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A história da Biennale di Venezia, um dos eventos mais prestigiados no mundo da arte, começou em 1895. Mais tarde juntaram-se eventos de Música, Cinema, Teatro, Arquitetura e Dança.© Joana Albernaz Delgado
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A história da Biennale di Venezia, um dos eventos mais prestigiados no mundo da arte, começou em 1895. Mais tarde juntaram-se eventos de Música, Cinema, Teatro, Arquitetura e Dança.© Joana Albernaz Delgado

A história da Biennale di Venezia, um dos eventos mais prestigiados no mundo da arte, começou em 1895. Mais tarde juntaram-se eventos de Música, Cinema, Teatro, Arquitetura e Dança.© Joana Albernaz Delgado

Interseccionismo à italiana: a arte no design e o design da arte

Aviso: se pertencem aos grupos independentistas do design ou, no outro extremo, da arte, podem já benzer-se e fechar esta janela: esta artigo cruza o Salone de Milão com a Biennale de Veneza.

Segundo aviso: este artigo descreve a experiência de uma pessoa que esteve pela primeira vez este ano no Salone, em Milão, e na Biennale, em Veneza. Por isso, se os leitores são daqueles aficionados do design ou da arte que peregrinam todos os anos a Milão ou de dois em dois anos até Veneza, este artigo não é para vocês. Podem ler, mas então tenham alguma paciência.

A pessoa que escreve este artigo não é apenas uma nova entrante nestes dois eventos; foi também a primeira vez que visitou as cidades em que eles se realizam, e portanto está tudo ligado na sua memória, pelo menos enquanto não lá voltar por outras razões. Queiram desculpar os lugares comuns inevitáveis. Aliás, se até aqui ainda não fecharam esta página, avisam-se ainda os leitores que o problema de ter feito o Salone e a Biennale de enfiada, em apenas dois dias, é que na cabeça de quem escreve este artigo ficou tudo um pouco misturado. Ainda estão por aqui? Ainda bem.

O Salone Internazionale del Mobile é uma feira de mobiliário que se realiza todos os anos em Milão. Começou em 1961, tendo por objetivo impulsionar a exportação de mobiliário italiano e desenvolver a indústria no pós-guerra. É hoje um dos eventos mais importantes deste setor, se não o mais importante. Este ano, ocupou mais de 210.000 m2 de área de exposição, mostrando mais de 2300 empresas nacionais e internacionais. Nos passados dias 11 e 12 de junho, o Salone abriu as portas ao público em geral (onde eu me incluí), depois de quatro dias a expor as últimas novidades do design a especialistas.

Detalhe de peças expostas no Salone

Muitos teóricos e académicos da área do design olham para este evento com algum desprezo intelectual, muitas vezes não assumido. Na realidade, e no essencial, o Salone não deixa de ser uma feira comercial onde cada marca apresenta os seus catálogos em espaços delimitados por paredes de pladur, dentro de pavilhões do tamanho de hangares de aviões. Podia ser, por isso, apenas uma Capital do Móvel gigantesca.

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É verdade, e agora confirmo, que muitas das empresas que expõem no Salone produzem peças de mobiliário banais. As suas áreas de exposição estavam cheias de sofás e poltronas, todos muito iguais uns aos outros. Muitos eram articulados, em pele clara. Mexe a base, mexem os braços, mexem as costas, mexe o encosto da cabeça, um cruzamento de clínica de fisioterapia com sofá embutido de iate de luxo. Os cantos ao lado dos sofás estavam sempre preenchidos, certamente por causa do Feng Shui, com as plantas da moda, palmeiras gigantes e ficus lyrata em vasos de acrílico, ou com candeeiros de pé dourados de linhas modernas. No entanto, algumas marcas arriscaram um bocadinho. Arriscaram, ainda assim, todas ao mesmo tempo, e no mesmo sentido, o que tornou tudo aquilo ligeiramente homogéneo. O tecido malha de borboto (que deve ter um nome mais sofisticado, que desconheço), as combinações de cores improváveis (cor de tijolo e amarelo néon, violeta e castanho, rosa velho e laranja), os fluorescentes, as manchas grandes de cores, paredes, candeeiros, mesas, jarras e cadeiras tudo no mesmo tom como se lá tivesse caído um balde de tinta. Mas, lá está. O Salone é uma feira de mobiliário que marca as grandes tendências. Não é provavelmente sítio onde Thomas Kuhn encontraria mudanças de paradigma.

