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O cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique, tem liderado um processo de reforma acelerada na Igreja alemã que ameaça resultar num cisma
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O cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique, tem liderado um processo de reforma acelerada na Igreja alemã que ameaça resultar num cisma

AFP/Getty Images

O cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique, tem liderado um processo de reforma acelerada na Igreja alemã que ameaça resultar num cisma

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Homossexuais, celibato e mulheres. Podem os bispos alemães conduzir a Igreja a um cisma do século XXI?

Progressistas alemães querem avançar em temas fraturantes como a moral sexual, o celibato e a ordenação de mulheres mais rápido do que a Igreja de Francisco consegue suportar. Pode resultar num cisma?

O evento foi anunciado em tom de provocação: na semana de 10 de maio, um grupo de padres católicos vai abençoar “pessoas que se amam” em várias igrejas da Alemanha. “Não queremos excluir ninguém”, lê-se na página em que o desafio foi lançado. “Celebramos a diversidade dos diferentes planos de vida e histórias de amor das pessoas e pedimos a bênção de Deus. Sem qualquer segredo.” A página inclui também uma lista de igrejas paroquiais que já anunciaram as datas, horas e locais das celebrações — e garante que todos os casais serão bem-vindos, independentemente do estado civil ou da orientação sexual.

A afronta à hierarquia eclesiástica é óbvia. Entre os organizadores do desafio encontram-se os padres alemães Bernd Mönkebüscher e Burkhard Hose, os dois autores de um controverso abaixo-assinado lançado em março, depois de o Vaticano ter tornado público um pronunciamento considerando que “a bênção das uniões homossexuais não pode ser considerada lícita”. No abaixo-assinado, os dois padres garantem que vão desobedecer à ordem da Santa Sé.

Vaticano: “A benção das uniões homossexuais não pode ser considerada lícita”

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“Face à recusa da Congregação [para a Doutrina da Fé] em abençoar uniões homossexuais, nós erguemos as nossas vozes e dizemos: vamos continuar a acompanhar as pessoas que entrem em relações estáveis e vamos abençoar as suas uniões. Não recusaremos uma cerimónia de bênção. Fazemo-lo pela nossa responsabilidade enquanto pastores, que prometem às pessoas, nos momentos importantes das suas vidas, as bênçãos que só Deus dá”, escreveram os dois sacerdotes.

"Vamos continuar a acompanhar as pessoas que entrem em relações estáveis e vamos abençoar as suas uniões. Não recusaremos uma cerimónia de bênção."
Abaixo-assinado iniciado pelos padres alemães Bernd Mönkebüscher e Burkhard Hose

“Respeitamos e valorizamos o seu amor e também acreditamos que as bênçãos de Deus estão sobre eles. Os argumentos teológicos e o conhecimento adquirido têm sido suficientemente debatidos. Não aceitamos que uma moral sexual exclusiva e ultrapassada seja levada a cabo nas costas das pessoas, minando o nosso trabalho de cuidado pastoral”, termina o abaixo-assinado, que esta sexta-feira já havia sido subscrito por mais de 8 mil pessoas. De acordo com a imprensa católica, pelo menos 2.600 dos subscritores serão padres, diáconos e outros agentes pastorais da Igreja Católica alemã.

O texto contradiz diretamente a doutrina recentemente vincada pelo Vaticano. Para a Igreja Católica, um casamento que não seja celebrado entre um homem e uma mulher e que não tenha em vista a geração de filhos é inadmissível. Além disso, o Catecismo da Igreja Católica classifica os atos homossexuais como “contrários à lei natural” e critica-os porque, supostamente, “fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva sexual”. Por isso, “não podem, em caso algum, ser aprovados”.

O reforço mais recente desta tese foi publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), em forma de resposta negativa a uma questão doutrinária colocada à Santa Sé sobre se a Igreja Católica poderia abençoar as uniões homossexuais, mesmo sem ainda aprovar a possibilidade de casamento católico entre pessoas do mesmo sexo. No final do ano passado, o próprio Papa Francisco tinha defendido que todos os países deveriam criar leis civis para enquadrar juridicamente e proteger as uniões entre pessoas do mesmo sexo, de modo a dar aos casais homossexuais os mesmos direitos legais. O posicionamento do Papa acalentou em muitos homossexuais católicos a esperança de que a Igreja poderia, em breve, alterar a sua própria doutrina neste campo — mas o documento da CDF, o organismo do Vaticano responsável por legislar sobre a doutrina católica, voltou a fechar a porta.

