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Aos 50 anos, Isabel Rio Novo é uma das escritoras mais consistentes da sua geração
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Aos 50 anos, Isabel Rio Novo é uma das escritoras mais consistentes da sua geração

RUI OLIVEIRA/OBSERVADOR

Aos 50 anos, Isabel Rio Novo é uma das escritoras mais consistentes da sua geração

RUI OLIVEIRA/OBSERVADOR

Isabel Rio Novo: “Há a perceção de que o escritor é prescindível. Somos uma espécie de excrescência bonitinha e interessante da sociedade”

Depois de Agustina-Bessa Luís, Isabel Rio Novo prepara-se para assinar uma biografia de Luís de Camões. Em entrevista, fala das suas raízes, dos desafios irrecusáveis e de como se resolve na escrita.

Chega à praia de Salgueiros, em Vila Nova de Gaia, ainda o céu não tinha aberto completamente. Vive perto do mar, diz que junto dele consegue desligar-se mais facilmente do mundo, e assume-me uma pessoa matinal. “Levanto-me cedo, por volta das 7h30, e aproveito a manhã inteira para escrever em frente ao computador.” Isabel Rio Novo tem 50 anos e no olhar traz serenidade, nas palavras a lucidez e na escrita a ponderação.

Cresceu no meio de adultos, viveu na mesma rua onde nasceu Almeida Garrett, no Porto, e aos quatro anos aprendeu a ler por iniciativa de uma bisavó. Dos contos infantis de Matilde Rosa Araújo à revista Crónica Feminina, passando pelos policiais “bastante violentos” do pai, leu praticamente tudo o que havia nas prateleiras de sua casa e ganhou nos livros uma verdadeiramente companhia. “Tinha a noção exata que encontrava nos livros amigos à distância, entre as personagens e entre os próprios autores. Quando escreviam o que eu sentia, o que eu queria dizer, mas não me conseguia expressar tão bem, existia uma ligação forte e uma identificação clara, acho que essa é a autêntica sensação de amizade.”

Dividida entre a literatura e a história, durante o percurso académico juntou as duas paixões, mas o desejo de ser escritora prevalecia, ainda que soubesse que em Portugal a profissão seria “praticamente impossível”. “O efeito que um livro ou a leitura dão é um efeito diferido e prolongado, é como uma medicação que começamos a tomar e que só passado um tempo é que sentimos o seu efeito. Esta é uma discussão de séculos, a cultura não tem uma utilidade e um efeito imediato, é difícil ver a sua eficácia e defender a sua sustentabilidade.”

Aos 23 anos começou a dar aulas na Maia, onde leciona até hoje escrita criativa, estruturas narrativas e história de arte, e aos 32 lançou o seu primeiro livro, “O Diabo Tranquilo”, altura em que Daniel Maia-Pinto Rodrigues a convidou a transformar os seus poemas numa narrativa fantástica. Seguiu-se a novela “Caridade”, em 2005, e o seu primeiro prémio literário, depois foi mãe e adoeceu, regressando à escrita apenas em 2016, com “Rio dos Esquecimento”, sendo finalista do Prémio Leya. Começava assim a sua “segunda vida literária” com direito a mais visibilidade, curiosidade e feedback por parte dos leitores.

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Em 2019 recebe um desafio maior: fazer a biografia de Agustina Bessa-Luís. Durante três anos, Isabel Rio Novo mergulhou na vida e na obra da escritora portuense, viveu obcecada pelas suas histórias, visitou os seus lugares e ganhou leitores, mas jurou a si própria que não voltaria a fazer biografias, até que em 2020 tudo mudou. Ainda sem data de lançamento, a escritora prepara-se para assinar uma biografia de Luís de Camões, onde o maior inimigo é o tempo, mas também a falta de documentos autênticos e as informações contraditórias. “Uma biografia é sempre um puzzle, neste caso as peças estão espalhadas e muitas vezes as próprias peças estão partidas, tenho de recolher as migalhas e juntá-las uma a uma.”

