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[Este artigo faz parte da série especial “Investigação ao Futebol” sobre os alegados esquemas de fraude fiscal no mundo do futebol. Amanhã leia “FC Porto e os seus jogadores terão defraudado o fisco em 20 milhões de euros”]
Os principais clubes profissionais de futebol portugueses são suspeitos de terem alegadamente criado, em conluio com alguns dos seus principais jogadores e respetivos agentes, esquemas alargados de fraude fiscal qualificada em sede de IRC, IRS e IVA e fraude contra a segurança social. As suspeitas são do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que já abriu várias dezenas de inquéritos ao mundo futebol que, no caso de acusações, colocará em causa praticamente todo o modelo de negócios das transferências e contratação de jogadores do mercado nacional.
O Observador inicia a publicação de uma série de trabalhos que, com base num conjunto alargado de documentação, vão explicar os pormenores de algumas das principais investigações ao mundo do futebol.
No centro dos inquéritos do DCIAP está a chamada dupla representação dos agentes de futebol nas transferências dos jogadores. Jorge Mendes, por exemplo, é o principal agente na mira do Ministério Público (MP) e da Autoridade Tributária (AT) por representar ao mesmo tempo os atletas cujos direitos económicos são transacionados, como também os clubes vendedores e, em alguns casos, os clubes compradores.
O Observador conseguiu confirmar a existência de sete inquéritos, nos quais estão em causa suspeitas de fraude fiscal e fraude contra a segurança social cujo valor total atingirá cerca de 44 milhões de euros. O valor final, contudo, deverá ser muito superior, pois o DCIAP abriu um número indeterminado de inquéritos.
Fisco imputa ao Benfica benefício ilícito de 8,4 milhões. Clube diz “não ter conhecimento ou consciência” de irregularidades
Só no caso de transações do Sport Lisboa e Benfica, Sociedade Anónima Desportiva (SAD), na altura em que clube era ainda liderado por Luís Filipe Vieira, o MP e a AT imputam um alegado benefício patrimonial ilícito superior a 8,4 milhões de euros. Em termos globais, os investigadores já terão apurado um suposto prejuízo total para os cofres do tesouro e da segurança social de pelo menos 23,6 milhões de euros relativos às transações, contratos de trabalho e desvinculação de jogadores como Jonas, Gaitan, Júlio César, Bernardo Silva, João Cancelo e André Gomes.
Por exemplo, Bernardo Silva, internacional português que joga no Manchester City, é suspeito de ter assessorado a sua própria transferência para o Mónaco, de forma a receber fundos que deveriam ter sido declarados como trabalho dependente.
O Observador confrontou por escrito a administração da Benfica SAD com todas as informações que constam deste trabalho, tendo fonte oficial do clube rejeitado qualquer irregularidade. “O Benfica cumpre as regras fiscais aplicáveis e não tem conhecimento ou consciência de condutas suas que tenham sido contrárias às mesmas”, lê-se na resposta enviada.
Fonte oficial da Benfica SAD optou igualmente por não responder às cinco perguntas concretas que o Observador colocou, nomeadamente sobre se estaria disponível para pagar os impostos alegadamente em falta, obtendo assim a suspensão provisória do processo, comum neste tipo de casos.
“No que respeita às questões concretas que colocou, e que são ao que parece baseadas em suposições, diligências e atos processuais de um processo em curso e que, ao que sabemos, estará em segredo de justiça, não temos nada a transmitir-lhe, pois no âmbito de um processo o Benfica tem como interlocutores as autoridades competentes”, respondeu fonte oficial.
A dupla representação proibida que todos praticam
O negócio do futebol profissional tornou-se uma indústria multimilionária que faz circular muitos milhões de euros, nomeadamente através da venda dos direitos económicos e desportivos (vulgo passes) dos atletas. Só em 2019, as transferências do futebol mundial alcançaram a colossal quantia de 6,5 mil milhões de euros, segundo dados da FIFA citados pelo Financial Times.
Deste bolo, qual o valor que ficou para os agentes de futebol? Cerca de 10%: 658,4 milhões de euros.
Este valor é atingido pela referida dupla representação nas transações dos direitos económicos. Ou seja, os empresários representam ao mesmo tempo os jogadores com quem assinaram um contrato e o clube que vende o jogador. Em alguns casos, chegam também a representar ao mesmo tempo (e a serem pagos) por três partes: o clube vendedor (que lhes paga uma percentagem da venda), o clube comprador (de quem recebem também um montante do negócio) e, claro, o jogador que representam (com quem têm um contrato).