Curiosamente, o documento não surge assinado ou explicitamente aprovado pelo Papa Francisco, como poderia ser expectável num caso em que está em causa um aspeto tão sensível da doutrina católica. Lê-se apenas, no final do texto, a seguinte nota: “O Sumo Pontífice Francisco, no curso de uma Audiência concedida ao abaixo assinado Secretário desta Congregação, foi informado e deu seu assentimento à publicação do mencionado Responsum ad dubium, com a Nota explicativa anexa”. Em casos anteriores, a formulação era habitualmente mais direta. O Papa não era “informado” pelo secretário; antes, dava ordem direta ao cardeal que liderava a CDF. Veja-se um exemplo de outro Responsum ad dubium, de 2020, sobre o batismo: “O Sumo Pontífice Francisco, durante a Audiência concedida ao abaixo assinado Cardeal Prefeito, em data de 8 de junho de 2020, aprovou estas Respostas e ordenou a sua publicação”. A mesma fórmula fora usada num caso de 2019 — o que indicia que o Papa Francisco preferiu, desta vez, não se identificar completamente com a resposta dada pela CDF.

epa09093272 A handout photo made available by the Vatican Media shows Pope Francis during the General Audience at the Library of the Apostolic Palace, Vatican City, 24 March 2021.  EPA/VATICAN MEDIA / HANDOUT  HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

O Papa Francisco foi informado e deu assentimento à publicação de uma resposta do Vaticano sobre a proibição de bênção de uniões homossexuais

VATICAN MEDIA / HANDOUT/EPA

O texto da CDF foi recebido com duras críticas em alguns dos setores mais progressistas da Igreja, habitualmente alinhados com as posições do Papa Francisco nos assuntos mais fraturantes da moral e dos costumes. Houve até um bispo — Franz-Josef Overbeck, justamente na Alemanha — que anunciou claramente que não seguiria as regras e que, na sua diocese, os padres que continuassem a abençoar uniões homossexuais não enfrentariam qualquer sanção disciplinar interna. Outros bispos alemães, como Georg Bätzing, Peter Kohlgraf, Helmut Dieser (que recebeu a primeira lista de subscritores do abaixo-assinado) e Heinrich Timmerevers já se juntaram aos críticos da proibição.

Todavia, a contestação interna à nova orientação de Roma, que deu lugar ao abaixo-assinado já assinado por uma parte considerável do clero alemão e ao evento desafiador agendado para o início de maio, é apenas mais um capítulo numa tensão que tem escalado, há vários anos, dentro da Igreja Católica na Alemanha, hoje dominada pela ala mais progressista da instituição. Depois de o Papa Francisco ter tomado posse, em 2013, vários sinais indiciaram que a resistência ultraconservadora às ideias reformadoras do Papa argentino poderia dar origem a um verdadeiro cisma do século XXI. Contudo, esse cisma poderá advir de onde menos se esperava: dos progressistas que querem avançar ainda mais rápido do que o Papa, que poderá ter dificuldades em manter a Igreja unida.

“Não somos uma filial de Roma”

Na verdade, é preciso recuar pelo menos ao ano da eleição do Papa Francisco para compreender como esta tensão, latente na Igreja desde o século passado (sobretudo na sequência das reformas operadas pelo Concílio Vaticano II), começou a ganhar contornos concretos.

A própria eleição de Francisco — o primeiro americano e o primeiro jesuíta a chegar ao trono pontifício — representou um momento de viragem para a Igreja, profundamente abalada por sucessivos escândalos, dos abusos de menores à corrupção financeira. O Papa Bento XVI, habitualmente conotado com o conservadorismo teológico europeu (embora tenha sido radicalmente inovador na sua teologia, marcando decisivamente a Igreja na segunda metade do século XX), entendera que não tinha a força física e espiritual para empreender as reformas de que a instituição necessitava e abdicara voluntariamente, dando lugar a um Papa que rapidamente conquistou a simpatia global, dentro e fora da Igreja.