Detalhes de peças expostas no Salone

Joana Albernaz Delgado

No Salone, ainda há muitas marcas a reproduzir nas suas áreas de exposição salas de estar, ou quartos, de uma maneira tradicional, compondo as cadeiras bem comportadas à volta das mesas, preenchendo estantes com livros falsos e bibelots esculturais, simulando ambientes e interiores. Mas muitas outras optam por cenários menos reais, em que os objetos não estão a cumprir (ou a encenar) a função para que foram concebidos. Almofadas de sofá penduradas como se fossem nuvens, cadeiras expostas em degrau, rodeadas de arcadas a imitar um templo romano, ou pousadas em cima de estruturas etéreas, jarras agrupadas em clusters a fazer lembrar um campo de flores. As marcas mais conhecidas, como a Minotti, a Magis, a ClassiCon, ou a Zanotta, fizeram inclusivamente retrospetivas de designs clássicos. Algumas expuseram as suas peças mais icónicas em pedestais, acompanhadas das respetivas legendas, como numa galeria de museu. As famosas mesas Quaderna, desenhadas pelo Superstudio em 1972 e produzidas pela Zanotta, estavam dispostas umas em cima das outras, numa instalação geométrica parecida com um tetris à escala humana.

Os eventos paralelos ao Salone foram ainda mais longe. O Salone está integrado na Semana do Design de Milão, da qual faz parte também desde 2003 um evento chamado Fuorisalone, que promove o design em várias partes da cidade, dentro de lojas e edifícios institucionais. A experiência odorífera e visual das flores da Ruby Barber, do Estúdio Mary Lennox, a envolver um Porsche clássico no meio do claustro do Palazzo Clerici, ou o Circolo Thonet, um carrocel gigante cheio de cadeiras da Thonet instalado no meio da biblioteca do Circolo Filologico, foram apenas dois exemplos das inúmeras instalações artísticas que usaram objetos de design. La Scatola Magica (a caixa mágica), que infelizmente não consegui ver, era uma instalação dentro de uma sala do Palazzo Reale, para celebrar a 60ª edição do Salone. Prometia um espetáculo audiovisual dentro de uma câmara escura, onde várias obras de arte da Pinacoteca di Brera, um dos mais importantes museus de arte de Milão, simulavam uma galeria de arte, que depois dava lugar a curtas-metragens de vários realizadores. Eu estava em Milão para ver design, mas o design que me chegava vinha impregnado de arte.

Do pouco que consegui ver de Milão, a cidade mergulha as pessoas na mesma experiência sensorial do Salone. Podia ser por causa da Semana do Design, mas tudo era cor, plástico e curvas, vidro fluorescente e tecidos da moda. Nas ruas, tropeçava-se em clichés e pessoas perfumadas. Em frente à esplanada no Scala, onde vários casais, como nós, tomavam um apperitivo como desculpa para descansar os pés, estava um homem de pé. Chinos, bainha pelo tornozelo e sapatos de pala à italiana, sem meias, camisa de linho desalinhada, barba rala bem aparada e óculos escuros. Era igual a tantos outros milaneses fotografados pelo Sartorialist, mas este abraçava e beijava uma rapariga de vestido esvoaçante e sandálias, os dois encostados a uma Vespa. Aqueles beijos, repetidos, não eram beijos quaisquer. Eram beijos de design. Pensados, estéticos, determinados, com propósito.