A primeira biografia da escritora foi publicada em 2019 pela Contraponto

Fale-me das suas origens.
Nasci no Porto, numa família de classe média, da parte paterna tenho muitas ligações à terra, os meus ascendentes eram pessoas humildes, do lado materno não tanto, tenho algumas pessoas com estudos e formação académica. Embora tenha nascido no Porto, as minhas raízes estão muito no Minho, onde os meus pais são oriundos. Acabei por passar a minha infância em Barroselas, perto de Viana do Castelo, as minhas memórias do Porto começam quando inicio o meu percurso escolar. Na altura, morávamos na zona histórica do Porto, Rua Dr. Barbosa de Castro, exatamente onde nasceu Almeida Garret, e a minha escola era também ali, com vista para o rio.

É filha única, sente que cresceu no meio dos adultos?
Sim, cresci no meio das conversas dos adultos, até entrar para a escola não convivia praticamente com outras crianças. Confesso que sentia alguma falta disso, mas rapidamente encontrei nos livros uma companhia, aliás, com quatro anos aprendi a ler.

Como é que se aprende a ler com essa idade?
Aconteceu graças à disponibilidade de uma pessoa a quem chamo de bisavó, embora ela tecnicamente fosse tia da minha avó materna, que, apesar de só ter a quarta classe, adorava ler e ensinar o que sabia. Com quatro anos já escrevia umas cartas rudimentares e lia tudo o que me vinha parar às mãos.

Lembra-se do primeiro livro que leu?
Não me consigo lembrar, sei que o meu pai sempre leu muito, sempre o conheci com dois livros, o que estava de facto a ler e o que estava de reserva. O meu avô materno era licenciado e um verdadeiro erudito, trabalhava numa instituição bancária, mas a vida dele só começava quando chegava a casa e podia ler, e lia compulsivamente. Quando se reformou, lembro-me de o encontrar mais vezes na Biblioteca Municipal do Porto do que propriamente em casa da minha avó.

Teve logo cedo a consciência do poder e do efeito que tinha a leitura em si?
Acho que sim. Um efeito muito forte de viagem, de alargamento dos meus horizontes, de companhia, tinha a noção exata que encontrava nos livros amigos à distância, entre as personagens e entre os próprios autores. Quando escreviam o que eu sentia, o que eu queria dizer, mas não me conseguia expressar tão bem, existia uma ligação forte e uma identificação clara, acho que essa é a autêntica sensação de amizade. Na altura lia livros infantis da Matilde Rosa Araújo, mas também a Crónica Feminina, uma revista que a minha avó colecionava e onde publicavam uma fotonovela por fascículos. Lembro-me que quando a coleção estava completa a minha avó fazia uma encadernação grosseira e cozia as folhas todas. Foi nessa altura que contactei com alguns clássicos da literatura, como Alexandre Dumas, e livros de adultos, alguns até bastante violentos, com relatos de guerra, torturas e combates, mas era o que tinha em casa. O meu pai lia muitos policiais, da Coleção Vampiro aos livros de bolso da Europa América.

Há algum que o tenha marcado especialmente?
Talvez o Ellery Queen. Ele escrevia sobre um detetive que, ao contrário daquela típica figura muito segura, charmosa e misteriosa, era alguém magro, de óculos, muito racional e com um sentido de humor muito fino. No penúltimo capítulo interrompia a narração e desafiava o leitor a descobrir o culpado com as pistas que já tinha na sua posse. Claro que acabava por contar o desfecho no último capítulo, eu não conseguia chegar lá pela via dedutiva, mas muitas vezes dava-me um certo gozo chegar lá pela minha intuição. Nunca escrevi policiais, mas há certos ingredientes do suspense, do mistério e da observação que coloco naquilo que escrevo em romances.

"O efeito que um livro ou a leitura dão é um efeito diferido e prolongado, é como uma medicação que começamos a tomar e que só passado um tempo é que sentimos o seu efeito. Esta é uma discussão de séculos, a cultura não tem uma utilidade e um efeito imediato, é difícil ver a sua eficácia e defender a sua sustentabilidade."

