Não foi só por motivos turísticos que Mike Fort, britânico de 32 anos, se fixou em Lagos, no Algarve, em setembro deste ano. Queria trabalhar — “trabalhar no duro” —, no emprego que lhe ocupa dois dias por semana e lhe dá um ordenado suficiente para viver, mas também num projeto pessoal, uma “plataforma de responsabilidade social” a que se dedica no resto do tempo. “Pensei que mais valia trabalhar no duro num país onde o sol brilha e as praias são lindas, em vez de estar preso numa Manchester chuvosa e cara”, refere ao Observador.
Não que Portugal tenha sido um destino tão barato quanto esperava, especialmente Lagos, onde se fixou. Primeiro numa casa com um senhorio português, depois — e porque essa experiência não correu bem — numa comunidade com outros nómadas digitais. “Acho que Lagos se tornou num destino muito turístico e os preços escalaram. O que me disseram foi que há uns anos era muito mais barato. Provavelmente não pesquisei bem [antes de vir]”, observa. Ainda assim, não se arrependeu.
Portugal foi o seu primeiro destino como “nómada digital”, uma expressão cada vez mais badalada que ganhou maior dimensão com a pandemia e a experiência do trabalho remoto. Vários países, incluindo Portugal, têm tentado entrar na onda e procurado mecanismos para os atrair, facilitando a entrada e a estada. É disso exemplo o novo visto que entrou em vigor no final de outubro destinado aos nómadas digitais, mas que não se aplica a todos: será preciso ganhar, pelo menos, 2.820 euros (este ano, porque em janeiro será 3.040 euros) para a ele ter acesso.
Na prática, segundo explica ao Observador Gonçalo Saramago, responsável pelo serviço de imigração da Moviinn, uma plataforma que ajuda estrangeiros a mudarem-se para Portugal, ao passar a cristalizar na lei que há um visto para estrangeiros com rendimentos ativos acima de 3.040 euros, os de menor rendimento que até aqui vinham com um D7 (um visto pensado para rendimentos passivos, mas que na prática se estava a aplicar aos ativos — salários — também, e sem tetos mínimos) terão entrada dificultada. O novo visto também tem um “vazio”, apelida o especialista, no que toca ao pagamento de impostos (concretamente IRS) após os seis meses de permanência, altura a partir da qual a lei geral determina que se tornem residentes fiscais.
Para Mike Fort, que agora vive as consequências do Brexit, o visto seria uma opção, não fossem as dores de cabeça que lhe têm sido relatadas e a dificuldade que ele próprio tem sentido em obter informação nos sites do Governo português. “O processo é um pesadelo, há muito pouca informação. Não tem nada a ver com o que vivi na Austrália: aí foi só ir ao site do governo, paguei 250 dólares e ficou logo resolvido”, conta. No caso português “é preciso vasculhar nos sites e ainda não faço ideia de como fazê-lo sem um advogado”.
Ainda para mais quando ele próprio não tem um caminho definido para os próximos tempos. Voltar a Lagos ou experimentar o Porto são opções prováveis, mas tudo pode mudar, ele próprio admite, se gostar da América Latina ou da Ásia, para onde vai viajar. Por isso, não se quer comprometer com um processo, que pode ser demorado, para obter um visto que não sabe se vai usar. Talvez até volte, navegando ao ritmo da lei que lhe permite ficar até três meses, a cada 180 dias, num país europeu sem grandes responsabilidades. Incluindo fiscais.
Três meses aqui, três meses acolá. Afinal, onde é que têm de pagar impostos?
Muitos nómadas digitais, como Mike Fort, não ficam tempo suficiente para terem obrigações fiscais em Portugal ou até ser elegíveis para o regime de residentes não habituais, que lhes daria acesso a taxas de IRS mais favoráveis do que as aplicadas aos cidadãos nacionais de maiores rendimentos. Ou seja, à partida pagarão impostos nos países para onde trabalham ou têm atividade aberta (os clientes de Mike estão fora de Portugal).
