pequena e bafienta. Sobretudo depois daquele momento politicamente sensível, no qual o Presidente não pôde intervir, que foi o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro no Parlamento.
Por ser uma alteração ao regimento da Assembleia da República, o Presidente não teve palavra a dizer nesse processo legislativo que foi polémico e aprovado apenas pelo PSD e PS — e com os socialistas a dividirem-se: 28 votaram contra e cinco abstiveram-se. Marcelo acabou por ir à volta e tentar, através do veto que reduziu o número de vezes que o primeiro-ministro tem de ir ao Parlamento debater Europa com os deputados, levar António Costa mais vezes ao Parlamento. Se os quinzenais o tiravam de cena, um travão à redução dos debates europeus podia trazê-lo de volta. Sendo certo que houve um acerto de posições sobre o fim dos quinzenais entre os líderes do PSD e PS (Rui Rio e António Costa), Marcelo estava também a enviar uma mensagem clara para os dois rostos do bloco central de hoje.
E acabou por dizê-lo em viva voz, em pleno agosto à margem de uma visita a três hotéis em Lisboa. “É mais cómodo não fazer tantos debates para ter mais tempo livre para poder decidir, ir viajar, visitar, ponderar. Mas os debates cumprem uma função essencial. Podem ser repetitivos, podem ser incómodos mas é a democracia a ser”. Puxão de orelhas dado e outro no aumento de assinaturas necessárias para que uma petição de cidadãos seja debatida no Parlamento. “Um sinal negativo para a democracia portuguesa”, vetou Marcelo.
O último veto desta lista foi à lei da nacionalidade e teve um peso politicamente significativo. No Parlamento foi aprovado à esquerda (PS, Bloco, PCP, PAN, PEV, IL e as deputadas não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues), contra a vontade da direita que se opôs às alterações que permitiam que os filhos dos imigrantes legais que estivessem a residir em Portugal há um ano pudesse ter nacionalidade portuguesa à nascença.
As alterações passaram no Parlamento, mas não em Belém, com Marcelo a levantar problemas de justiça na norma que prevê que um estrangeiro que tenha filhos com um português possa ter nacionalidade portuguesa. Desfavorece casais sem filhos ou com filhos que não são comuns, disse Marcelo para travar a alteração que desagradou a direita.
Presidenciais à vista. Cavaco desapareceu, Marcelo não sai de cena
O volume de legislação que entra em Belém nesta fase concreta do ano — que Cavaco Silva a dada altura até disse que seria necessário um jipe para transportar para a praia da Coelha, onde passava as férias — pode explicar uma parte desta catadupa de vetos que aparece agora, mas não explica tudo. Tanto que, em 2019, no verão mesmo antes das legislativas e quando o Parlamento ainda carrega mais no acelerador da produção legislativa (e no ano passado na última sessão antes do fecho aprovou meia centena de diplomas), Marcelo apenas vetou um diploma (sobre a Procriação Medicamente Assistida, a PMA). E no verão de 2018, só vetou um diploma nesta época e no ano anterior outro.
Os vetos sobre o Parlamento e a Nacionalidade desenharam um três em linha de peso na reta final do (primeiro) mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. Numa altura em que a recandidatura (ainda) não foi anunciada, o Presidente em funções diverge totalmente da opção tomada pelo seu antecessor. No último ano de mandato, entre dezembro de 2009 e janeiro de 2011, o Presidente Cavaco Silva não vetou um único diploma que lhe tenha chegado às mãos. Se Cavaco foi “herbívoro” no uso deste poder, Marcelo foi um carnívoro com apetite, quase batendo o recorde pessoal neste seu último ano do primeiro mandato em Belém. Aliás, nos primeiros cinco anos como Presidente, Cavaco vetou apenas 14 diplomas, contra os tais 22 de Marcelo. Nesse tempo, o então Presidente coabitou quase todo o tempo com um Governo de maioria absoluta do PS, já Marcelo lidou com a “geringonça” da esquerda.