Estudar literatura comparada era uma coisa óbvia?
Hesitei muito até ao final do 11.º ano entre literatura e história, eram as minhas duas grandes paixões. As minhas grandes referências na leitura são o meu pai, que lia um pouco de tudo, e o meu avô, que lia sobretudo clássicos em latim, alemão, francês, inglês e grego, costumo dizer que ele era o meu Google no tempo em que não havia Google. Acabei por fazer uma licenciatura em literatura, mas logo que pude escolhi também cadeiras de história e fiz o mestrado nessa área. Gosto de muito do passado, dessa viagem no tempo, atrai-me muito os vestígios do passado, até os vestígios mais físicos, os retratos, os objetivos e os locais, mesmo que estejam em ruínas e transformados.

É uma pessoa nostálgica?
Muito pouco. Gosto do passado que não conheci, sinto que sou muito positiva e pouco conservadora, o que acaba por ser um contraste interessante da imagem que as pessoas têm daquilo que eu escrevo. Tive noção da temporalidade e da ideia de finitude desde muito nova, sei que vida é uma viagem com termo à vista, mas não sou nostálgica, talvez seja melancólica, no sentido clássico e espiritual do termo.

Que expectativa tinha em relação ao seu futuro?
A nível profissional queria ser escritora, mas comecei a dar aulas com 21 anos na Universidade da Maia, onde ainda hoje leciono escrita criativa, estruturas narrativas e história da arte. Queria ter uma carreira académica, prosseguir com os meus estudos, por isso fiz mestrado, doutoramento e investigação, mas durante a juventude tentei fugir desse caminho de dar aulas, agora recordo que em miúda quando brincava com as bonecas não era a mãe delas, mas sim a professora.

O que dar aulas lhe dá?
Dá-me um sentido de realidade. Escrever pode ser um ato muito solitário e dar aulas implica sempre o contacto com o outro, um outro que é de outro tempo, tem outras referências e outras lacunas, e estabelece-se uma ligação muito útil à minha vida, que continua além do que são os meus interesses. É conhecer gente com histórias interessantes e que se revelam autênticas surpresas. Há pessoas que são muito evidentemente qualquer coisa, evidentemente bonitas, inteligentes ou problemáticas e depois há aquelas pessoas que têm segredos e mistérios, com quem começamos a conversar e percebemos que têm passados incríveis e experiências que nunca imaginaríamos. Dar aulas é oferecerem-me de bandeja todos os dias pessoas interessantes e diferentes para eu descobrir e conhecer.

Percebeu logo que seria difícil viver da escrita em Portugal?
Diria quase impossível, devem-se contar pelos dados de uma mão as pessoas que conseguem fazê-lo, infelizmente. Sou muito pragmática, as coisas são o que são e olhando à minha volta não me parece que as coisas mudem nos próximos anos, sou otimista, mas não tanto [risos]. Teria que haver uma inversão de valores muito grande não posso dizer que a culpa é só dos políticos, é um problema geral. Há a perceção que o escritor é uma figura prescindível, os cantores percebemos para que servem, os pintores também, os bailarinos também, mas toda a gente acha que consegue ser escritor. Em certa medida, somos uma espécie de excrescência bonitinha e interessante da sociedade e isso vê-se, por exemplo, quando sou convidada para eventos organizados pelos poderes locais e depois são os próprios poderes locais que não estão presentes nas sessões onde os escritores intervêm, acho que isso traduz bem esse sentimento. É uma coisa cultural e social, um círculo vicioso, não digo que não possa ser quebrado, mas, neste momento, os estudos e as estatísticas não mostram essa mudança.

Como é que isso pode mudar? A solução passa por onde?
Tem-se muitas vezes a sensação de que um livro, no sentido literal e imediato, dá-nos poucas coisas. O efeito que um livro ou a leitura dão é um efeito diferido e prolongado, é como uma medicação que começamos a tomar e que só passado um tempo é que sentimos o seu efeito. Esta é uma discussão de séculos, a cultura não tem uma utilidade e um efeito imediato, é difícil ver a sua eficácia e defender a sua sustentabilidade. Sinto-me um bocadinho impotente no que toca a soluções, quem sou eu para responder aquilo que os especialistas, os pedagogos e os políticos não respondem? Tento fazer a minha parte que é escrever, tentar que as minhas filhas leiam, ir às escolas mostrar que os livros não têm que ser só uma coisa de leitura obrigatória, associada a uma tarefa escolar, e que o escritor não é aquela criatura isolada e esquisita que está na sua torre de marfim. É isso que tento fazer.

