Em 2017, Hernán Díaz foi finalista do Prémio Pulitzer, na categoria de ficção, com o romance Ao Longe. A nomeação foi uma surpresa. O romance, o primeiro do escritor, tinha sido publicado por uma pequena editora independente do Minneapolis, a Coffee House Press, e Díaz nem sequer tinha agente. Ao Longe e o seu autor pareciam ter surgido “do nada”, como afirmou o The New York Times. À estranheza da nomeação, seguiu-se o assombro da qualidade literária do livro de Díaz, uma versão diferente do habitual romance histórico norte-americano sobre o Velho Oeste, a febre do ouro da Califórnia e a Guerra Civil norte-americana. A personagem principal, Håkan Söderström, não é o habitual cowboy. Nascido na Suécia, viajou para a América com o irmão para fugir à pobreza; mas perdeu-se dele e acabou, por engano, em São Francisco. O seu destino final era Nova Iorque. Decidido a reencontrar-se com o irmão, Håkan acaba a atravessar a Califórnia sozinho, quase sempre a pé. Eventualmente o sonho de Nova Iorque desfaz-se e o “Falcão”, como é conhecido pelos americanos, isola-se ao mesmo tempo que o seu mito cresce.
A questão do mito é central na obra de Díaz, um argentino que cresceu na Suécia, estudou em Inglaterra e Nova Iorque e vive em Brooklyn. Tanto em Ao Longe como no seu novo romance, Trust, nomeado este ano para o Booker Prize, o escritor pegou nos mitos calcificados da cultura americana e virou-os do avesso, questionando-os e dando voz àqueles que habitualmente não a teriam. Em Trust, romance de estrutura complexa que tem a bolsa de Nova Iorque e a crise de 1929 como pano de fundo, Díaz tentou mostrar como certas narrativas são consideradas desde logo verdadeiras apesar de não as serem. As múltiplas vozes do romance contrastam com o silêncio que rodeia as personagens, que, apesar de não viverem isoladas de tudo e todas como Håkan, são também uma espécie de eremita numa das cidades mais movimentadas do mundo.
Foi sobre a desconstrução dos mitos e tradições, e das semelhanças entre os dois romances, que conversámos com Hernán Díaz em Lisboa, depois da passagem por Óbidos, onde participou no Festival Literário da vila. Trust será publicado em Portugal em fevereiro do próximo ano pela Livros do Brasil, a editora responsável pela versão portuguesa de Ao Longe.
Trust é um romance que tem a bolsa de Nova Iorque e a crise de 1929 como pano de fundo. O mundo das finanças não é, à partida, um tema que se preste à literatura. Porque é que o escolheu?
Acabou de explicar porquê. Escolhi-o precisamente porque não é muito literário. Achava intrigante e quase chocante que num país como os Estados Unidos, que é tão definido pelo capital, pela acumulação de riqueza e pelo dinheiro, nas suas mais variadas formas, não existisse um grande conjunto de livros que falassem sobre dinheiro. Então decidi escrever um.
Porquê é que escolheu os anos 20 e 30? Porque foi quando tudo começou?
Nem por isso, não acho que foi quando tudo começou. Acho que tudo começou antes, no tempo de Ao Longe. Sinceramente? Quando comecei a pensar em Trust, pensei que ia escrever um livro que se passasse nos dias de hoje. Depois, quando pensei mais um bocadinho sobre isso, percebi que, se escrevesse um romance sobre dinheiro nos dias de hoje, haveria muitos emails, sms, computadores, análises de dados. Não queria que a minha personagem permanecesse sentada em frente a um computador. Não queria fazer isso. É tão aborrecido escrever sobre pessoas que trocam mensagens, que é algo que ainda ninguém desvendou na ficção. Mas estava muito interessado no projeto. Gosto muito de trabalhar com momentos históricos marcantes, então pensei, ok, qual é o grande momento das finanças nos Estados Unidos? É a crise de 1929. Pensei nos romances escritos sobre esse período, os anos 20 e 30, e cheguei à conclusão que nenhum fazia o que queria que fizessem. Esse buraco, essa ausência, foi uma grande oportunidade para mim.