Certo é que revelam estratégias diferentes, quando o objetivo da reeleição é coisa praticamente certa também em Marcelo, como era em Cavaco naquela fase. O anterior Presidente anunciou recandidatura no final de outubro de 2010 e o atual está preparado para decidir em novembro. E até lá não é líquido que não continue a vetar. Nada o impede, já que o único poder presidencial que fica limitado nos últimos seis meses do mandato é o de dissolução da Assembleia da República, não o de veto.
Mas em 2010, último ano do seu primeiro mandato, Cavaco ficou em branco em matéria de vetos, estava em funções o Governo saído da eleições de 2009, liderado por José Sócrates. Depois de quatro anos de maioria absoluta PS, uma maioria relativa no Parlamento com alicerces mais frágeis para a governação. Cavaco já estava em guerra com Sócrates, depois do caso das escutas em Belém, mas mesmo assim manteve-se neutro, em matéria de vetos dos diplomas do Parlamento e do Governo, em véspera de presidenciais.
Já Marcelo quer mostrar essa neutralidade mas pela ação e vai vetando indiscriminadamente, à esquerda e à direita, em temas não tão vincados ideologicamente como os que teve de enfrentar nos primeiros anos da legislatura — quando travou a gestação de substituição (2016) ou a mudança de género nos documentos aos 16 anos (2018). Pode, assim, mostrar independência face aos partidos, quando se aproximam presidenciais. Mostrar que não tem receio de enfrentar qualquer força política mesmo quando vai a votos, colocando-se num plano suprapartidário. É politicamente livre. Um slogan relevante numa candidatura para um cargo que é unipessoal.
E se olharmos para a evolução do número de vetos por outro prisma, vemos um Presidente bem mais interventivo na última metade do mandato. Nos primeiros dois anos, Marcelo só usou cinco vezes este poder (para travar a gestação de substituição, alterações ao segredo bancário, o estatuto dos militares da GNR em decreto do Governo). Entre 2018 e o momento atual, já o fez por 17 vezes: a lei do financiamento dos partidos, os engenheiros a aprovar projetos de arquitetura, a regulamentação do transporte de passageiros em veículos descaracterizados, a mudança de género no civil aos 16 anos, o direito de preferência dos arrendatários, sobre o tempo de serviço dos professores, a lei do lobbying, o decreto do Governo sobre terapêuticas não convencionais, a farmácia do Hospital de Loures, a Casa do Douro, novamente a gestação de substituição e naqueles seis mais recentes que apareceram de rajada entre 23 de junho e 21 de agosto deste ano.
O Presidente professor catedrático especialista em Direito Constitucional abriu o livro dos vetos, mas foram quase sempre políticos, nem mesmo quando teve dúvidas constitucionais enviou diplomas para o tribunal competente. Aliás, só enviou para fiscalização preventiva da constitucionalidade um único diploma até hoje, há um ano, na segunda vez que lhe chegou às mãos a gestação de substituição (ou barrigas de aluguer). Estreou-se nos envios para o Tribunal Constitucional na mesma matéria com que se tinha estreado nos vetos logo no início do mandato. E os juízes deram-lhe razão, considerando que o diploma violava os direitos da gestante ao restringir a possibilidade de desistir a qualquer altura do processo do que estava estabelecido.
Barrigas de aluguer. Marcelo envia pela primeira vez um diploma para o Tribunal Constitucional
E já este ano, quando mandou para trás o reforço aprovado contra a vontade do PS do apoio extraordinário aos sócios-gerentes, suscitou dúvidas constitucionais para justificar o veto. No entanto, não enviou o diploma para fiscalização prévia do TC. Apenas atirou essa responsabilidade para os ombros da Assembleia da República, avisando que aquela alteração “tem suscitado, todavia, dúvidas de constitucionalidade, por eventual violação da ‘lei-travão'”. Aqui salvou o Governo. Mas daqui até ao final do mandato se verá.