"Desde os meus 38 anos, altura em que sobrevivi ao cancro, que não dou nada por garantido."

RUI OLIVEIRA/OBSERVADOR

Lança o primeiro livro, “O Diabo Tranquilo”, em 2004. Como é que ele surge?
Estava focada no meu percurso académico, a terminar o doutoramento, quando o Daniel Maia-Pinto Rodrigues me lançou o desafio de pegar livremente em poemas dele e criar uma narrativa fantástica. Gosto muito de poesia, adoro ler poesia em voz alta, tenho um punhado de poemas que talvez nunca vá editar porque tenho demasiado respeito por este estilo. A Agustina Bessa-Luís dizia, e eu concordo, que um romance medíocre pode ler-se com gosto, mas a poesia medíocre é insuportável.

Um ano depois, em 2005, ganha o seu primeiro prémio literário.
Sim, com o livro “Caridade” ganho o prémio Manuel Teixeira Gomes e foi importante na altura porque durante toda a minha adolescência escrevi contos e quando escrevi esta novela provavelmente escrevi-a porque tinha terminado a minha tese de mestrado e ganho a consciência de que era capaz de escrever algo com mais fôlego. Por isso é difícil dissociar a minha vida literária da minha vida académica. Esse prémio foi um estímulo para continuar a escrever, mas depois nasceram as minhas filhas, uma em 2005 e outra em 2008, e não consegui escrever com o ritmo e a intensidade com que escrevo hoje. Em 2011 adoeci, tive um cancro na mama e um prognóstico reservado, tinha 38 anos.

Como encarou essa fase?
Com o meu pragmatismo habitual. Empenhei-me nos tratamentos e em todas as cirurgias associadas, foi um processo que me ocupou um par de anos. Depois recuperei a ideia que tinha tido para o livro “Rio do Esquecimento”, 2016, e fui finalista do Prémio Leya, isso deu-me mais visibilidade.

Como foi regressar à escrita após um período tão doloroso da sua vida?
Nunca deixei propriamente de escrever, lia muito durante os tratamentos, mas durante aqueles anos foquei-me em fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para ajudar os médicos e a ciência na minha cura, não queria morrer.

Já foi distinguida algumas vezes, que efeito têm os prémios em si?
A diferença entre escrevermos para nós e publicar, é o desejo de sermos lidos. Os livros que publiquei em 2004 e 2005 não tiveram praticamente leitores, só com o “Rio de Esquecimento” é que a minha obra passou a estar disponível nas livrarias, os órgãos de comunicação deram conta da sua existência e começaram a existir leitores fora do meu ciclo que me davam feedback, um feedback que não imaginava ser tão bom. Escrever é uma forma de comunicar e, através dos livros, as pessoas devolvem-me a mensagem com as leituras delas, que muitas vezes não são as que eu tinha em mente, mas tornam-se igualmente legítimas. Isso é muito gratificamente não apenas do ponto de vista literário, mas também humano. O “Febres das Almas Sensíveis” (2018) fala da tuberculose, uma doença que matou muito até ao surgimento dos antibióticos, em meados do século XX, e com esse livro descobri que há imensas pessoas que ainda têm memórias associadas a essa doença, quando partilham isso comigo acrescentam-me imenso. Essas é que são as formas gratificantes de validação, mas claro que não desdenho os prémios, as menções e as críticas literárias. Se as pessoas não souberem que os livros existem não os leem e não os escolhem.

Sempre fez sentido escrever para o outro e não guardar o que escreve numa gaveta?
A escrita resolve muitas coisas, é quase terapêutico, mas para mim essa não é a última etapa. Preciso de tornar essa experiência em algo que não seja não exclusivamente pessoal, mas que o leitor consiga identificar-se e comunicar com ela.