Logo no primeiro ano do seu pontificado, e compreendendo que o modo como a Igreja olhava para as questões da família era um dos aspetos definidores do difícil relacionamento da instituição milenar com o mundo contemporâneo, Francisco convocou uma edição extraordinária do Sínodo dos Bispos (um órgão colegial que auxilia o Papa na tomada de decisões sobre os assuntos relevantes da doutrina eclesiástica) destinada a debater “os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”. Naquela altura já se anteviam alguns dos principais pontos de fratura entre os mais progressistas e os mais conservadores: o tratamento dado aos homossexuais e, sobretudo, o que fazer perante as pessoas que, depois de se divorciarem de um casamento católico, se voltaram a casar pelo civil (vivendo, por isso, num estado que a Igreja classifica como pecado, uma vez que é impossível dissolver o primeiro casamento).

Synod On the Themes of Family Is Held At Vatican

O Sínodo dos Bispos sobre os desafios da pastoral familiar, em 2014, abriu espaço à divisão entre progressistas em conservadores em assuntos fraturantes

Getty Images

O relatório final daquela reunião magna, que decorreu em outubro de 2014, contribuiu para o diagnóstico de um Vaticano profundamente dividido quanto àqueles temas.

No documento, eram feitas referências à discussão sobre a “possibilidade de os divorciados que voltaram a casar acederem aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia”. Enquanto um conjunto de bispos consideraram que a doutrina se devia manter (barrando-lhes o acesso), outros defenderam que “em situações específicas” poderia haver um acolhimento das pessoas que Igreja considera estarem em situação irregular. Porém, nenhum compromisso foi alcançado: “A questão ainda precisa de ser investigada”. Também sobre o acolhimento dos homossexuais foi impossível chegar a um entendimento concreto, com os participantes da reunião magna a resumirem-se a uma formulação conciliadora: “De qualquer modo, os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza”.

Como os parágrafos do relatório final são votados individualmente, o registo de votações daquele documento oferece um retrato detalhado da grande divisão que marcou as discussões. O parágrafo sobre a possibilidade de comunhão para os divorciados que se tornaram a casar foi o que recebeu mais votos contra: dos 183 bispos presentes, 104 votaram a favor e 74 votaram contra. Já o parágrafo sobre o acolhimento dos homossexuais recebeu 118 votos favoráveis e 62 votos desfavoráveis.

Aquele clima de divisão profunda marcou de modo inequívoco o grande momento eclesiástico que se seguiria: a edição ordinária do Sínodo, que em 2015 seria dedicado ao tema da família e que deveria dar lugar a uma exortação apostólica, um documento doutrinário assinado pelo Papa Francisco. Com a liderança eclesiástica gravemente dividida sobre que caminhos seguir nos temas que afastavam a Igreja da sociedade contemporânea, vários bispos antecipavam as conclusões que poderiam sair daquela reunião magna. Enquanto, em Portugal, as palavras escolhidas eram de cautela — acolher todas as famílias “sem julgar, sem condenar, sem apontar” —, na Alemanha começava a desenhar-se um clima de desafio a Roma.

"Cada conferência episcopal é responsável pelo cuidado pastoral no seu contexto cultural e tem de pregar o evangelho no seu modo próprio e original. Não podemos esperar que um Sínodo nos diga como moldar o cuidado pastoral sobre o casamento e a família aqui."
Cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique, em 2015

Em fevereiro de 2015, numa conferência de imprensa após uma assembleia plenária dos bispos alemães, o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e presidente da conferência episcopal, dizia aos jornalistas que a Alemanha seguiria a sua própria política eclesiástica relativamente àqueles assuntos. “Não somos uma filial de Roma”, afiançou o cardeal. “Cada conferência episcopal é responsável pelo cuidado pastoral no seu contexto cultural e tem de pregar o evangelho no seu modo próprio e original. Não podemos esperar que um Sínodo nos diga como moldar o cuidado pastoral sobre o casamento e a família aqui.”