Luís Leon, fiscalista da Ilya, não vê nisso um problema. “Da mesma maneira que uma pessoa vem passar férias a Portugal e está cá a trabalhar à distância e não paga impostos, porque o rendimento não é de fonte portuguesa, um nómada digital que ande de mochila às costas a trabalhar em vários países do mundo não terá de pagar necessariamente imposto no sítio onde está a trabalhar naquele momento, desde que aí não o qualifiquem como residente para efeitos fiscais”, explica, ao Observador.
O novo visto não traz mais vantagens fiscais além das que advêm do estatuto de residentes não habituais. Mas Gonçalo Saramago, da Moviinn, considera que na nova lei “continua a haver um vazio importante”. “Falta aclarar a parte fiscal”, indica. Rogério Fernandes Ferreira, fiscalista e sócio da RFF & Associados, concorda que há pouca clareza quanto às implicações fiscais da lei, nomeadamente no que toca à dupla tributação. “Não é suficientemente clara, pelo que muitos dos requerentes vêm como uma ideia errada de qual será a sua efetiva tributação. Eventualmente a resolução desta questão da tributação de salários auferidos enquanto residentes de um país, mas pagos por uma empresa sediada noutro, poderá ter de passar por uma alteração dos tratados de dupla tributação, em particular para uma melhor definição de qual o país que deverá ser competente para tributar”, afirma.
Numa análise para a ExecutiveDigest, os advogados Lin Man e Nuno Oliveira, da PRA – Raposo, Sá Miranda e Associados, sublinham, por sua vez, que, em termos fiscais, “o legislador português não cuidou de esclarecer todas as questões que se impõem a esse nível, em especial quanto ao pagamento das contribuições para a Segurança Social”. Para os especialistas “seria aconselhável o esclarecimento destas questões de tributação, apesar de não ser fácil, visto que existem conexões com outras jurisdições que, também, não pretendem prescindir de receitas fiscais”.
É que há outro tipo de nómadas digitais que planeiam ficar mais tempo. É o caso de Jeff Almerol, nómada digital há oito anos. A chegar aos 30, conta ao Observador que sente ser altura de fixar-se num sítio durante mais tempo. E Portugal pareceu-lhe uma boa opção, apesar de só ter visitado o país durante três dias. “Lisboa é uma cidade amigável, descontraída, quente. E onde falam inglês”, refere, a partir da casa arrendada em Marrocos, país onde esteve nos últimos três meses.
Jeff ganha entre 3.000 a 4.000 dólares por mês (perto desses valores em euros), o suficiente para o teto mínimo do visto português e já tem reservas para estadias de dois meses, cada uma, em Lisboa e no Porto, com possibilidade de cancelamento gratuito. Não quer ficar preso a decisões definitivas. Se gostar, fica mais tempo. “Quero pelo menos sentir o sítio primeiro. Mas sinto que Lisboa e Porto são duas cidades onde vou poder viver, primeiro porque há muitos nómadas digitais e posso integrar-me facilmente. Há uma comunidade de expatriados muito grande com quem posso fazer amizade e locais com quem me posso dar. Temos de ter conexão ao sítio e às pessoas”, expressa.
Vistos para nómadas digitais? “Sim, atraiam novos residentes, mas deem-lhes deveres políticos”
Apesar da vida itinerante, Jeff continua a pagar impostos no país de origem, as Filipinas. Mas caso decida prolongar a estada em Portugal, admite contactar um contabilista que o ajude a mergulhar nas leis e obrigações portuguesas. Se por cá ficar mais tempo, e se tornar residente fiscal, poderá mesmo aceder a taxas de IRS mais favoráveis do que um português teria com o seu rendimento caso se qualifique para o estatuto de residente não habitual. Jeff entende que, por isso, os nómadas possam nem sempre ser recebidos de braços abertos. “Penso que as autoridades têm de fazer alguma coisa em relação a isso porque acredito que antes de incentivar a entrada de pessoas de fora temos de tomar conta dos nossos. Se estivesse nessa situação também ficaria chateado”, diz.
Um “sistema fiscal bipolar”?
O artigo do El País relançou o mesmo debate: Portugal tem um “sistema fiscal bipolar” que “penaliza os portugueses e beneficia os estrangeiros”, lia-se no título. O jornal espanhol evidenciou como o país pratica uma “concorrência fiscal agressiva” desde 2009 para atrair rendimento e investimento estrangeiros, enquanto “impõe uma ‘taxa de solidariedade’ aos portugueses que ganham mais de 80 mil euros por ano”.
