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“Ela é particularmente fria com os jornalistas irlandeses”. O desabafo surge no final da primeira conferência de imprensa de Katherine Maher, a nova “senhora Web Summit”, que sucedeu ao irlandês “desbocado” cuja identidade se confundia com a da cimeira que criou em 2009. Paddy Cosgrave viu-se forçado a apresentar a demissão porque, nas palavras da própria sucessora, “estava a tornar-se numa distração” para o sucesso da Web Summit. A “distração” teve origem num tweet sobre Israel e o Hamas. Num evento que nunca se distanciou da política, este ano preferiu deixá-la à margem. “A guerra muda tudo, e muda tudo para pior”.
A síntese é de Manuel Caldeira Cabral. Era o ministro da Economia quando a Web Summit assentou arraiais no Parque das Nações pela primeira vez, em 2016. “O evento amadureceu” desde essa altura, diz. Caldeira Cabral fez questão de contactar Paddy Cosgrave quando este abdicou e já jantou com Katherine Maher. “Uma pessoa fantástica, com uma visão muito interessante e que está muito interessada em continuar a fazer crescer a Web Summit”, revela. Sobre a polémica, não tem dúvidas. Foi “negativa” para imagem a cimeira, mas não o suficiente para pô-la em causa.
“Paddy Cosgrave demitiu-se porque estava a tornar-se uma distração”, diz nova CEO da Web Summit
“Mostrou uma excessiva reação de Israel. O que o Paddy disse foi quase banal, muitos outros o disseram, como o presidente dos EUA e Guterres. Isto não mostrou um lado bom de Israel a dois níveis: pelo facto de manipular empresas multinacionais para não participarem no evento, e não ficam bem as empresas que alinharam nessa ideia. Em vez de terem autonomia estratégica obedeceram a quem tem o capital. E mostrou os perigos para a democracia pelo facto de essas empresas terem tanto poder”, ressalva. Por outro lado, diz ainda, “mostra que as redes sociais são um pau de dois bicos”.
Quem passeia no evento mostra-se pouco preocupado com as mudanças na estrutura da Web Summit e com os tweets de Paddy Cosgrave. “Vim aqui à procura de investimento, tal como no ano passado. Conseguimos conhecer aqui muitos investidores”, resume Omar Ryan, da startup egípcia FabMinds. “Foi uma situação infeliz, tenho pena que o trabalho e a política se tenham misturado. Este não é um evento político, é um evento de tecnologia. Estão aqui 70 mil pessoas a aproveitá-lo.”
Mas a Web Summit nunca fugiu à política. Foi no palco do Altice Arena que, em 2016, se discutiu a eleição de Donald Trump, em 2019 o Brexit ou no ano passado a invasão russa da Ucrânia. A cimeira já foi aberta por Edward Snowden e a Comissão Europeia era presença habitual. O que aconteceu este ano, em que o conflito entre Israel e Hamas foi praticamente invisível e até a Ucrânia foi despromovida aos palcos secundários? “Penso que estamos num mundo mais complicado e mais tóxico nas discussões políticas”, defende Caldeira Cabral.
“Mãe, o Donald Trump ganhou”. A reação dos americanos na Web Summit
O ex-ministro lembra que “a Web Summit sempre foi evento muito além da tecnologia”. Em 2017, o diretor de campanha de Donald Trump “esteve aqui a contar como o fez e, gostemos ou não, foi interessante. A questão da extrema direita em França, o Brexit… Nunca houve medo na Web Summit de criar polémica, pelo contrário. Sempre houve o espírito de se discutirem todas as posições. Sempre houve muitos fóruns de discussão e continua a haver. Talvez este ano menos. As pessoas estão muito extremadas. Já não há opiniões diferentes e razoáveis. Quando há guerra, ou estás na minha trincheira ou estás na outra. A guerra na Ucrânia é mais fácil de perceber…”, resume.
Política e tecnologia são indissociáveis, continua. “A parte política pode inibir a evolução tecnológica, pode orientá-la e vai certamente regulá-la. A tecnologia e a regulação criam ou destroem novos mercados, se for conservadora. Nunca houve uma ideia de separação”. A própria nova CEO da Web Summit deu essa garantia. Na sua liderança, a cimeira vai continuar a ser palco para “conversas difíceis”. Desde que o próprio evento fique fora delas.
A Web Summit que não existiu
As alterações de conferências e horários já se tornaram habituais num evento com a dimensão da Web Summit. Contudo, este ano, foi preciso ter olho vivo para estar atento às alterações ainda antes de a cimeira começar.