Escreveu o livro que achava que faltava?
Sim. Não digo que tenha sido bem sucedido, mas foi uma das coisas que me motivou.
Foi nos anos 20 e 30 que nasceram muitos dos mitos americanos relacionados com dinheiro e riqueza. Teve isso em mente enquanto escrevia Trust?
Sim, sempre. Tentei examinar esses mitos. Tenho sempre interesse em mitos altamente calcificados, em estereótipos, porque sinto que fazem muito trabalho por nós — os leitores encontram esses estereótipos e sabem que as coisas vão decorrer de determinada forma. Podemos fazer um golpe de judo e mover o estereótipo. Gosto quando isso me acontece enquanto leitor.
Gosta da surpresa?
Sim, gosto disso. Peguei em muitos estereótipos daquela época e tentei subvertê-los. Nos anos 20, o estereótipo é o da “Era do Jazz”, que é um termo que odeio.
Porquê?
Porque…
… Porque odeia jazz?
Não, adoro jazz. Costumava tocar jazz. Levo o jazz muito a sério, mas [a expressão] torna trivial, leve, um momento na história americana que foi muito importante. As administrações da “Era do Jazz” eram administrações republicanas horríveis, que fizeram muito mal financeira, social e politicamente, especialmente as administrações de Harding [Presidente entre 1921 e 1923], Coolidge [1923-1929] e Hoover [1929-1931], que restringiram a emigração de países muito específicos com o “Ato de Imigração” de 1924, que determinou que italianos e asiáticos não podiam ir para os Estados Unidos. [Esses presidentes] cortaram nos impostos dos ricos e desregularam os mercados — eram isolacionistas e excecionalistas. Harding criou o slogan “America First” [“A América Primeiro”]. Todas as coisas que vemos e com as quais ficamos espantados na década de 2020, foram feitas pelos republicanos na década de 1920. Quando as pessoas falam sobre a “Era do Jazz”, pensam nas festas do Scott Fitzgerald. Acho que isso ajuda a esconder esse outro lado, que foi terrível e que, em última análise, conduziu à Grande Depressão dos anos 30.
Estava aqui a pensar que fala muito sobre música no seu livro. Calculo então que seja um dos seus interesses.
Sim, sou um músico falhado [risos].
Se não fosse escritor, seria músico?
Sim, mas não tinha talento suficiente. Não tenho talento, ponto final. Era evidente.
Que instrumento é que tocava? Piano?
Comecei por tocar saxofone e depois eventualmente comecei a tocar um bocadinho de piano e a estudar composição, harmonia… Levava isso a sério, mas não era bom o suficiente.
As passagens que falam sobre música dão a entender que tem um grande conhecimento sobre a área. Estão repletas de termos técnicos.
É um romance cheio de música. Queria escrever sobre música, também porque adoro a música dos anos 20 e 30. Não necessariamente o jazz desse período — tenho mais interesse no jazz dos anos 50 e 60. Gosto da música clássica daquele tempo, do alto modernismo, de compositores como Anton Webern, Arnold Schoenberg e Alban Berg. Queria incluir isso no enredo do romance.
Acredita que existem semelhanças entre o mundo das finanças e o da literatura, por exemplo, na forma como ambos criam mitos?
Sim, acho que existem semelhanças. Acho que as finanças, apesar de serem uma coisa muito real e que afeta as nossas vidas quer queiramos ou não, dependem muito da ficção, pelo menos de três formas. A primeira penso que é muito óbvia — tem a ver com disfarçar e sanear as origens criminais que estão sempre por trás de grandes quantias de dinheiro. Isso é muito óbvio, acho que não precisa de ser explicado. A segunda maneira em que as finanças dependem da ficção está relacionada com a forma como se apresenta como uma disciplina objetiva e científica. Claro que existem partes da economia que dependem muito da matemática e que são objetivas até certo ponto, mas é igualmente verdade que existe uma grande porção da vida económica e financeira em geral que não é de todo objetiva, que tem a ver com discussões na arena pública, com consenso e com a criação de políticas. A ficção é que todos esses aspetos são apresentados como sendo verdades objetivas e matemáticas. Vemos isto todos os dias nos jornais e no discurso público — a ficção da objetividade na economia. A terceira forma é, na verdade, a mais importante — o dinheiro é ficção. É algo de que falo no livro. Não há nada inerente ou material que ligue uma nota de cinco euros ao seu poder de compra, é apenas uma forma de convenção. É uma ficção amplamente aceite. Portanto, sim, em resumo, existe uma relação entre ficção e finanças [risos].