Circolo Thonet, Milão

Joana Albernaz Delgado

À chegada a Veneza, nessa noite, o cenário era diferente. A luz que bate no Canalazzo quando se sai da estação de comboios é uma luz de cristal antigo, que reflete o branco sujo, macio e gasto da pedra das igrejas. As ruas são sossegadas, ouve-se a água a bater nas margens dos canais e um ou outro motor de barco. Não há perfumes, só um cheiro leve de mar e de madeira antiga. Às vezes, cheira apenas a água estagnada, com notas de metal molhado, barcos e óleo de portos, que se mistura com um aroma a madressilva quando sopra uma brisa. Veneza tem um cheiro renascentista, este cheiro de água e flores. Não há uma parede totalmente vertical, um pedaço de chão direito. Tudo dobrou e inchou com o passar do tempo e com a acqua alta. Os edifícios são corpos velhos a respirar devagar, dobrados sobre si mesmos, os canais veias que levam a água aos tecidos de um ser ancestral. Podia dizer-se que era um cenário caquético e desolador, mas faz parte do charme da cidade. O que em Lisboa seria motivo para obra coerciva, em Veneza é classe e história.

A caminho da Biennale na manhã seguinte, Veneza mostra-se com os tons horizontais inconfundíveis do Canaletto, aqueles acinzentados do mar e azuis do céu, divididos pelos ocres, dourados desvanecidos e terracotas escuros da linha dos edifícios. A história da Biennale di Venezia, um dos eventos mais prestigiados no mundo da arte, começou em 1895. Mais tarde juntaram-se eventos de Música, Cinema, Teatro, Arquitetura e Dança. As exposições de arte estão hoje concentradas em dois pontos principais na cidade, o Arsenale e os Giardini della Biennale. Em ambos está a exposição principal da Biennale deste ano, com curadoria de Cecilia Alemani, mas também pavilhões de vários países. Veneza está também polvilhada de eventos colaterais e de outras exposições nacionais, que ocupam palácios decrépitos por toda a cidade.

É difícil falar de forma consistente dos pavilhões nacionais, porque as abordagens são muito diferentes entre si e não consegui ver todos. Em contraste, a exposição principal de Alemani tinha uma coesão assumida. Usando o título de um livro infantil de Leonora Carrington, The Milk of Dreams, Alemani montou uma exposição que mostra sobretudo artistas mulheres e, em menor número, artistas LGBT, usando o surrealismo de Carrington para dar à exposição um chapéu pós-humanista.

Vou poupar os leitores a comentários sobre artistas mulheres e artistas LGBT e sobre o seu papel nesta Biennale; podem encontrá-los aos molhos em qualquer canto da internet. Também os vou poupar às considerações pós-humanistas que estiveram na base desta exposição. Digo só que, para mim, esta Biennale é profundamente humanista, no bom e no mau sentido, mas isso dava outro texto. E, claro, não vou dar spoilers sobre a exposição de Alemani. Se falei em alguns projetos do Salone é porque este acabou. Da Biennale, prefiro que os leitores vão lá ver com os seus próprios olhos. Não quero salientar nenhuma coisa em concreto; o discurso por vezes rapta a arte e enclausura-a em palavras, e não é esse o meu objetivo. Prefiro falar do aspeto altamente pensado do design da Biennale.

Vista do Arsenale, em Veneza, um dos dois pontos onde se concentraram as exposições, a par do Giardini della Biennale.

Joana Albernaz Delgado

Basta dar uma volta rápida pelo Arsenale e pelo edifício principal dos Giardini para se perceber claramente que todo o design da exposição foi pensado ao mínimo detalhe. O diálogo entre as peças no espaço, a linha condutora entre as obras, a narrativa subjacente à criação de determinadas áreas semifechadas, que mimetizam o tema fundamental das obras que encerram, as cortinas fluidas e transparentes a conduzir o caminho do visitante. Mas não é só o espaço expositivo que é pensado. O design abrange a própria interpretação da exposição que é oferecida aos visitantes. Por exemplo, as legendas das obras estão agrupadas artista a artista. Uma única legenda contém uma descrição do artista e das obras que ali estão, manifestando uma escolha em salientar o autor enquanto individualidade e não cada obra por si. Por um lado, a falta de legenda junto de cada quadro ou escultura permite vê-las sem constrangimentos, se não se olhar para a legenda geral. Mas, por outro, emudece as peças enquanto objetos singulares. Nesta curadoria, mais importante do que cada obra individual é a história que todas, agrupadas naquela configuração, permitem contar. Não conheço as outras edições da Biennale, e é certo que a Biennale tem por objetivo mostrar as últimas tendências do mundo da arte (arrisco a dizer, tal como o Salone mostra para o mundo do design). Mas estas legendas por autor fazem-me pensar mais em graduate shows de universidades de arte do que numa exposição internacional guiada por um tema único.