Consegue identificar o seu leitor?
Há um pouco de tudo e dependente muito dos livros. O livro que até agora me deu mais leitores foi a biografia da Agustina Bessa-Luís porque tive os leitores dela, os leitores de biografias, os leitores dos meus romances, entre homens, mulheres, pessoas mais jovens ou de mais idade. Houve pessoas que me disseram que não gostavam de Agustina ou que nunca tinham lido nada dela e pegaram num livro depois de lerem a biografia e esse era também um dos meus grandes objetivos.

Em vários dos seus livros, incluindo “Madalena” (2022), aborda temas como a doença ou a morte. É uma estratégia tocar em temas delicados e sensíveis dos nossos dias?
A morte e certas doenças, como a tuberculose no passado e o cancro atualmente, são tabus. Queiramos ou não, a morte faz parte da vida, é provavelmente a única coisa garantida que temos, o resto, inclusivamente o amor, pode-nos ser dado ou não. Nos meus livros não existem só doenças e morte, abordo outros temas como a família, a dificuldade das relações humanas ou a violência, mas a doença e a morte saltam mais à vista porque ainda há uma tendência grande para não as ler ou as confrontar. Um dia um crítico leu o “Rio do Esquecimento” e disse-me ter imaginado alguém muito diferente do que sou depois de me conhecer, é engraçado porque não sou nada negativa, soturna ou mórbida, bem pelo contrário. A escrita serve também para me resolver e aprender a lidar com certos momentos, abordar estes temas ajuda-me a aceitar as perdas e a encarar essa perspetiva de finitude sem me tornar uma pessoa amargurada, desesperada ou sem gosto pela vida.

"O meu objetivo é sempre ter o número suficiente de leitores para achar que vale a pena continuar a publicar livros, as editoras continuarem a investir em mim e satisfazer um determinado padrão de qualidade. Tenho de gostar do que escrevo e para isso não faz muita diferença estar aqui ou noutro sítio qualquer."

Como é o seu processo criativo?
Quando estou mesmo embrenhada na escrita de um livro consigo aproveitar todos os bocadinhos entre as aulas, a minha vida familiar e tantas outras responsabilidades, normalmente é sempre um tempo esburacado entre afazeres, mas consigo sempre aproveitá-lo. É um tempo que procuro, estando em casa, levanto-me cedo, por volta das 7h30, e aproveito a manhã inteira para escrever em frente ao computador. Reescrevo muito, numa manhã de escrita posso avançar ou voltar a uma passagem que já escrevi e reformulá-la, ambas me dão muito gozo.

Tem-se muitas vezes a ideia de que um escritor é alguém solitário e com uma vida incomum. A Isabel é uma mulher, mãe, com uma vida aparentemente igual a tantas coisas. De que forma é que a escrita acontece na sua rotina?
Com as conquistas, mas também com as incapacidades e as asneiras que qualquer pessoa faz no seu quotidiano. Evidentemente que há dias em que penso que não fui tão produtiva como devia ser ou não fui tão boa mãe como podia ser, faz parte. Isso causa-me alguma frustração, mas acho que já vivi o suficiente para perceber que a vida é assim mesmo, não estamos aqui para sermos perfeitos, mas para dar o nosso melhor, sabendo que as falhas são mesmo inevitáveis. Para a minha família e para as pessoas que me rodeiam, eu tenho uma profissão normal. As minhas filhas achavam muita graça quando me viam a dar uma entrevista, agora tornou-se uma coisa banal, ou quando os colegas descobrem que a mãe delas está no Google, divertem-se com isso durante algum tempo e depois passa.

Entre contos, romances, novelas, ensaios e biografias, o que continua a ser mais desafiante?
Representam sempre propostas diferentes. É relativamente frequente pedirem-me contos para revistas ou publicações coletivas, por vezes com limites de caracteres, que é um obstáculo, mas acaba por ser um constrangimento estimulante. O conto dá-me o desafio da concisão, o romance tem o desafio de um certo fôlego, as biografias implicam a exigência de construir uma narrativa, que seja cativante para prender o leitor, com o rigor da pesquisa e da investigação.