Em causa está o regime dos residentes não habituais (RNH), criado em 2009, e que é muitas vezes associado aos nómadas digitais, embora nem todos a ele tenham acesso: oferece uma taxa de IRS única, de 20%, em vez da progressiva — que para um português pode no máximo atingir os 48% —, durante dez anos, período a partir do qual se aplicam as regras normais do sistema fiscal português. Ou de 0% para os rendimentos obtidos no estrangeiros (exceto mais-valias de ativos, que estão sujeitas às taxas normais). Já as contribuições para a Segurança Social, quando aplicáveis, são iguais às dos portugueses. E quando é que têm de ser pagas em Portugal? Quando forem residentes em Portugal e desde que cá trabalhem pelo menos 25% do tempo.
O regime não é um visto, nem uma autorização de residência, mas apenas um estatuto fiscal. E tem sido criticado por alguns partidos políticos, entre eles o Bloco de Esquerda. “Um trabalhador que receba acima de 1.500 euros paga mais de 20% de taxa média de IRS. Um outro trabalhador não residente, chamemos-lhe um nómada digital, paga 20% quer o salário seja 1.500 ou 15 mil euros”, disse Mariana Mortágua, durante o debate na especialidade do Orçamento do Estado para 2023.
Mas nem sempre os nómadas digitais têm acesso garantido ao regime. “Por vezes tenho conversas com nómadas digitais que querem vir para Portugal e depois apanham baldes de água fria porque fartam-se de ver coisas online em que há uma equiparação direta entre nómada digital, o regime dos residentes não habituais e a taxa [única] de 20%. E depois vemos que não são elegíveis”, comenta Luís Leon, fiscalista da Ilya, ao Observador.
Para aceder ao regime de RNH, o requerente tem de ser residente fiscal em Portugal — que acontece se ficar mais de 183 dias em qualquer período de 12 meses ou se tiver habitação própria permanente em território português, o que não se aplica a Mike Fort —, e, nos últimos cinco anos, não tenha sido residente cá para efeitos fiscais. Há outro entrave: a taxa única de 20% só se aplica aos nómadas cuja profissão consta na lista de atividades de “elevado valor acrescentado” — uma lista que não inclui algumas das profissões tipicamente conotadas com os nómadas digitais.
“Há muitos nómadas digitais a trabalhar em gestão de redes sociais e venda de publicidades que não estão incluídas e não podem usufruir da taxa de 20%. Alguém que venha para uma McKinsey, uma BCG, para consultoria de gestão, não tem direito à taxa de 20% porque consultoria estratégica não está na lista”, contrapõe. A profissão de psicólogo também deixou de estar na lista, cujo propósito, quando foi criada, era incluir profissões que escasseavam em Portugal, embora de alto valor acrescentado. Daí que empregos na área tecnológica, ou médicos, por exemplo, estejam incluídos. Já se tiver um cargo de direção pode beneficiar, independentemente da área. Esta lista serve apenas para adquirir o estatuto de residente não habitual, que não é obrigatório aos nómadas que queiram vir para Portugal.
Luís Leon, um adepto confesso do regime português, argumenta que o que Portugal fez foi adaptar-se à concorrência de regimes fiscais que foram surgindo na Europa. “Nós achamos que a taxa de 20% é extraordinária, porque temos taxas elevadíssimas, mas em termos internacionais, 20% é mais ou menos”, indica. Espanha, argumenta, foi particularmente feroz nesta “guerra de fiscalidade”. “Um gestor de um fundo de investimento global prefere Espanha a Portugal porque prefere pagar 24% sobre os salários e zero sobre os milhões que venda fora de Espanha. Para uma empresa em Portugal, as mais-valias de ativos ganhas fora pagam todas as taxas normais”, defende.