As palavras do líder católico receberam o apoio de vários bispos da Alemanha, mas foram duramente criticadas por outros. “Dado que as palavras do mais alto representante dos católicos na Alemanha tem um cariz de orientação e criam ondas substanciais nos media, faz sentido opor-me publicamente a algumas das declarações, para limitar a confusão que causaram”, escreveu o cardeal alemão Paul Josef Cordes, que até 2010 liderara um importante organismo do Vaticano responsável pela caridade. Na carta, Cordes acusou Marx de “ignorar os limites” da doutrina católica para “ficar bem na fotografia” — e classificou as frases do colega como uma afronta à unidade da Igreja Católica, assente nas decisões tomadas em conjunto.

Em pouco tempo, as declarações de Reinhard Marx tiveram resposta do Vaticano.

Numa entrevista à revista católica francesa Famille Chrétienne em março de 2015, o também alemão Gerhard Ludwig Müller, cardeal que à época presidia à poderosa CDF no Vaticano, classificou a ideia de Marx como “absolutamente anti-católica”. Questionado sobre se seria possível que algumas decisões sobre o casamento e família fossem delegadas nas conferências episcopais, o líder da doutrina católica foi claro. “É uma ideia absolutamente anti-católica, que não respeita o catolicismo da Igreja. As conferências episcopais têm autoridade em alguns aspetos, mas não constituem o magistério paralelo, sem o Papa ou sem a comunhão de todos os bispos.”

Action "Week for the Life" of the Churches

O cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique, disse que a Conferência Episcopal Alemã não é "uma filial de Roma"

picture alliance via Getty Image

Perante uma pergunta sobre o caso concreto de Marx, Müller foi ainda mais incisivo. “O presidente de uma conferência episcopal não é mais que um moderador técnico e, como tal, não tem qualquer autoridade magisterial especial. Ouvir que uma conferência episcopal não é uma ‘filial de Roma’ dá-me a oportunidade de lembrar que as dioceses não são filiais do secretariado da conferência episcopal, ou da diocese cujo bispo preside à conferência episcopal”, disse o líder da CDF. “Este tipo de atitude corre o risco, de facto, de acordar uma certa polarização entre as igrejas locais e a Igreja universal, ultrapassada nos concílios Vaticano I e II. A Igreja não é uma coleção de igrejas nacionais, cujos presidentes votam para eleger um líder universal.

Da confusão à heresia

Porém, parecia tarde demais: desde o Sínodo do ano anterior que a polarização era bem visível dentro da hierarquia eclesiástica e no Sínodo da Família, em 2015, o panorama repetiu-se. Em março de 2016, o Papa Francisco publicou finalmente o aguardado documento pontifício elaborado com base nas reflexões da reunião. A exortação apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do Amor) tornar-se-ia, rapidamente, num dos mais controversos documentos do pontificado do argentino.

Num dos pontos mais polémicos, o Papa Francisco escreveu que “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” — e criticou os “corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja” e julgam “com superioridade e superficialidade” os casos mais complexos. Francisco referia-se, naquele segmento do longo texto (um livro com quase 300 páginas), às pessoas em relações homossexuais e, especialmente, aos divorciados que voltaram a casar, sublinhando que aquelas pessoas deviam ser acolhidas e receber “a ajuda da Igreja”. O detalhe que fez eclodir toda a polémica escondia-se numa nota de rodapé associada a este parágrafo: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos”, escreveu Francisco, acrescentando que “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura” e a comunhão não devia ser “um prémio para os perfeitos”.

A curta nota de rodapé causou ondas de choque no universo ultraconservador da Igreja Católica. No entender dos mais tradicionalistas, o Papa admitira dar a comunhão a pessoas que viviam em pecado, o que era uma afronta inadmissível à doutrina católica.

