Cerca de um milhão de pessoas manifestaram-se no último domingo nas ruas de Hong Kong — e vários milhares voltaram a protestar esta quarta-feira em frente ao parlamento da região autónoma chinesa, numa série de protestos que já provocaram cerca de duas dezenas de feridos e levaram à detenção de 19 pessoas. Estão contra a aprovação de mudanças legislativas no sistema judicial da região — que deverá passar a permitir a extradição de pessoas para serem julgadas na China — e, por isso, fizeram os possíveis para bloquear os acessos ao parlamento. O protesto foi eficaz: esta quarta-feira, os funcionários do Governo foram aconselhados a não irem trabalhar e a votação da nova lei foi adiada. Mas o Governo regional não quer desistir de a aprovar.
A fazer fé nos números da organização (a polícia apenas admite 240 mil manifestantes), a causa mobilizou perto de 15% da população daquela cidade autónoma, hoje com 7,4 milhões de habitantes — e foi comparada aos protestos de 2014, que ficariam conhecidos como a Revolução dos Guarda-Chuvas, nos quais milhares de manifestantes (munidos de guarda-chuvas para se protegerem dos canhões de água e do gás lacrimogéneo) exigiram um regime democrático para Hong Kong, que, desde 1997, está sob a soberania chinesa através de um regime de “um país, dois sistemas”. Mas, afinal, o que está em causa nestes protestos?
Qual é a mudança na lei que levou aos protestos?
A polémica no centro dos protestos está relacionada com a nova lei da extradição de Hong Kong, que foi anunciada em fevereiro deste ano e apresentada formalmente pelo Governo regional em abril. Atualmente, aquela região autónoma chinesa (que tem o seu próprio sistema legal, independente do da China) tem acordo de extradição com vinte territórios, incluindo Portugal — mas não a China.
É o mesmo que dizer que, até agora, Hong Kong não extraditava prisioneiros para a China, tal como para vários outros países. Porquê deixar Pequim fora da lista de territórios com possibilidade de extradição? Um dos principais argumentos é o de que a China tem um sistema legal pouco transparente, recorrendo frequentemente a métodos de tortura para obter confissões forçadas e não garantindo julgamentos justos aos acusados. Extraditar significaria, por isso, sujeitar cidadãos de Hong Kong a esse mesmo sistema.
A proposta que está à espera de ser votada alarga o âmbito das extradições a países com os quais Hong Kong não tenha acordos pré-estabelecidos, desde que haja uma avaliação individual de cada caso. A nova lei permitiria, portanto, em determinados casos, que a cidade extraditasse pessoas para a China. Embora o Governo regional argumente que esta lei é necessária para evitar vazios legais e impedir que a cidade se torne num refúgio para criminosos, ativistas pela democracia e jornalistas têm mostrado preocupação com a possibilidade de Hong Kong passar a extraditar pessoas para a China.
O que motivou a alteração na lei da extradição?
A líder do executivo regional de Hong Kong, Carrie Lam, tem usado um exemplo concreto para ilustrar a necessidade de mudar a lei: o homicídio de Poon Hiu-wing, de 20 anos, morta pelo seu namorado, natural de Hong Kong, em fevereiro de 2018, em Taiwan. Segundo o New York Times, o casal foi de férias para Taiwan, mas o namorado, Chan Tong-kai, acabaria por regressar sozinho. A polícia encontraria o corpo de Hiu-wing no meio da vegetação, junto a uma estação de comboios no norte de Taiwan, e descobriria que a jovem se encontrava grávida.
Chan Tong-kai foi detido em Hong Kong. Tinha em sua posse o telemóvel da namorada, uma câmara e três mil dólares em dinheiro — e acabaria por ser condenado a 29 meses de prisão por lavagem de dinheiro, por ter usado o cartão bancário da namorada no regresso a Hong Kong. Porém, não foi condenado pelo homicídio de Poon Hiu-wing — apesar de ter confessado o crime num tribunal de Hong Kong. O caso expôs um vazio legal: Hong Kong não tem acordo de extradição com Taiwan, por isso não enviou o homicida confesso para ser julgado lá; além disso, a justiça de Hong Kong não tem jurisdição para julgar o homicídio, uma vez que ocorreu num território com o qual não tem acordos bilaterais em termos de justiça. Ou seja: Chan Tong-kai não vai ser julgado pelo homicídio da namorada.