Novo visto abre portas aos que mais ganham, mas arrisca fechar aos outros
Até aqui, os nómadas digitais que quisessem vir para Portugal podiam entrar ao abrigo do D7, um visto desenhado para estrangeiros reformados ou quem tivesse rendimentos próprios como rendas ou investimentos financeiros. Ou seja, rendimentos passivos e não ativos (como os salários). Mas Gonçalo Saramago, responsável pelo serviço de migração da Moviinn, explica que, na prática, “nos últimos quatro anos” passou a admitir-se que viessem com rendimentos ativos. O fiscalista Rogério Fernandes Ferreira também diz que esta “era uma solução que não era a ideal”, uma vez que o D7 “não servia o seu propósito”. Mas era “a única possível”.
O novo visto vem resolver esse problema. Destina-se a estrangeiros que prestam atividade de forma remota para fora do território nacional. É praticamente igual ao D7, com a diferença de que admite o rendimento ativo. Ou seja, o que faz é tornar claro que os nómadas digitais com rendimento ativo e não passivo podem vir para Portugal. Outra diferença é que enquanto no D7 não há limite mínimo de rendimento auferido, no novo visto há: quatro vezes o salário mínimo, uma conta que a partir de janeiro vai chegar aos 3.040 euros, quando o salário mínimo subir para 760 euros. Um patamar que não é exclusivo do regime português. Mas muito longe do salário médio em Portugal, que no terceiro trimestre era de 1.145 euros (inclui o salário base e outras componentes regulares), segundo os dados do INE.
1.145€
Salário médio em Portugal, no terceiro trimestre de 2022. Inclui o salário base e outras componentes regulares, como o subsídio de refeição, prémios ou diuturnidades, mas não os subsídios de Natal e férias.
INE
Havendo agora um visto que claramente abrange os rendimentos ativos, o que Gonçalo Saramago conjetura que venha a acontecer é que aqueles nómadas digitais com rendimentos ativos inferiores a 3.040 euros deixem de conseguir vir para Portugal com um D7.
“Por exemplo: antes, qualquer pessoa que declarasse 800 euros, passivos ou ativos, podia vir para Portugal com o D7 se provasse em seis meses ter recebido uma média equivalente ao salário mínimo. Agora, se tiver rendimentos ativos, tem de provar uma média de rendimentos dos últimos três meses de 2.820 euros [3.040 a partir de janeiro]. Sim, haverá cidadãos de muitos países que antes tinham mais facilidade para vir para Portugal, como trabalhadores remotos da Índia, Paquistão, América do Sul, África, que vão deixar de vir. Nem toda a gente pode mostrar que nos últimos três meses de rendimento ativo ganhou 3.000 euros”, considera Gonçalo Saramago. Esta opção “prejudica os trabalhadores que não têm tanto ordenado”. Já um “trabalhador americano com um bom ordenado poderá continuar a vir para Portugal”.
A nova lei permite enquadrar os nómadas digitais de duas formas. Uma, tal como no D7, implica um visto de residência temporária que vem com uma entrevista agendada no SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) ao fim de quatro meses (período durante o qual se pode sair uma vez de Portugal). Nessa entrevista, o visto é convertido em autorização de residência, válida por dois anos, período em que não pode estar fora mais de oito meses interpolados ou seis consecutivos, o que “basicamente obriga a ser residente fiscal”, resume Gonçalo Saramago. É renovável por mais três anos.
Outra vertente, mais adaptada ao estilo de vida nómada, é a que inclui um visto de estada temporária, e não de residência: é de um ano, prolongável por igual período. Não vem com um agendamento no SEF nem conta para pedir a cidadania. Mas Gonçalo Saramago tem dúvidas sobre se os serviços do SEF serão capazes de dar resposta aos pedidos. “O SEF não tem capacidade para dar seguimento, para emitir este tipo de visto. Está ainda a tratar de cidadãos do Reino Unido que ainda não têm autorizações de residência desde o final de 2019”, diz.
Mike Fort ainda não sabe se vai pedir o visto. Neste momento, está indeciso entre ficar no Reino Unido ou mudar-se para a Ásia depois do Natal. “Continuo a contemplar a possibilidade de voltar para Portugal para o ano, quando o tempo melhorar”, confessa ao Observador. “Tenho uma lista de coisas que quero fazer e estou aos poucos a tentar cumpri-las. E não quero ir a esses sítios só durante as férias. Quero fazer isto durante um ano: três meses num país, três meses noutro. E para isso não preciso mais do que um visto de turismo. Não tenho de pensar muito em vistos neste momento”, afirma.