"Um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas."
Papa Francisco, na exortação apostólica Amoris Laetitia

Seis meses depois da publicação do texto, um grupo de quatro cardeais conservadores — o célebre norte-americano Raymond Burke, os alemães Walter Brandmüller e Joachim Meisner e o italiano Carlo Caffarra — enviou ao Vaticano um pedido de dubia sobre o assunto, um processo formal em que um bispo pode pedir ao Vaticano um esclarecimento sobre um ponto da doutrina. Por não terem recebido qualquer resposta, os cardeais publicaram o texto através de alguns meios de comunicação associados à ala conservadora da Igreja. No documento, os quatro ultraconservadores acusam o Papa Francisco de ter lançado, com o seu documento, “uma grave desorientação e grande confusão” entre os fiéis.

Teólogos conservadores acusam papa Francisco de espalhar a heresia

Mantendo-se sem resposta, o cardeal Raymond Burke ameaçou lançar um procedimento de correção formal do Papa — algo que não acontecia há vários séculos dentro da Igreja Católica. Repetiu-se em setembro de 2017 através de uma carta de 25 páginas assinada por vários teólogos conservadores, acusando o Papa Francisco de propagar sete heresias com a Amoris Laetitia. O uso da palavra “heresia” contra o próprio Papa formalizou o clima de guerra aberta entre progressistas e conservadores que já se vivia no Vaticano desde 2013.

Alemanha em rota de colisão com Roma

Enquanto, na cúpula da Igreja, a guerra de trincheiras ganhava intensidade, na Alemanha a instituição preparava-se para enfrentar um dos momentos mais dolorosos da sua história recente. O drama dos abusos sexuais de menores havia surgido com grande intensidade no país em 2010, com as primeiras denúncias em escolas religiosas a vir a público numa altura em que a Igreja era liderada pelo alemão Bento XVI (que não escapou pessoalmente à polémica, na sequência de um caso de um padre pedófilo que nos anos 70 trabalhara numa diocese liderada por Ratzinger). Depois das primeiras denúncias, a Igreja Católica na Alemanha empreendeu um processo de revisão do seu próprio passado e encomendou uma investigação externa aos arquivos eclesiásticos das décadas anteriores.

O resultado da investigação veio a público em setembro de 2018, com números impressionantes: entre 1946 e 2014, pelo menos 1.670 membros do clero alemão tinham abusado sexualmente de pelo menos 3.677 crianças. Perante o relatório devastador, o cardeal Reinhard Marx considerou que a Igreja precisava, com urgência, de reconstruir a confiança perdida. “Muitas pessoas já não acreditam em nós”, disse Marx, classificando o relatório como “um momento decisivo e um ponto de inflexão para a Igreja Católica na Alemanha”.

O documento teve um impacto desastroso na Igreja Católica, e no Cristianismo em geral, na Alemanha. De acordo com uma estatística publicada em 2019 pela própria Conferência Episcopal Alemã, cerca de 216 mil fiéis abandonaram a Igreja Católica naquele ano — um êxodo que também afetou as igrejas protestantes.

Em resposta à crise profunda, a conferência episcopal lançou em 2019 um projeto de renovação da Igreja Católica: o “Caminho Sinodal”. Inspirado no modelo do Sínodo dos Bispos a nível global, aquele projeto foi pensado como um conjunto de assembleias e conferências destinadas a implementar novos modelos de atuação, com base num documento preparatório debatido e votado em 2019. O “Caminho Sinodal” deveria ter durado dois anos, mas a pandemia da Covid-19 acabou por prolongar o projeto. No início, o cardeal Reinhard Marx explicou que o modelo do “Caminho Sinodal” — que, na verdade, não faz parte dos métodos oficiais da Igreja — havia sido escolhido porque um Sínodo formal precisaria de uma aprovação do Vaticano, que poderia demorar demasiado tempo a chegar. Todavia, Marx assinalou que os resultados daquela assembleia (que reúne 230 participantes, entre bispos, membros dos serviços da Igreja Católica e representantes dos fiéis) seriam vinculativos, o que causou algum mal-estar no Vaticano. Além disso, o cardeal salientou que entre as decisões “vinculativas” se encontrariam reflexões sobre quatro dos pontos mais quentes da atual discussão sobre os costumes na Igreja: o celibato dos padres, a moral sexual, o poder dos padres e a participação das mulheres nos cargos de liderança da Igreja.