Devido ao boicote de Israel e à polémica que se instalou em torno das declarações de Paddy Cosgrave, os cancelamentos de oradores e empresas começaram semanas antes da Web Summit. Israel, conhecida como a “nação das startups” e de onde saíram empresas como o Waze ou a Mobileye, recusou participar este ano. Seguiram-se depois as empresas. Na lista de desistências estão três big tech – a Alphabet, Meta e a Amazon –, mas também nomes como a IBM, Siemens, Intel ou a Stripe.
Israel fora da Web Summit devido a “declarações ultrajantes” de Paddy Cosgrave sobre o conflito
Com o passar dos dias, começaram as desistências de oradores. Numa Web Summit onde já se tornou normal ver uma estrela de Hollywood a seguir à intervenção de um líder de uma empresa tecnológica ou de um whistleblower, os nomes da indústria de entretenimento começaram a desaparecer da lista. Gillian Anderson, LL Cool J, Joseph Gordon-Levitt, Amy Poehler ou Emma Chamberlain são alguns exemplos. E, sem a presença de algumas empresas, consequentemente deixaram de marcar presença executivos como Nick Clegg, da Meta, ou Colin Murdoch, diretor de negócio da DeepMind, que pertence à Google.
Mas houve quem tivesse desistido devido a outros motivos. Robert Habeck, vice-chanceler da Alemanha, cancelou a vinda à Web Summit na semana passada, “tendo por base uma avaliação global, sobretudo à luz dos recentes acontecimentos políticos em Portugal”, de acordo com informação do gabinete do político à Bloomberg.
Talvez para preencher as mudanças constantes na agenda, houve soluções diferentes das habituais. Na quarta-feira, o palco principal encerrou com quase uma hora da semi-final do concurso Pitch, por exemplo. Também foram frequentes as ocasiões em que as horas de sessões foram antecipadas, sem qualquer aviso prévio.
Contas feitas, a Web Summit apresentou um total de 70.236 participantes. Porém, só a cerimónia de abertura é que conseguiu preencher quase na totalidade o Altice Arena – já é sabido que é a principal enchente. Ao longo dos dias, foram sendo visíveis os lugares vazios no palco principal, especialmente nas bancadas de topo. As cadeiras sem curiosos foram ainda mais notórias na quinta-feira, último dia do evento. A influencer e empresária brasileira Mari Maria, que no Instagram é seguida por 21,7 milhões de pessoas, deu uma conferência para um antigo Pavilhão Atlântico a meio gás.
Durante a conferência de imprensa onde fez o balanço do seu primeiro evento, Katherine Maher desvalorizou a ausência de grandes empresas. “Dizem que tem sido ótimo ter mais espaço para as startups”, disse, mas aproveitou para lançar o “gancho” às desistentes: se quiserem voltar em edições futuras “ficaremos encantados”. A conversa mudou de tom quando foi questionada sobre a relevância dos oradores no programa. Disse que, se fosse oradora, papel que desempenhou em 2019, quando liderava a Wikipédia, ter-se-ia sentido “ofendida” com a questão.
Startups passam ao lado da polémica e já pensam em voltar para o ano
Pat Drinan e Colm Moore, o fundador e o responsável de parcerias da startup HomeHak, respetivamente, vieram da terra natal da Web Summit para participar pela primeira vez no evento em Lisboa. Dos dois, só Moore esteve numa edição irlandesa do evento. No último dia da cimeira de tecnologia, faz um balanço positivo da experiência, ao ponto de já haver “planos para voltar no próximo ano”.
Não vieram ativamente à procura de conhecer investidores, mas sim para “ter contacto com outras pessoas da indústria e parceiros” para a HomeHak, que ajuda empregadores a encontrar habitação para os trabalhadores. Pat Drinan ficou surpreendido com a mobilidade da capital. “Tenho de elogiar a capacidade de conseguir sair daqui. 70 mil pessoas a saírem todas à mesma hora sem confusão”, destaca. “Sim, quando o evento era em Dublin era mesmo no centro da cidade, era mais difícil de fazer com que toda a gente saísse”, completa Colm Moore.
Falaram ao Observador num dos pavilhões mais distantes do palco principal do evento, a Altice Arena. “Não conhecemos a nova CEO”, diz Colm Moore, quando questionado sobre a nova cara da Web Summit. “Tem andado por aí?”. Maher andou pouco “por aí”. Enquanto os avistamentos de Cosgrave eram banais um pouco por todo o recinto, a figura da nova CEO resguardou-se aos bastidores. Subiu raras vezes ao palco, não era presença habitual no Fórum dos oradores e fez uma incursão ao recinto das “women in tech” (mulheres na tecnologia) onde tirou algumas selfies.
