Os dados já recolhidos pela Comissão Independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht permitem traçar a estimativa de que terão existido mais de 1500 vítimas de abuso sexual na Igreja Católica ao longo dos últimos 70 anos, sabe o Observador. As conclusões serão anunciadas oficialmente esta quinta-feira, numa conferência de imprensa na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Em seis meses de trabalho, segundo apurou o Observador, chegou ao conhecimento deste grupo de trabalho informação sobre centenas de alegados crimes cometidos contra crianças por parte de membros da Igreja. Os números atuais são superiores aos apresentados há cerca de dois meses, quando a Comissão avançou com cerca de 326 denúncias (das quais 16 foram enviadas ao Ministério Público por envolvimento de padres ainda no ativo ou crimes que ainda não prescreveram). Na altura os membros deste grupo de trabalho já tinham dito que o número real de vítimas seria muito superior ao número de denúncias, uma vez que algumas delas reportavam abusos contra mais do que uma vítima, por parte do mesmo agressor — mais de metade das alegadas vítimas dizem conhecer outras pessoas que foram alvo de abusos, sabe o Observador.
Os números reais de denúncias agora recebidas pela comissão não aumentou significativamente. Mas, tendo em conta o “efeito icebergue”, os números das denúncias não refletem a realidade, que será bem mais vasta. E é essa estimativa que a comissão fez nos últimos tempos. O “efeito icebergue” é tradicionalmente utilizado no estudo estatístico dos abusos de menores e demonstra que o número efetivo de testemunhos conhecidos deverá situar-se entre os 20% e os 25% do universo total de vítimas — ou seja, ao aplicar-se esta teoria à quantidade de queixas é possível situar-se um número de vítimas acima das 1.500.
Ainda assim há um problema que subsiste nos dados recolhidos pela Comissão, e que já tinha acontecido no último balanço: a distribuição geográfica dos mesmos. Grande parte das respostas ao inquérito tem vindo de regiões do litoral e mais urbanas e a comissão tem enfrentado algumas dificuldades em conseguir contabilizar casos no interior do país, — o que poderá ter inúmeras explicações, entre elas o facto de alguns crimes terem potencialmente acontecido em meios mais pequenos, fazendo com que as vítimas temam expor-se.
A comissão entregou pelo menos 16 denúncias à Procuradoria-Geral da República por suspeitas contra padres que estão ainda no ativo ou por crimes que ainda não prescreveram. Apesar da insistência, a Procuradoria não responde quantos inquéritos foram abertos, nem onde.
Abusos de menores. Bispos católicos prometem à comissão independente acesso aos arquivos da Igreja
Esta quinta-feira na conferência de imprensa agendada para as 11h a comissão deverá ainda revelar novidades sobre o acesso aos arquivos secretos da Igreja Católica por parte dos historiadores que estão a ajudar a comissão e que, após grande polémica, deverá finalmente estar resolvida após intervenção do Vaticano.
Como é que a Comissão vai aceder aos arquivos secretos da Igreja?
Desde o início do trabalho da comissão independente, em janeiro deste ano, um dos objetivos era consultar os arquivos eclesiásticos, uma vez que nestes arquivos poderão ser encontradas cartas e outros documentos que mostram como a Igreja tratou (ou ignorou) casos de abuso sexual de menores ao longo das últimas décadas. Contudo, estando os arquivos sob jurisdição de cada um dos 21 bispos diocesanos de Portugal, e não ao cuidado da Conferência Episcopal — o organismo nacional que congrega os vários bispos e que mandatou a comissão independente para esta investigação —, era necessário estipular como se iria aceder a este material.
O diálogo entre a comissão independente e a Conferência Episcopal culminou num entendimento em abril, quando ambos os organismos anunciaram que estava definido o modelo de acesso aos arquivos. A 12 de abril, a comissão independente anunciou que tinha criado uma equipa científica para consultar os arquivos da Igreja. A equipa é liderada pelo historiador Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, e conta com a colaboração de vários especialistas das áreas da história e dos arquivos. O grupo de trabalho já estava no terreno e irá consultar os arquivos das dioceses portuguesas.
Mais tarde, entre 25 e 28 de abril, reunidos em Assembleia Plenária em Fátima, os bispos portugueses anunciaram que estavam de acordo quanto à disponibilidade para abrir os arquivos diocesanos à comissão independente, designadamente através do grupo de trabalho liderado por Francisco Azevedo Mendes.
O problema surgiu precisamente nessa Assembleia Plenária, quando o núncio apostólico em Portugal, o arcebispo italiano Ivo Scapolo — uma figura com um passado controverso associado à crise dos abusos de menores na Igreja Católica no Chile —, considerou que não bastaria que cada bispo autorizasse o acesso aos seus arquivos. Era necessário, segundo Scapolo, que se chegasse a normas comuns entre todas as dioceses quanto ao respeito pelas regras civis e religiosas e um acordo com a Santa Sé, à semelhança do que havia ocorrido noutros países, como em França.
Aparentemente, a maioria dos bispos portugueses estava disponível para abrir os arquivos à comissão independente. Porém, não foi isso que aconteceu em França, país em que houve bispos menos disponíveis para colaborar com a investigação. Naquele caso, a Conferência Episcopal Francesa decidiu fazer um decreto executivo determinando a suspensão de uma norma do direito canónico que dá ao bispo acesso exclusivo ao arquivo secreto, para todos os bispos franceses, no que respeitava à comissão independente para o tópico dos abusos de menores, o que obrigava todos os bispos a abrirem o seu arquivo secreto, mesmo contra a sua vontade, à comissão. Contudo, para que um decreto executivo de uma conferência episcopal tenha, efetivamente, força executiva, precisa de ser expressamente aprovado pela Santa Sé — algo que aconteceu no caso francês.
Até à intervenção do núncio apostólico, a Conferência Episcopal Portuguesa não tinha considerado necessário tomar uma decisão executiva destas, uma vez que os bispos tinham anunciado publicamente estar de acordo com a consulta dos arquivos por parte da equipa técnica. No caso português, para que uma decisão da CEP tivesse força sobre todos os bispos, tinha de ser aprovada por dois terços dos bispos com direito de voto na assembleia plenária e depois teria de receber aprovação do Vaticano. A interferência do núncio apostólico para que fosse formalizado um acordo do mesmo tipo foi entendida por alguns como uma forma de atrasar o trabalho da comissão.
Na sequência dessa intervenção do núncio, um grupo de bispos portugueses liderado pelo presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, foi chamado a Roma para uma reunião, que decorreu há duas semanas. Por essa altura, numa conferência de imprensa ocorrida em Fátima, soube-se que o acesso iria ser permitido e que o Vaticano havia dado uma “explicação” sobre como devia ser feito este acesso. Esta quinta-feira saber-se-á se esse trabalho já está a ser feito.