Autumn Plenary Assembly of the German Bishops' Conference

A maioria dos bispos alemães concorda com o Caminho Sinodal, mas há receios de que possa conduzir a um cisma

dpa/picture alliance via Getty I

Em junho de 2019, o próprio Papa Francisco enviou uma carta aberta aos fiéis alemães, pedindo-lhes que evitassem a tentação de “crer que os problemas presentes e futuros viriam exclusivamente de reformas puramente estruturais, orgânicas ou burocráticas”. “A transformação, a operar-se”, não pode ser “exclusivamente como reação a dados ou exigências externas”, advertiu Francisco. “Cada vez que a comunidade eclesial tentou sair sozinha dos seus problemas, confiando e focando-se exclusivamente nas suas forças ou nos seus métodos, na sua inteligência, na sua vontade ou no seu prestígio, acabou por aumentar e perpetuar os males que tentava resolver”, sublinhou o papa, num claro aviso contra a intenção dos bispos alemães de decidirem sozinhos.

Ao alerta simpático do Papa Francisco seguir-se-ia um aviso em tom mais duro por parte da estrutura do Vaticano.

Em setembro de 2019, o cardeal canadiano Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, o departamento do Vaticano com jurisdição sobre os bispos católicos, enviou uma carta ao cardeal Marx dizendo-lhe que os planos alemães para um processo sinodal vinculativo eram “eclesiologicamente inválidos” — ou seja, que não teriam validade dentro dos procedimentos formais da Igreja Católica. “Percebe-se facilmente que estes assuntos não afetam apenas a Igreja na Alemanha, mas a Igreja universal, e — com poucas exceções — não podem ser objeto de deliberações ou decisões de uma Igreja particular sem contrariarem o que foi expresso pelo Santo Padre na sua carta”, lia-se num parecer jurídico anexado à carta de Ouellet.

A missiva do Vaticano deixava um conselho aos bispos alemães: se quisessem legislar especificamente sobre a vida da Igreja Católica no país, deveriam seguir as normas expressas na lei eclesiástica para realizar um concílio regional autorizado por Roma. “É evidente, pelos artigos dos estatutos [do Caminho Sinodal] que a conferência episcopal está a pensar fazer um concílio particular com base nos cânones 439 – 446, mas sem usar estes termos”, ou seja, sem a necessária autorização por parte do Vaticano. Apesar desta tensão, o cardeal Marx continua a ser um dos principais aliados do Papa Francisco, fazendo parte do exclusivo C9, o Conselho de Cardeais que aconselha o pontífice no governo da Igreja.

Pouco depois da divulgação da carta, o cardeal Marx voou para Roma, para um encontro com Ouellet destinado a esclarecer os “mal-entendidos”. A reunião foi simplesmente descrita como “construtiva” e a verdade é que o projeto dos bispos alemães avançou mesmo. Ao The Washington Post, alguns elementos da hierarquia eclesiástica explicaram que as conclusões do processo deliberativo alemão seriam partilhadas com Roma e que o objetivo não era criar uma “igreja nacional”, mas sublinharam que estavam apenas a seguir os conselhos do próprio Papa Francisco, que tem salientado a necessidade de descentralizar os processos de tomada de decisão na Igreja.

Embora o processo sinodal esteja a decorrer com os constrangimentos próprios da pandemia, uma proporção considerável de bispos, padres e fiéis católicos alemães já estão a protagonizar uma abordagem a estes assuntos fraturantes que é considerada, por alguns, cismática. O bispo Franz-Josef Overbeck, que em 2019 declarou que “os tempos antigos chegaram ao fim”, é apenas um dos mais audíveis entre os vários que já se posicionaram favoravelmente perante o fim do celibato obrigatório, a bênção de uniões homossexuais ou a presença mais significativa das mulheres nos cargos de liderança. Ao contrariar diretamente o Vaticano, permitindo aos seus padres que abençoem uniões de pessoas do mesmo sexo, Overbeck chocou de frente com a Santa Sé e permitiu o surgimento de sacerdotes como os autores do citado abaixo-assinado — que deverá ser entregue aos bispos alemães em setembro, na próxima reunião do Caminho Sinodal.

