O Presidente da República enviou pela primeira vez um diploma para fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional. Marcelo Rebelo de Sousa tem dúvidas sobre as alterações feitas ao decreto da Assembleia da República sobre a Procriação Medicamente Assistida (PMA), nomeadamente sobre a norma do arrependimento da gestante relativa à gestação de substituição (vulgarmente conhecida por barrigas de aluguer). A decisão foi publicada esta segunda-feira no site oficial da Presidência. O TC tem 25 dias para se pronunciar, a partir do momento em que receber o diploma. Se chumbar o diploma, a resolução da questão ficará para a próxima legislatura.

O decreto foi aprovado pelo Parlamento no início de 2017 (com os votos contra do CDS e a abstenção do PSD) e depois, em fevereiro, enviado para o Tribunal Constitucional para fiscalização sucessiva — pelo CDS e por 15 deputados do PSD. Em abril de 2018, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional a norma que não admitia que a gestante de substituição pudesse voltar atrás com o acordo estabelecido até ao momento da entrega da criança. Na sequência desta decisão do Constitucional, o Bloco de Esquerda propôs alterações ao regime jurídico mas sem tocar neste ponto concreto.

Tribunal Constitucional chumbou normas fundamentais da lei das barrigas de aluguer

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A última alteração feita ao diploma foi aprovada a 19 de julho deste ano, em votação final global, com os votos favoráveis do PS, do BE e 21 deputados do PSD, seis abstenções sociais-democratas e os votos contra do CDS, PCP e restante bancada do PSD e não tocou na matéria que tinha sido apontada pelo TC. Agora, depois de avaliar o decreto, Marcelo Rebelo de Sousa concluiu que o diploma mantém “o regime que tinha sido declarado inconstitucional” e quer saber se isso “não desrespeita a declaração com força obrigatória geral do Tribunal, persistindo numa solução que, da perspetiva do Tribunal, viola a Constituição”.

Assim, o Presidente da República “requereu a fiscalização preventiva, permitindo ao Tribunal verificar a conformidade das normas agora aprovadas com a Constituição, à luz da sua própria jurisprudência”, de acordo com a nota divulgada pela Presidência. Em abril, o TC tinha considerado que limitar a possibilidade de revogação do consentimento da gestante de substituição impedia “o exercício pleno do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade indispensável à legitimação constitucional da respetiva intervenção na gestação de substituição até ao cumprimento da última obrigação essencial do contrato de gestação de substituição, isto é, até ao momento da entrega da criança aos beneficiários”. Os juízes consideravam que isto violava o “direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família”.

Recorde-se que na altura desta decisão sobre o diploma, o Presidente sublinhou que o TC “decidiu soberanamente e, portanto, nesse sentido, o que posso dizer é que tem de se cumprir aquilo que foi decidido”. A promulgação de Marcelo, nessa altura, tinha seguido com “algumas observações”, notou então o Presidente.

Decisão do Tribunal Constitucional sobre lei de Procriação Medicamente Assistida tem de ser respeitada e cumprida

A segunda primeira vez de Marcelo com o mesmo diploma

Mas a história deste diploma é mais longa ainda. A primeira tentativa de alterá-lo surgiu logo em 2016, com o Bloco de Esquerda a propor a legalização da gestação de substituição. O diploma foi aprovado a 13 de maio com os votos favoráveis de PS, BE, PEV e PAN e ainda de 24 deputados do PSD. Mas quando o analisou, Marcelo considerou que não estavam “salvaguardados os direitos da criança a nascer e da mulher gestante” nem havia o “enquadramento adequado do contrato de gestação”. O Presidente da República devolveu a palavra ao Parlamento e na argumentação aconselhou os deputados a terem em conta o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), que tinha manifestado a sua “preocupação” quanto ao diploma. Este foi o primeiro veto de Marcelo Rebelo de Sousa e volta agora a ser matéria de estreia, no envio de diplomas para a fiscalização preventiva do TC cuja intervenção o Presidente não tinha pedido até agora.

O juiz desembargador Eurico Reis — que se demitiu de membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida depois da decisão de abril do TC — disse à rádio Observador que “o Tribunal Constitucional criou um problema gravíssimo do qual resulta que algumas centenas de crianças, desde a publicação do acórdão até agora, não nasceram. Este é o efeito desta brincadeira toda”. Para Eurico Reis, “foi o TC que criou este problema e o Presidente fez bem em devolver a bola ao Tribunal”, embora acredite que “muito provavelmente o que vai acontecer é que o Tribunal vai declarar o diploma inconstitucional” já que “que não foi dada satisfação a uma das principais exigências” que fazia.

O ex-membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida defende que, após as legislativas, uma nova composição parlamentar possa “ultrapassar o acórdão” do TC já que “os juízes do palácio Ratton não escrevem na pedra”, defende. O que o juiz considera que “juridicamente é possível, já que há um refrescamento da legitimidade do Parlamento” e que “se não tivesse havido um conjunto de deputados do PSD que aceitaram assinar o requerimento do CDS, a lei estava em vigor, estavam crianças a nascer e casais a serem felizes”.

Estatuto da Entidade da Transparência aprovado com “pertinentes reservas”

Numa outra nota publicada esta tarde, a Presidência avançou que Marcelo promulgou dois diplomas aprovados no Parlamento: o Estatuto da Entidade para a Transparência, que fazia parte do pacote da transparência, e as alterações a lei que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde no sentido de estabelecer “princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério”.

No que diz respeito ao primeiro diploma referido, o Presidente sublinhou que promulgou “dada a maioria claramente superior a dois terços”, mas que mantém “pertinentes reservas emitidas”. “Não obstante as pertinentes reservas emitidas a respeito deste diploma, dada a maioria claramente superior a dois terços que obteve e a potencial relevância desta entidade para a aplicação do novo regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, o Presidente da República promulgou o diploma que aprova o Estatuto da Entidade para a Transparência”, refere na nota.

A nova Entidade vai funcionar na alçada do Tribunal Constitucional e vai  fiscalizar as declarações de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos públicos e políticos (que foi alargada a magistrados e autarcas, também no pacote legislativo da transparência). Foi aprovada no Parlamento, em votação final global, pelo PS, PSD e BE. PCP e CDS votaram contra.

Texto publicado no site da Presidência sobre o envio do diploma da PMA para o TC:

“O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva do diploma sobre procriação medicamente assistida1. O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto da Assembleia da República que alterou o regime da procriação medicamente assistida (Sétima alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho).

2. O regime anteriormente aprovado foi declarado inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018, emitido em 24 abril de 2018.

3. O entendimento que fez vencimento no Tribunal foi o da inconstitucionalidade do regime, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos “beneficiários”, por violação do direito daquela ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva a estes direitos.

4. O Presidente da República solicitou ao Tribunal que apreciasse se a alteração aprovada pelo Decreto da Assembleia da República, mantendo o regime que tinha sido declarado inconstitucional, não desrespeita a declaração com força obrigatória geral do Tribunal, persistindo numa solução que, da perspetiva do Tribunal, viola a Constituição.

5. Tendo em conta o que antecede, o Presidente da República requereu a fiscalização preventiva, assim permitindo ao Tribunal verificar a conformidade das normas agora aprovadas com a Constituição, à luz da sua própria jurisprudência.”