É precisamente esta dupla representação que está na origem de vários alegados crimes fiscais que o MP e a AT imputam ao Benfica e a diversos agentes, como é o caso de Jorge Mendes. Porquê? Porque é um claro conflito de interesses que é expressamente proibido pelo regulamento disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e da Federação Internacional de Futebol (FIFA), mas que é prática generalizada no mercado nacional e internacional desde há muitos anos.
No caso de Jorge Mendes, está em causa a sua participação na transação dos direitos económicos e respetiva desvinculação dos jogadores André Gomes, Bernardo Silva, João Cancelo, Nélson Oliveira e João Carvalho, mas também no compra e respetiva vinculação de Luís Farinã — um dos grandes flops da época 2013/14.
Isto é, o dono da Gestifute representou cada um daqueles jogadores ao mesmo tempo que foi intermediário na venda dos respetivos direito económicos — o que é expressamente proibido pelos regulamentos da FPF e da FIFA.
Tal facto jurídico — pelo menos, é assim encarado pelo MP — é reforçado pela descrição genérica e abstrata do advogado Lúcio Correia. “O Regulamento de Intermediários da FPF, que se encontra em conformidade com o Regulations on Working with Intermediaries da FIFA, consagra claramente que o intermediário apenas pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual (art. 5.º n.º 3)”, afirma o professor de Direito do Desporto da Universidade Lusíada, sem se pronunciar sobre qualquer caso concreto.
A violação dos regulamentos, acrescenta Lúcio Correia, pode levar “o intermediário que aja simultaneamente em nome e por conta do jogador e do clube” a ser sancionado com a impossibilidade de se registar como agente na FPF entre 1 a 3 épocas desportivas — castigo que pode ser alargado a outras federações desportivas mundiais após a respetiva comunicação à FIFA.
Além de Jorge Mendes, muitos outros agentes incorrem no mesmo problema da dupla representação. Outro caso é Miguel Pinho, conhecido por ser agente de Bruno Fernandes, que foi acusado por Gedson Fernandes de, durante o período em que foi seu representante, ter sido pago pelo Benfica — o que o próprio Pinho reconheceu. “Usufruímos de uma comissão – que é verdade – paga pelo Benfica, para não sobrecarregar o jogador. Quer dizer, nós estamos a prestar um serviço aos jogadores, mas é o Benfica que nos está a pagar”, afirmou Pinho no julgamento de um caso judicial que o opôs a Gedson Fernandes, segundo o Público.
Contudo, o valor final do alegado prejuízo para o Estado deverá ser muito superior. Porquê? Porque o MP e a AT estão a investigar mais 50 contratos assinados pelo clube da Luz desde 2015, como a CNN Portugal avançou recentemente, e suspeita que os esquemas acima descritos foram concretizados de forma generalizada ao longo dos anos.
Contratos e faturas de intermediação são falsas e geraram vantagens para Benfica e Mendes
É por tudo isto que os contratos de intermediação assinados entre o Benfica e as empresas de Jorge Mendes nos casos acima descritos são encarados pelo MP e pela AT como falsos — o que faz com que as faturas emitidas pela Gestifute, SA (Portugal) e pela Gestifute International Limited (Irlanda) sejam igualmente classificadas como falsas.
Porquê? Porque a relação contratual estabelecida entre o clube e Jorge Mendes não é juridicamente verdadeira, já que a empresa do agente representa o jogador — e não o clube.
E por que razão o clube e o agente assinaram tal contrato? Para garantir que os serviços da Gestifute (de representação do jogador) seriam remunerados pelos clubes, retirando-se assim tal ónus dos atletas. Por outro lado, os clubes também têm algo a ganhar: a redução de impostos a pagar.
Explicando. Como as faturas dos alegados serviços de intermediação emitidas pelas empresas de Jorge Mendes obrigam ao pagamento de IVA, o Benfica pode deduzir o mesmo no acerto de contas que tem de fazer com o Estado.
Por outro lado, o valor da própria fatura é um custo para o Benfica que pode ser abatido aos lucros da sua SAD em sede de IRC — fazendo com que esta pague menos imposto sobre os lucros.
Assim, o Benfica terá obtido uma vantagem patrimonial ilícita em sede IVA e de IRC no valor total de 2.424.893,70 euros.
Por outro lado, o próprio Jorge Mendes também terá criado um esquema de evasão fiscal através da Polaris Sports Limited e Gestifute International para que os proveitos recebidos com a intermediação também não pagassem os respectivos impostos. O MP e a AT imputam a Jorge Mendes uma alegada vantagem patrimonial ilícita de cerca de 7,8 milhões de euros.