O design da exposição sente-se, mas também se vê. Algumas salas, dedicadas a artistas específicos com obras mais antigas e designadas por cápsulas do tempo, são definidas e isoladas do resto por esquemas de cores específicos, com as legendas a combinar com a cor das paredes e por vezes com as cores dominantes das obras. Não consegui deixar de sorrir ao ver esta sintonia de cores, e de me lembrar do olhar ligeiramente preocupado do meu marido há anos atrás, quando achou que eu estava a tentar combinar a cor das nossas paredes com os quadros que tínhamos para pendurar na nossa casa nova. Também não consegui deixar de me lembrar que, afinal, Alemani contratou a Formafantasma para fazer o design da Biennale. A Formafantasma é um conhecido estúdio de design que dilui os conceitos de arte e design num cocktail especulativo e experimental, temperado pelas questões políticas, ecológicas e sociais que moldam o design nos dias de hoje. Curiosamente, além da Biennale, e entre muitos outros projetos, a Formafantasma também fez este ano a curadoria do simpósio Prada Frames, incluído na Semana do Design de Milão, para discutir a relação entre o ambiente natural e o design.

Veneza está também polvilhada de eventos colaterais e de outras exposições nacionais, que ocupam palácios decrépitos por toda a cidade.

Joana Albernaz Delgado

No fundo, e aos meus olhos, o que a Biennale faz com o design, usando-o como linha condutora, como matriz narrativa, é o que o Salone fez com a arte. A confluência destas duas dimensões não está nos objetos expostos em si mesmos. A Biennale ainda é sobre arte, e o Salone ainda é sobre design. Mas esta aproximação interseccionista destas duas realidades, arte e design, dá muito que pensar. E, quando uma pessoa repara nisso, parece que tudo se cruza. O título da Biennale, The Milk of Dreams, com o título The Art of Dreams, a série onde se integra o evento de design florido deste ano da Porsche, em Milão. O livro com a reprodução das revistas de design Domus de Milão, do Gio Ponti, na minha mesa de cabeceira do hotel em Veneza, um palácio renascentista recuperado recentemente, a deitar para o Canale della Giudecca. As Madonnas e os Cristos crucificados em Milão, na Pinacoteca di Brera, onde os visitantes se podiam sentar em cadeiras Savonarola, aquelas cadeiras de estilo renascentista italianas inconfundíveis que marcam a história do design italiano. As obras de arte de Chun Kwang Young em colaboração com Stefano Boeri no Palazzo Contarini Polignac em Veneza, em diálogo com cómodas antigas e papel de parede esfarrapado. As máquinas de escrever nos espaços de Carlo Scarpa no Negozio Olivetti, na Praça de São Marcos, ao lado das esculturas de Lucio Fontana e Antony Gormley. Um Laocoonte enorme em pedra (ou, mais provavelmente, a imitar pedra), ainda a segurar a serpente, mas atravessado por dois tubos de néon e vestido com um mítico blusão de penas amarelo fluorescente, na montra pop da Moncler da Galeria Vittorio Emanuele II, em Milão.

Será demasiado simplista dizer que o Salone usa a arte para ser levado mais a sério, para ser mais do que uma feira de mobiliário? Será igualmente simplista dizer que a Biennale usa o design para ser mais respeitada, no sentido de não ser entendida como um evento restrito, incompreensível e distante do público generalizado? Um evento que, para se abrir a todos, põe as legendas a condizer com as paredes, inunda tudo de narrativas explicativas e oferece interpretações fechadas, uma espécie de rampa acessível à arte para aqueles que a arte considera, condescendentemente, terem mais dificuldades? Vou precisar de mais edições do Salone e da Biennale para responder a estas perguntas. Mas Milão e Veneza, o Salone e a Biennale, têm mais em comum do que parece – e não são só os pontinhos laranja dos copos de Aperol que salpicam as esplanadas ao pé da Piazza del Duomo e da Ponte di Rialto.

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