No entender do Governo regional de Hong Kong, este caso é um exemplo de como a atual legislação permite que a cidade tenha potencial para se tornar num refúgio de criminosos que sabem que não serão extraditados para a maioria dos países. A solução: alargar o âmbito da extradição também à China, algo que a oposição rejeita, argumentando que se trata de um aproveitamento do caso concreto para promover uma integração definitiva de Hong Kong na China.
É que, neste caso, entra em jogo outro problema: a questão de Taiwan. A ilha adota o nome oficial de República da China — e assume-se como país independente da República Popular da China, de Pequim. Porém, a China defende o chamado “princípio de só uma China”. Ou seja: considera que só existe um país chamado China (que inclui o território chinês e Taiwan), rejeita a independência da ilha, recusa estabelecer relações diplomáticas com qualquer país que reconheça Taiwan enquanto país independente e até recusa participar em competições desportivas nas quais Taiwan entre na qualidade de país independente.
Ou seja: extraditar para Taiwan implicaria alargar o âmbito das extradições a toda a China, uma vez que a proposta considera que “China” corresponde ao território continental, a Taiwan, a Macau e a Hong Kong. Isto irá expor os cidadãos de Hong Kong à possibilidade de serem levados para a China para julgamento — o que, na prática, anularia a independência legal que aquela cidade tem hoje relativamente à China continental. E Taiwan também já veio sublinhar a sua posição: não aceitará qualquer acordo que considere a ilha como parte da República Popular da China.
Quais são as posições em confronto?
Hong Kong foi uma colónia britânica até 1997, ano em que o território foi entregue pelo Reino Unido à soberania chinesa. Nessa altura, tanto Hong Kong como Macau (que passou da soberania portuguesa para a chinesa em 1999) foram integrados no território chinês sob um regime especial de que ainda hoje gozam: o de “um país, dois sistemas”, arquitetado pelo então líder chinês, Deng Xiaoping, e que basicamente dá àquelas duas cidades — classificadas como Regiões Autónomas Especiais — um elevado grau de autonomia face a Pequim. Hong Kong mantém o seu próprio sistema governamental, as suas leis, o seu sistema judicial e um maior nível de proteção dos direitos humanos. Pequim é responsável pelas relações daquelas regiões com os outros países e pelas questões de defesa.
A proposta para modificar o sistema legal recebeu críticas de inúmeras instituições governamentais e da sociedade civil, bem como uma rejeição generalizada por parte da população da região. Associações de juízes e advogados, líderes religiosos, associações de jornalistas, ativistas pelos direitos humanos, representantes de outros países e até a União Europeia, opuseram-se a esta proposta. Temem que coloque em causa, de forma definitiva, a autonomia da cidade face à China, e logo numa das matérias essenciais: o sistema legal que protege os cidadãos de Hong Kong.
“Penso que tudo isto é uma manobra política mais do que qualquer outra coisa. Desde a entrega [da soberania de Hong Kong à China], ficou estipulado na lei que nós não entregamos fugitivos à China continental. Agora, estão a aproveitar-se deste caso particular de Taiwan e a fingir que é por motivos de compaixão e de humanismo”, disse ao New York Times a deputada Claudia Mo, que integra o parlamento de Hong Kong. Entre as exigências de vários opositores da medida, nomeadamente os advogados (que chegaram a protagonizar um inédito protesto, em forma de marcha lenta junto ao parlamento), está a de que a lei seja sujeita a consultas detalhadas com os vários intervenientes no sistema legal para ponderar todas as variáveis.