O romance está dividido em quatro partes, que correspondem a quatro obras diferentes. Porque é que estruturou o livro dessa forma?
Tem a ver com as ficções em torno do dinheiro e com as ficções de uma maneira mais ampla. As ficções sobre poder. Estas são, claro, ficções masculinas. E também, quando se lê romances ou relatos históricos sobre poder, é muito claro quem é que tem voz e quem é que não tem. Para mim, o livro passou a ser sobre vozes. Em vez de simplesmente falar sobre vozes, porque não fazer das vozes um tópico do romance? Porque não tornar as vozes uma configuração formal do livro? É em parte por isso que o livro se chama Trust, porque também estou interessado na confiança que temos em certas narrativas, na linha que divide história e ficção. Em vez de falar apenas sobre isso, queria que o leitor experimentasse a forma como acreditamos mais facilmente que certas histórias estão mais próximas da verdade do que assumimos que estão totalmente divorciadas da verdade. Achei que a melhor forma de o fazer era expor o leitor a essa experiência.
Ao criar quatro vozes diferentes, teve de se distanciar da sua própria voz. Foi difícil de o fazer?
Sim, foi, mas também foi muito divertido tornar credível para o leitor que estava a ler quatro autores diferentes sem que fosse demasiado óbvio. Tentei ser o mais subtil possível, tornando ao mesmo tempo óbvio que eram quatro autores diferentes. Foi preciso editar muito.
Teve medo que os leitores ficassem confusos com a estrutura do livro?
Não, penso sempre que os meus leitores são mais inteligentes do que eu. Confiei neles. O título, Trust, também se refere a isso, ao leitor deste livro.
Falou em tornar as vozes do livro credíveis. Andrew Bevel é uma personagem algo excêntrica, mas é também muito real. Inspirou-se nalguma figura história para criar essa personagem?
Nem por isso. Li muitas autobiografias escritas por homens muito ricos e poderosos daquele tempo. São todos mencionados no livro. Dei à Ida [Partenza] a minha própria pesquisa. Tudo o que ela faz, eu fiz. Todos os nomes que estão no livro, que ela leu, eu também li. Andrew Carnegie, Calvin Coolidge, Henry Ford… O que tentei tirar desses relatos, que é o que a Ida faz também, foi o tom de autoridade inflamada, a vaidade, a pomposidade, as vidas sem falhas. Estava mais à procura de uma pesquisa retórica do que em encontrar detalhes. Ele é totalmente inventado. É a resposta curta [risos]: ele é totalmente inventado.
No final do romance, percebemos que Trust não é apenas sobre riqueza e sobre como essa riqueza é alcançada, mas também sobre uma mulher, cuja história é apagada por um homem rico e poderoso. Ou seja, não apenas um livro que explora os bastidores do mundo das finanças, é também um romance sobre como certas vozes são apagadas da história.
Sim, acho que é mais sobre isso do que sobre dinheiro. Para mim, os projetos [literários] começam de uma forma e, à medida que trabalho neles, seguem direções que não antecipei. E eu acolho-as.
É a parte divertida do processo.
Sim. Caso contrário, obedeceria a um padrão e seguiria um método, não teria vida. Trust começou por ser um romance sobre dinheiro, e é um romance sobre dinheiro, mas é exatamente o que disse. Disse-o de uma forma muito bonita, não tenho mais nada a acrescentar. Está correto.