Empresa de Bernardo Silva contratada pela Gestifute para assessorar a sua própria transferência
Todo este caso levou o MP e a AT não só a realizar buscas judiciais aos escritórios da Benfica SAD e do grupo Gestifute, como também aos domicílios de Luís Filipe Vieira, Jorge Mendes e às casas de André Gomes, João Cancelo e ao pai de Bernardo Silva, Paulo de Carvalho e Silva.
Acresce que, no caso da buscas realizadas ao pai de Bernardo Silva, as autoridades descobriram que o jogador é gerente de uma sociedade denominada WW10 Global, Lda que tem sede na sociedade de advogados Macedo Vitorino e Associados. Bernardo foi gerente da sociedade entre abril de 2014 e maio de 2020 — altura em que deu lugar ao seu pai Paulo de Carvalho e Silva.
Ora, esta sociedade de Bernardo Silva foi contratada pela Gestifute para “colaborar” na transferência do próprio jogador para o Mónaco em janeiro de 2015. Ou seja, terá prestado um alegado serviço à Gestifute.
De acordo com o MP e a AT, tal contrato terá alegadamente servido para “dissimular” um alegado prémio de assinatura que o internacional português terá recebido do Mónaco. O Observador não conseguiu apurar o valor da alegada vantagem patrimonial que a AT imputa ao internacional português mas poderá estar em causa uma alegada ocultação de rendimentos trabalho dependente em sede de IRS porque os prémios de assinatura são encarados dessa forma pelo Fisco — e não como uma prestação de serviço.
A sociedade do jogador do Manchester City tem um objeto social abrangente, podendo ter uma atividade relacionada com a “produção e promoção de eventos desportivos, a prática desportivos”, “gestão de imagem desportiva e comercial de desportistas e clubes” e o “agenciamento para celebração de contratos desportivos”, entre outras actividades.
Além de buscas judiciais realizadas à casa do pai de Bernardo Silva, em Lisboa, as autoridades deslocaram-se ainda ao escritório da Macedo Vitorino & Associados onde a empresa WW10 Global tem sede social. Confrontada com esta informação, fonte oficial do escritório optou por não fazer comentários.
Além de enviar perguntas dirigidas a Bernardo Silva para o escritório Macedo Vitorino — por termos a informação de que este é o escritórios de advogados que representa o jogador —, o Observador tentou igualmente contactar telefonicamente Paulo de Carvalho e Silva. Após o jornalista do Observador ter-se identificado, avançando o assunto e solicitado um email para o envio das perguntas sobre as investigações do DCIAP, o pai de Bernardo Silva informou que estava numa reunião e desligou abruptamente o telefone. Foi igualmente enviado um sms a solicitar o envio de um endereço eletrónico para o envio das perguntas mas o mesmo também não teve resposta.
Após ouvir uma descrição abstrata deste caso feita pelo Observador, e sem qualquer referência aos nomes envolvidos, Lúcio Correia entende que pode estar em causa uma violação do regulamento de intermediários da FPF. “Do ponto de vista disciplinar o intermediário que não comunique à FPF as informações completas sobre todas e quaisquer remunerações ou pagamentos recebidos no âmbito da sua atividade ou que outorgue um contrato de representação que não preencha os requisitos exigidos na Lei nº 54/2017 de 14 de Julho ou pelo Regulamento de Intermediários da FPF, pode ser sancionado pela FPF nos termos do seu Regulamento Disciplinar“, afirma o professor de Direito do Desporto.
O caso de Jonas
O MP e a AT estão ainda a analisar alegados crimes fiscais nas renovações e nas contratações de novos jogadores. Um desses contratos é o de Jonas, um dos jogadores mais importantes do Benfica nos últimos anos, que já foi alvo de buscas judiciais nas duas casas que detém na Grande Lisboa.
Depois de rescindir com o Valência, Jonas foi contratado a custo zero em 2014 pela direção liderada por Luís Filipe Vieira. Como é habitual nestes casos, o Benfica pagou a Jonas o chamado prémio de assinatura — o que faz com que o ‘custo zero’ não passe de um eufemismo. E como foi pago tal prémio? Através da emissão de faturas pela empresa brasileira Empreseprev — Prestadora de Serviços e Promovedora de Eventos, Ltda, de que são sócios o irmão e a mãe de Jonas.
Ou seja, a empresa Empreseprev declarou, através de faturas emitidas entre 2010 e 2016, que prestou determinados serviços ao Benfica.
O problema é que a AT entende que essas faturas são falsas por não consubstanciarem uma relação contratual verdadeira. Isto é, a Empreseprev não prestou qualquer serviço ao Benfica. Quem o prestou foi Jonas, que tinha um contrato de trabalho desportivo com o Benfica. Logo, todos os pagamentos feitos à Empreseprev são, na realidade, rendimentos de trabalho dependente do jogador.