Jeff Almerol também não quer tomar uma decisão muito definitiva. Por isso mesmo ficou reticente quanto ao D7. “Não gostei disso no D7, de implicar ter um contrato de arrendamento. Não me quero comprometer a um local onde não sei se vou ser feliz“, refere. Primeiro achava que o D7 daria para vir para Portugal, depois foi informado que, afinal, não porque as regras tinham mudado. “Pode imaginar a ansiedade, há muitas lacunas ainda.”
Rogério Fernandes Ferreira, que também é ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, explica que o novo visto é pedido no país de residência do requente (Jeff vai enviar os documentos para a embaixada portuguesa em Jacarta, na Indonésia, porque o consulado nas Filipinas não trata de vistos de residência). Mas o fiscalista também diz que a informação sobre o novo visto está a demorar a chegar aos consulados portugueses, as entidades responsáveis pelo processamento de vistos. “A isto acresce que o SEF (entidade responsável pela decisão de deferimento dos vistos), na presente data, se encontra praticamente incontactável”, critica.
Uma comunidade com cerca de 100 mil
Não há uma contabilização oficial do número de nómadas digitais a viver em Portugal e também não é fácil chegar a todos eles, dado que muitos acabam por ficar pouco tempo (aliás, como distingui-los dos turistas?). Os números que existem são, portanto, apenas estimativas. Gonçalo Hall, que criou uma associação nacional de nómadas digitais, a Digital Nomad Association (DNA), e um dos maiores impulsionadores do estilo de vida em Portugal, estima que cheguem a Portugal cerca de 40 mil nómadas digitais por mês (número líquido, não tem em conta quem sai), dos quais 16 mil em Lisboa e cinco mil no Porto. Dado que costumam ficar, em média, 2,5 meses calcula que haja atualmente entre 90 a 100 mil nómadas em todo o território nacional.
Há, por isso, cada vez mais comunidades a crescer. Joana Glória fundou uma em Lagos, a Lagos Digital Nomads, que ajuda nómadas a procurar casa, atividades turísticas, bares, restaurantes, espaços de co-working, entre outros serviços. Só nessa comunidade serão seis mil os nómadas digitais, “fora os outros que estão espalhados pelo Algarve”. “Para os privados é bastante complicado saber essa informação exata. E falo por mim que sei que há imensa gente aqui em Lagos que nem vem aos nossos eventos”, conta ao Observador.
Mesmo a autarquia de Lisboa, o destino mais popular na lista das cidades escolhidas pelos nómadas digitais da NomadList, não sabe quantos nómadas digitais estão na capital. O Observador pediu à Câmara uma estimativa, mas esta “não dispõe dos dados solicitados”.
Os números que existem, não oficiais, revelam que Portugal é cada vez mais um destino na moda para estes viajantes-trabalhadores. Tem seis destinos no top 50 da NomadList: Lisboa (em primeiro lugar); Madeira (7.º); Porto (14.º); Portimão (17.º); Lagos (20.º); e Açores (42.º). Portugal pontua 4,36 pontos em 5 e reúne a satisfação de 86% dos votantes. É considerada cara: as despesas de quem vem rondam, em média, os 3.368 dólares (cerca de 3.180 euros), mas na rubrica da “diversão” tem pontuação máxima.
Há outros pontos menos positivos (ou mesmo negativos): Portugal fica no amarelo no racismo (“okay”) e no vermelho nos rendimentos (1.646. dólares por mês, em média). Os hospitais são catalogados como “maus” e a vida noturna é assim-assim. Também com avaliação negativa (“bad”) está a rubrica que avalia se os locais são “amigáveis com os estrangeiros”.