Mas a líder do Governo regional de Hong Kong, Carrie Lam, quer ver a lei aprovada sem demoras — e recorre novamente ao caso de Chan Tong-kai para argumentar. “Temos de fazer tudo para ajudar. Mas, se discutirmos uns com os outros, consultarmos demoradamente o público ou distribuirmos documentos de consulta, temo que não sejamos capazes de ajudar neste caso particular”, disse recentemente a líder.
Carrie Lam já veio dizer, nesta terça-feira, que é preciso fazer todos os possíveis para que Hong Kong não se torne num “refúgio para fugitivos” e defendeu a medida argumentando que o Governo regional terá sempre a última palavra a dizer em todas as extradições que não se enquadrem nos atuais acordos de extradição. “Quando o tribunal concordar com a extradição, o líder do executivo terá a autoridade final sobre extraditar ou não um fugitivo”, afirmou. “Nesse momento, o líder do executivo poderá ainda reexaminar todo o caso e as circunstâncias para decidir.”
Além disso, a chefe do Governo regional veio também tentar tranquilizar os que temem que a cidade extradite pessoas para locais onde possam ser torturadas (como a China continental). “Antes de o líder do executivo acionar o processo, ou seja, antes de aceitar o pedido de extradição de um fugitivo, vamos pedir à entidade que faz o pedido para garantir uma longa lista de proteções dos direitos humanos”, afirmou. “Por isso, isto é um pacote muito prático que alcançou o equilíbrio necessário entre a proteção dos direitos humanos, o apaziguamento das ansiedades e preocupações do público e também o objetivo.”
O que aconteceu no domingo?
No último domingo, centenas de milhares de habitantes de Hong Kong saíram à rua para protestar contra a lei — que tinha uma discussão agendada para esta quarta-feira. A organização falou em mais de um milhão de manifestantes, que se vestiram de branco, levaram guarda-chuvas (em memória do símbolo dos protestos pela democracia em 2014) e bloquearam os principais acessos da cidade, incluindo ao parlamento. Os protestos foram apoiados por várias organizações que se opõem a esta nova lei.
Centenas de milhares protestam em Hong Kong contra lei das extradições
Embora tenham sido em larga medida pacíficos, registaram-se alguns desacatos entre manifestantes e polícia. Em alguns casos foi lançado gás pimenta e cerca de 20 pessoas ficaram feridas. Pelo menos 19 pessoas terão sido detidas, por terem sido encontradas com tesouras, facas e roupas de proteção no meio dos manifestantes.
A votação da lei foi adiada. E agora?
Depois do sucesso da manifestação de domingo, os organizadores do protesto — que incluem vários deputados da oposição — apelaram a uma mobilização popular para esta quarta-feira, dia para o qual estava agendada a segunda leitura da proposta no parlamento, com rondas de questões à líder do executivo. O objetivo era bloquear todos os acessos ao edifício do Conselho Legislativo, para que a câmara fosse impedida de trabalhar — e, portanto, de dar continuidade ao processo de aprovação da lei.
Hong Kong. Polícia controla centro da cidade e manifestantes abandonam local
“Apelo a todas as pessoas que usem todos os meios à sua disposição para paralisar o governo”, disse o deputado Wu Chi-wai, líder do Partido Democrático, que considerou também que Carrie Lam “perdeu toda a legitimidade para governar”.
A marcação do protesto foi acompanhada pelo anúncio de uma greve geral, convocada pelos sindicatos da região autónoma: o objetivo era faltar ao trabalho e seguir para o parlamento, cercando o edifício e impedindo o acesso ao local dos trabalhos. A adesão foi em massa, com os manifestantes a usarem tudo o que podiam para bloquear as estradas que levam ao Conselho Legislativo.
O debate desta quarta-feira devia ter começado por volta das 13h. Depois do meio-dia, o Governo regional de Hong Kong anunciou que a discussão da proposta seria adiada por falta de condições para o funcionamento das instalações do parlamento. Mas Carrie Lam não desistiu da proposta e garante que é uma medida necessária — embora já tenha dito que está disponível para a melhorar, adicionando novas garantias de respeito pelos direitos humanos. Até agora, não foi anunciada nova data para discutir ou votar a proposta, renovada ou tal como está.