Logo, e continuando a explicar a visão da AT, Jonas está em falta em relação à AT e à Segurança Social porque não declarou os valores pagos à Empreseprev como rendimento de trabalho dependente.
Mas o Benfica também está em apuros por duas razões:
- Não entregou os respetivos valores de IRS e de Segurança Social a título de retenção na fonte.
- Ao aceitar as faturas da Empreseprev, beneficiou patrimonialmente, pois conseguiu deduzir o IVA pago e contabilizou a fatura como um custo, o que também lhe deu vantagens fiscais, pois os custos permitem abater a matéria coletável de IRC em termos de lucros.
A AT não tem dúvidas de que este esquema visava “diminuir a tributação das verbas na esfera jurídica do jogador, beneficiando-o em sede de IRS. Pela mesma razão, poderá ter a entidade pagadora [Benfica] beneficiado financeiramente pelo valor a despender com a contratação, mas também com a diminuição dos encargos que sobre si impediriam a título de contribuições para a SS”, lê-se num relatório da AT a que o Observador teve acesso.
Além disso, e a propósito das renovações do contrato inicial de Jonas (ocorreram renovações em 2017 e 2018), outro esquema terá sido construído, entrando a Empresprev como intermediadora da renovação desse contrato — quando era agente de Jonas — e inclusive como vendedora de uma parte dos direitos económicos do passe de Jonas.
O MP entende que o jogador brasileiro terá prejudicado o fisco em 2.845.129,48 euros nos anos de 2015 e 2016 e o Benfica, por seu lado, terá cometido um crime de fraude fiscal qualificada no mesmo período, apropriando-se de cerca de 2.324.844,30 milhões de euros. Total do alegado prejuízo para o Estado: cerca de 5.169.973 euros.
Os casos Gaitan, Júlio César, Carrilho e Bilal
Um esquema semelhante terá acontecido com a contratação e/ou renovação dos contratos do argentino Gaitan (contratado em 2010, renovou em 2014 e foi vendido ao Atlético de Madrid com intermediação de Jorge Mendes), André Carrilho (contratado a custo zero em 2016), Júlio César (contratado a custo zero em 2014) e Bilal Ould-Chikh (mais uma transferência intermediada por Jorge Mendes e com o fundo Doyen na jogada).
Ou seja, o Benfica terá pago comissões aos agentes daqueles jogadores por terem intermediado a compra e venda dos direitos económicos quando, na realidade, estariam a representar os interesses de cada atleta. Assim, entendem o MP e a AT uma vez mais, o clube substituiu-se ao jogador, ao pagar o serviço de representação do agente.
O mesmo poderá ter acontecido, admitem os investigadores, com os contratos de direitos de imagem e os processos de desvinculação dos atletas acima referidos.
O Fisco assume que os valores pagos pelo Benfica aos agentes correspondem a rendimentos de trabalho dependente dos atletas.
Por outro lado, e no caso das contratações a ‘custo zero’ de André Carrilho e de Júlio César, estão também em causa os valores pagos a título de ‘prémio de assinatura’.
Logo, o MP e a AT imputam uma alegada vantagem patrimonial de 3.699.649, 52 euros ao Benfica por não ter procedido enquanto entidade patronal à respetiva retenção na fonte e sobretaxa dos rendimentos dos atletas.
Já os atletas terão enriquecido ilicitamente nos seguintes valores: Gaitan, 2.246.508, 88 euros; Júlio César, 2.019.110,28 euros; e Bilal (221.662, 47 euros). Ou seja, estamos a falar de um total de 4.487.281, 63 euros.
Em resumo, este segmento da investigação relacionado com Gaitan, Júlio César, André Carrilho e Bilal poderá ter levado a um prejuízo de cerca de 8,1 milhões de euros do fisco.
Contudo, os circuitos financeiros que foram gerados por estas transferências ainda estão a ser investigados, logo os valores ainda são provisórios. Até porque se verificou a subcontratação de vários agentes através de sociedades offshore e de vários países.
Enfatize-se, por último, que todos estes casos podem ser apenas a ponta de um icebergue. Isto é, o valor final do alegado prejuízo para o Estado provocado por todos estes esquemas poderá ser muito superior. Porquê? Porque o MP e a AT estão a investigar mais de 55 contratos de jogadores do clube da Luz desde 2015, como a CNN Portugal avançou recentemente. O escrutínio desses contratos abrange novos alegados desvios da parte de Luís Filipe Vieira, constituído arguido na Operação Cartão Vermelho, mas também a alegada prática generalizada de crimes fiscais.