No geral, Mike Fort, que quando falou com o Observador estava a chegar ao fim do terceiro mês em Portugal, sem visto, e que por isso teve de sair entretanto, faz uma avaliação positiva da experiência em Lagos: come fora com frequência, sai à noite, está “a aproveitar o sítio”. Com o trabalho que lhe ocupa dois dias por semana, Mike consegue ganhar cerca de 48 mil euros por ano (a 14 meses dá à volta de 3.400 euros). Está agora no Nomad Village de Lagos, onde paga entre 800 e 850 euros por mês por um quarto com casa de banho privada. Já viveu noutro apartamento, com um senhorio português, mas não correu bem. Por mês, sem a renda, as despesas ultrapassam os 1.000 euros, calcula. “A comida é mais cara do que pensava. As farmácias nem se fala…”
Mas Mike diz já ter sentido animosidade de portugueses em relação a ele ou a outros nómadas como ele. Um episódio de violência num bar, uma noite, de um português contra ele, acirrou essa perceção. “Vim para aqui porque não era feliz em Inglaterra, queria construir uma vida noutro país, experimentar outra cultura. E de repente olham para mim como se fosse o problema porque venho tornar tudo mais caro”, atira. Não que lhe tenham dito isso diretamente: “Outros surfistas que conheci passaram por isso. E foi o que me passou pela cabeça, que podia ter sido o motivo para me terem tratado daquela maneira”, acrescenta.
O salário de Jeff Almerol não é muito diferente do de Mike: entre os 3.000 e os 4.000 euros por mês (perto desses valores em euros), o suficiente para o teto mínimo do visto que planeia pedir. Está disponível para pagar entre 800 e 1.000 euros por um quarto ou apartamento. “Não preciso de estar no centro, o que vemos no centro são turistas ou locais a trabalhar. Mas também se estivermos perto do centro o acesso é fácil se quisermos ir a um café para nómadas digitais.”
As cidades foram-se adaptando a esta nova fonte de rendimentos: estrangeiros, com bons salários e poder de compra para gastar. A Flatio, uma plataforma de arrendamento temporário com 5 mil proprietários e 15 mil casas na União Europeia, está a crescer à conta dessas comunidades. Portugal representa já mais de metade do mercado, e pode chegar aos 60% se o ritmo se mantiver no próximo ano. A empresa foi fundada em Brno, na República Checa, expandindo-se para países como a Hungria, Polónia, Alemanha e, em 2020, Portugal. São já parceiros da Startup Madeira e da Digital Nomad Village da Ponta do Sol.
Radim Rezek, o CEO e co-fundador da Flatio, diz ao Observador que a empresa quer agora focar-se no mercado dos nómadas digitais por acreditar que as pessoas devem “viver onde quiserem, sem fronteiras”. A média das estadias na plataforma é de quatro meses e os preços médios não são acessíveis a um português com um salário mediano. Em Lisboa, o arrendamento na plataforma custa, em média, 1.300 dólares por 30 dias; no Porto é menos, 900. “É muito? Não acho que seja”, atira Rezek. Uma pesquisa feita pelo Observador para o mês de janeiro não encontrou, em 43 ofertas, nenhuma inferior a 1.000 euros. As oportunidades iam de 1.200 euros por 30 dias, até 8.000 euros.
Rezek contesta a tese de que os nómadas digitais estejam a contribuir para a gentrificação. “Os apartamentos do centro da cidade já estão completamente dedicados aos turistas, a maior parte está no Airbnb”, diz. Prefere olhar para os pontos positivos: o rendimento complementar que os senhorios portugueses podem ter ou os serviços que foram sendo criados a pensar nos nómadas, mas de que os portugueses também podem usufruir. “Por causa dos nómadas digitais, as pessoas têm mais coisas para fazer em Lisboa”, atira.
O novo visto é um passo positivo, mas preferia ver menos burocracia. “O que leva as pessoas a pedirem um visto é a ótima comunidade e o ambiente em Lisboa. Porque é barata, tem boa comida. Não porque Portugal tenha o melhor visto.” Este novo visto tem condições que apelida como “medianas”. “Não são assim tão especiais para atrair mais gente. Se comparar com Espanha, onde se exige um salário menor [para ter direito ao visto], com uma taxa de 15%… Não estou a pedir este tipo de vantagens, acho que devem pagar impostos. O que peço é que o processo seja mais fácil para eles. Assim, eles estariam disponíveis para pagar.”