Prefere escrever sobre a realidade ou ficcioná-la?
Gosto de ambos, sou sobretudo uma romancista e os desafios de biografias que aceitei são irrecusáveis e permitem-me conciliar as minhas duas paixões: a história e a literatura.

Estudou em França, nunca ponderou viver fora do Porto ou mesmo fora de Portugal?
Sim, nunca aconteceu, mas não quer dizer que não aconteça no futuro. Há eventos a que não vou ou convites que não aceito porque acontecem em Lisboa e eu vivo no Porto, talvez a minha exposição seja mais condicionada por isso, agora em termos de divulgação da minha obra penso que hoje não faz assim tanta diferença. Em 2015 e 2016, anos que marcam a minha segunda vida literária, era uma escolha difícil para mim, pensava sempre que nunca mais me iam convidar ou que se iam esquecer do meu nome, mas sinceramente nunca tive a ambição de ser uma pessoa conhecida. O meu objetivo é sempre ter o número suficiente de leitores para achar que vale a pena continuar a publicar livros, as editoras continuarem a investir em mim e satisfazer um determinado padrão de qualidade. Tenho de gostar do que escrevo e para isso não faz muita diferença estar aqui ou noutro sítio qualquer.

"Tenho de gostar do que escrevo e para isso não faz muita diferença estar aqui ou noutro sítio qualquer."

RUI OLIVEIRA/OBSERVADOR

Em 2019 lança a sua primeira biografia, dedicada a Agustina Bessa-Luís. Como é que acontece esta oportunidade?
O Rui Conceiro, editor da Contraponto, abordou-me em 2015, disse-me que queria apostar em biografias de algumas figuras do século XX, com a particularidade de terem todo o rigor deste género biográfico, mas que se leiam como romances. Propôs-me a Agustina e foi irrecusável.

Porquê?
Gosto muito da sua obra e já a conhecia relativamente bem porque no início dos anos 2000 na Universidade da Maia, onde dou aulas, tive a oportunidade de a entrevistar em sua casa dela, tive esse privilégio de a conhecer. Senti logo uma afinidade com o biografado, sem isso era difícil aceitar um desafio destes. Posso dizer que nem sequer estava nos meus planos fazer biografias até receber este convite.

Foi tão exigente como pensou?
Foi ainda mais. No início havia a perspetiva de ter a colaboração da família, mas depois acabou por não acontecer e isso foi quase como o número de caracteres, um obstáculo que se tornou num desafio. Dou-lhe um exemplo prático. A Agustina dizia que tinha conhecido o marido, Alberto Luís, através de um anúncio no jornal e essa era uma das coisas que tinha que pesquisar. Se tivesse tido a colaboração da família, provavelmente eles tinham o recorte do anúncio guardado, mas não tive. Então passei uma semana na biblioteca nacional a ler o jornal Primeiro de Janeiro, entre 1942 e 1945, que foi o ano em que casaram, a ver uma por uma as páginas de classificados, até que descobri que durante três anos ela foi a única rapariga solteira a ter aquela ousadia.

Durante três anos mergulhou neste trabalho, o que mais a surpreendeu?
Descobri uma pessoa muito mais interventiva e insubmissa do que imaginava, alguém que desde tenra idade percebeu exatamente que queria ser escritora e a absoluta consciência do seu próprio valor e da sua genialidade

Está neste momento a fazer uma outra biografia sobre Luís de Camões.
Sempre gostei de Camões, mesmo com a forma como “Os Lusíadas” são ensinados na escola, como uma manta de retalhos e sem fazer justiça ao livro que é realmente genial, mas nunca me lembraria sequer de ousar escrever uma biografia sobre ele. Quando terminei o livro sobre a Agustina disse que nunca mais queria escrever uma biografia.

Ficou traumatizada?
Fiquei sobretudo exausta, as minhas filhas talvez tenham ficado traumatizadas, diziam que a Agustina era ‘aquela cujo nome não devia ser pronunciado’. Acho que a certa altura estava um pouco obcecada, só contava histórias dela e elas viajaram comigo em muitos dos sítios onde a Agustina esteve, aliás, uma delas já me perguntou: ‘quando é que vamos à procura do Camões?’ Está nos meus planos no próximo ano, estou a reunir apoios para isso, ir a Goa, a Moçambique e a Macau, locais onde Camões esteve.