Na Alemanha, um país onde tradicionalmente tem imperado uma inclinação religiosa mais liberal (e onde o mundo cristão se divide a meio entre católicos e protestantes), grande parte dos bispos vê no Caminho Sinodal um processo de óbvia renovação da Igreja Católica à luz do mundo contemporâneo. Porém, vários observadores externos temem que possam estar a ser lançadas as bases para um verdadeiro cisma do século XXI — não motivado pelos conservadores em reação ao ritmo progressista de Francisco, mas motivado pelo acelerar do passo daqueles para quem as reformas operadas pelo argentino não são suficientes.

"Infelizmente, desenvolvimentos recentes na Igreja na Alemanha, liderados pelo cardeal Marx e pela maioria dos bispos alemães, arriscam danificar a unidade da Igreja universal."
Samuel Aquila, arcebispo de Denver

O arcebispo norte-americano Samuel Aquila, de Denver, não hesitou em usar a palavra “cisma” para descrever o que se está a passar na Alemanha. “Infelizmente, desenvolvimentos recentes na Igreja na Alemanha, liderados pelo cardeal Marx e pela maioria dos bispos alemães, arriscam danificar a unidade da Igreja universal. Estes bispos e um considerável grupo de leigos planeiam fazer um sínodo com votações vinculativas sobre a mudança de assuntos doutrinários, como a ordenação de mulheres, a bênção de uniões homossexuais e tópicos relacionados com a sexualidade”, escreveu Aquila num texto intitulado “o Papa Francisco e o possível cisma alemão”.

Já em fevereiro deste ano, o padre jesuíta alemão Bernd Hagenkord, da Rádio Vaticana e atualmente diretor espiritual do Caminho Sinodal, reconheceu que o Papa Francisco está preocupado com uma possível cisão na Igreja. “Acredito que o Papa está claramente preocupado com a possibilidade de a Igreja Católica se separar em alguns assuntos mais conflituosos, porque algumas partes estão a tomar posições muito fortes”, disse Hagenkord à imprensa alemã, de acordo com declarações citadas num artigo recente do Crux sobre o risco de um cisma alemão motivado pelo sínodo alemão.

Dentro da própria Igreja Católica da Alemanha, multiplicam-se os medos de um verdadeiro cisma do século XXI. Em setembro, o cardeal Rainer Maria Woelki, arcebispo de Colónia, disse à agência católica de notícias alemã, KNA, que “o pior resultado seria se o Caminho Sinodal conduzisse a um cisma com a Igreja universal”. Woelki sustentou que “o pior que podia acontecer era se algo como uma igreja nacional alemã fosse criada aqui”.

"O pior resultado seria se o Caminho Sinodal conduzisse a um cisma com a Igreja universal."
Rainer Maria Woelki, arcebispo de Colónia

Um dos problemas mais complexos prende-se com a possibilidade de ordenação de mulheres no sacerdócio. O assunto foi encerrado pelo Papa João Paulo II em 1994 e, por isso, qualquer discussão que trate o assunto como estando em aberto vai ocorrer “fora dos ensinamentos da Igreja”, advertiu Woelki, pedindo aos participantes do Caminho Sinodal que não criem expectativas impossíveis de cumprir, com potencial para causar desilusão e frustração entre os fiéis.

Afinal, porque não podem as mulheres ser padres?

A reação alemã ao recente pronunciamento do Vaticano sobre a bênção de uniões homossexuais, o abaixo-assinado assinado por milhares de padres e as bênçãos em massa previstas para o início de maio vieram contribuir para que uma maior cristalização do sentimento de potencial cisão com Roma. Se o ritmo do progressismo alemão conduzirá a um cisma equiparável aos grandes momentos de rutura da história do Cristianismo — do Cisma de 1054 à Reforma Protestante —, só o próximo ano o dirá. Evitá-lo dependerá, em grande parte, da capacidade que o Papa Francisco tiver para gerir os vários ritmos de uma Igreja Católica que se confronta hoje com uma necessidade óbvia de reformas profundas em vários dos aspetos mais controversos da sua doutrina ancestral.

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