Trust e Ao Longe, o seu primeiro romance, são muito diferentes. Por exemplo, o primeiro fala sobre a cidade e o segundo sobre a natureza, o deserto. Mas têm algumas coisas em comum. Ambos exploram a forma como as histórias são contadas e como os mitos nascem. Parece ser algo que de facto lhe interessa muito.
Sim, muito. Acho que a literatura que me interessa enquanto escritor, mas primeiro que tudo como leitor, é a que tenta responder à pergunta “o que é a literatura?” através da escrita. A maioria da literatura de que gosto tenta responder à pergunta “o que é um romance”, “o que é literatura”, “como é que uma história é contada”. Alguns livros fazem-no de forma muito aberta, como Fogo Pálido, de Vladimir Nabokov, que é um romance que tenta lidar com aquilo que é a literatura. Noutros não é tão claro. Acho que Moby Dick é, em última análise, sobre isso. Acho que a grande busca — a baleia branca — é o romance enquanto forma. Tenta entendê-la e caçá-la e é por isso que está tão preocupado com taxidermia e classificação. Enfim, é uma grande nota de rodapé, mas penso que é por isso que aquilo que escrevo tem essa dimensão — mais cedo ou mais tarde, o ato de escrever torna-se parte daquilo que faço. Por outro lado, tenho um grande interesse nos Estados Unidos enquanto objeto. É uma coisa estranha, os Estados Unidos.
A cidade de Nova Iorque está presente nos dois romances.
Sim, bem, sou nova-iorquino. Adoro Nova Iorque e Nova Iorque é, em si, uma besta indomável. Fascina-me a forma como se move, como se muda e como se transforma. Acho que vou sempre, de uma forma ou outra, escrever sobre isso.
A vida de Nova Iorque contrasta fortemente com a solidão das personagens.
Sim.
A solidão e o isolamento são temas que podemos também encontrar nos dois romances. Andrew e Mildred Bevel são pessoas muito solitárias que vivem numa quase reclusão. Häkan, de Ao Longe, também é assim. A certa altura, procura mesmo evitar o contacto com qualquer humano, escondendo-se durante anos.
Sempre escrevi sobre solidão. A minha dissertação de doutoramento foi sobre solidão e isolamento. É um tópico ou uma questão que me interessa, não consigo bem saber porquê. À medida que os anos vão passando, tenho-me tornado mais e mais social e gregário [risos].
Acho que normalmente é o contrário.
Sim, tem razão, mas talvez tenha a ver com o facto de que ler e escrever são atividades solitárias. São formas muito dissonantes de solidão. Porque, claro, estamos muito sozinhos quando escrevemos ou lemos. Estamos em comunhão profunda com outra coisa, com o escritor, mas sobretudo com a linguagem. A linguagem é o lugar mais social que os humanos alguma vez criaram. Quando achamos que estamos mais sozinhos, submergidos na linguagem, estamos, na verdade, mergulhados nessa corrente social muito forte.
E quando escrevemos um diário, como Mildred Bevel faz?
Não tenho muita certeza quanto a isso. É algo que discuto no romance. Nunca mantive um diário. Tentei fazê-lo, mas sinto sempre que estou a ser desonesto comigo mesmo. Tento parecer bem e mais interessante do que sou. Então, o que tenho é uma personagem, não sou bem eu. E é tudo o que vamos conseguir ter [num diário], uma personagem.
É sempre um trabalho de ficção?
Acho que sim, é uma versão de nós próprios. E não acredito por um segundo que seja que uma pessoa que escreve um diário não imagina a certo ponto um leitor que não seja ele próprio.
Retrabalhou nos dois romances os géneros literários estabelecidos desde a ficção histórica ao livro de memórias. Esse trabalho de reinvenção tem a ver com aquilo de que falámos há pouco, com o seu interesse nos estereótipos?
Tem muito a ver com isso, com trabalhar as convenções hereditárias e as expectativas. Tenho muito interesse pelos géneros por essa razão e gosto de brincar com eles por todas as razões que discutimos.
É algo que gostaria de continuar a fazer?
Acho que sim. Não tenho um plano, não tenho um manifesto, um programa que estou a seguir. Mas, sim, acho que talvez o faça.