Na única conferência de imprensa que deu, foi possível perceber que a norte-americana está longe de ter a postura solta e “desbocada” do antecessor. Foi parca e diplomática nos comentários sobre a polémica. Mas mostrou-se ofendida com um jornalista irlandês, devido ao que considerou ser uma insinuação “misógina”. A sua escolha rápida para a liderança da Web Summit levou alguns meios irlandeses a questionar se teria alguma relação de proximidade com Cosgrave. Katherine negou. “Estive com o Paddy duas vezes na vida”. Ficou com o rótulo de “fria” para os irlandeses, mas a relação da empresa com o evento também já não era fácil no país natal. Sobretudo desde a vinda para Lisboa.
“O fundador é importantíssimo na inspiração do projeto e para fazê-lo crescer, mas a partir de certa altura a organização, a escala e a complexidade das coisas excede o CEO”, ressalva Manuel Caldeira Cabral. Foi o que aconteceu com a Web Summit. Há quem tenha “mais capacidade para iniciar um projeto, com alguma loucura, até desorganização, por acreditar que a partir do nada faz um mega evento, e o Paddy é assim. Mas às vezes essas pessoas não são as melhores para continuar. Porque gostam de dizer o que lhes apetece, ser livres, e quando estes eventos tomam uma certa dimensão têm de ser geridos de outra maneira”.
Para o ex-ministro, Maher “parece ser uma pessoa bem intencionada, está a apostar muito na relação com Portugal e acho interessante dar continuidade a este projeto com uma mulher. Nesse aspeto, dá uma boa imagem ao evento”.
Todos os anos, a Web Summit vai destacando a presença feminina no evento. Este ano, 43% dos participantes eram mulheres e, entre um recorde de 2.608 startups, quase uma em cada três foi fundada por uma mulher. Bogdana Kostiuk é um desses casos – criou a sua startup para evitar a solidão no local de trabalho, a TellMe.place.
É ucraniana e confessa com um sorriso tímido que veio para a Web Summit só com a irmã. “Os meus colegas são homens, não podem sair da Ucrânia por causa da guerra…” Kostiuk veio à procura de investidores: a aplicação, onde trabalhadores podem partilhar situações que os deixaram desconfortáveis ou a sentirem-se sós no local de trabalho, de forma anónima, está à procura de 250 mil dólares em investimentos. “Tenho tido muitas reuniões, mas ainda não consegui um investimento.”
A Ucrânia tem um stand na Web Summit e, tal como acontece no modelo português, há empresas que são selecionadas para vir ao evento com a delegação ucraniana, o que reduz substancialmente os custos. A TellMe.place não veio dessa forma. “É um investimento, mas acho que compensa.” A ausência de Israel ou de grandes tecnológicas, uma questão que marcou as semanas que antecederam o evento, não é um ponto relevante para a empreendedora ucraniana. “É ok para nós as big tech não estarem. Queremos cá estar pela visibilidade.”
Um encerramento sem Marcelo… e sem confettis
A presença de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República, já era habitual na cerimónia de despedida da Web Summit. Os “até para o ano” do chefe de Estado, os agitados cumprimentos a Paddy Cosgrave e até os desafios, como o famoso “temos de ser cem mil pessoas para o ano”, dito em 2021, ficaram associados à despedida da Web Summit.
Marcelo Rebelo de Sousa na Web Summit: “Temos de ser 100 mil em 2022”
Este ano, não houve nem Paddy Cosgrave, que se demitiu em outubro, nem Marcelo Rebelo de Sousa no encerramento. Já era ponto assente que Marcelo não vinha ao fecho por questões de agenda, já que está desde quarta-feira na Guiné, numa visita de Estado. Ainda assim, prometeu uma visita “surpresa” ao evento, que acabou por não acontecer, ao contrário de outros anos.
Katherine Maher, a nova CEO, surgiu sozinha em palco para encerrar o evento, mas não se esqueceu de pedir um aplauso para quem trabalha nos bastidores. “Um evento destes dá muito trabalho”, explicou, antes de pedir palmas para a equipa de 300 pessoas que preparou uma edição bem mais atribulada do que seria de esperar há um ano. E, ao contrário de Paddy Cosgrave, não teve uma figura da política portuguesa ao lado. A norte-americana, que está há duas semanas no cargo de CEO, atirou um tímido “vejo-vos em breve” antes de desaparecer entre os cubos coloridos, regressando aos bastidores do palco principal para dar lugar à intervenção do ministro da Economia.
António Costa Silva foi, de resto, o embaixador do Governo no evento deste ano. Princípio, meio e fim contaram com a intervenção do ministro da Economia. António Costa esteve ausente pela primeira vez, e foram várias as presenças canceladas de membros do Governo, devido à crise política. Ana Catarina Mendes, ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, e Mário Campolargo, secretário de Estado da Modernização administrativa, fizeram visitas discretas. Quando Costa Silva saiu do palco da Web Summit, após um discurso em que até falou sobre a crise política e deixou um apelo aos investidores, não houve confettis nem um aceno de despedida da nova cara do evento. Fica para o ano?