Não queria aceitar a proposta, mas acabou por fazê-lo.
Sim, o Rui Couceiro disse-me em 2020 que iam lançar uma série de biografias de figuras históricas, indicou-me alguns nomes, mas quando me falou de Camões acho que amigavelmente o insultei. Fui para a casa, falei com o meu marido, que também é escritor, e ao contrário do que eu esperava, disse que a proposta me assentava na perfeição e depois ainda houve um terceiro sinal.

Qual?
Tenho como método ter o título antes de começar verdadeiramente a escrever um livro e na altura em que o Rui Couceiro me estava a sondar peguei numa edição de Camões que tinha lá em casa e que era do meu avô, abri e à segunda leitura encontrei logo um título.

Não me vai dizer qual é?
Não posso [risos].

Quando se tem um desafio destes nas mãos, por onde se começa?
Primeiro há uma sensação de sufoco e de desespero, comecei por algumas leituras mais gerais só para me inteirar de quão grande era o sarilho em que me tinha metido. Sobre Camões sabia as coisas mais genéricas, mas desconhecia as etapas e os episódios cronológicos mais ou menos seguros da sua vida. Li obras de referência, as entradas nos dicionários, as biografias já existentes, sendo que a mais recente é de 1978 do professor José Hermano Saraiva. Com o tempo percebi que tinha mesmo de ir às fontes. Camões, como nós o consumimos hoje, tem tantas dimensões: é um monumento, um mito, um navegador, é o poeto épico, o nacionalista, o brigão indisciplinado, é o poeta esfomeado, o homem que atravessa o mundo no século XVI, o renascentista. Para escrever a vida de um homem tenho de raspar essas camadas todas e com o pouquíssimo que sobrar tentar descobri-lo e reconstruí-lo. Há poucos documentos autênticos disponíveis e uma biografia é sempre um puzzle, neste caso as peças estão espalhadas e muitas vezes as próprias peças estão partidas, tenho de recolher as migalhas e juntá-las uma a uma.

Qual é a maior dificuldade?
O tempo. Os papéis e os documentos vão-se perdendo com o tempo, depois houve o terramoto em Lisboa e era lá que estavam a maioria dos registos, o terramoto destruiu bibliotecas e até mesmo a igreja onde ele estava sepultado. O meu trabalho é deixar claro para o leitor aquilo que é certo daquilo que é provável, daquilo que é provável do que é possível, e esse é um trabalho paciente e demoroso. É importante ir aos sítios onde ele esteve porque acredito que possa ainda encontrar alguns vestígios físicos da sua presença ou, pelo menos, poder intuir algumas das suas experiências. Para mim, fazer a biografia de alguém não é apenas seguir a cadeia cronológica dos factos, é tentar encontrar e mostrar um individuo com sentimentos, emoções, defeitos e ligações, no fundo, aquilo que nos torna humanos. Há sempre qualquer coisa nos locais que nos ajudam a perceber isso, nem que seja uma paisagem, uma perspetiva ou um cheiro.

Já há data para o lançamento?
Não, não há pressão nenhuma nesse sentido. Há uma data redonda que é o quinto centenário que será celebrado entre 12 março de 2024 e 10 de junho de 2025, idealmente seria por aí, mas também imagino que vão sair imensas coisas sobre Camões nessa altura. Ele não é propriamente uma figura com prazo de validade, Camões não prescreve.

Já pensou em desistir durante este processo?
Ainda não, mas há dias em que me sinto esgotada, assoberbada e penso: ‘onde é que me fui meter?’.

Esta será a última biografia que irá fazer?
Desde os meus 38 anos, altura em que sobrevivi ao cancro, que não dou nada por garantido. Eventualmente pode haver uma ou outra figura histórica que, se conseguir fazer Camões, tenha forças e apetência para escrever sobre elas.

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