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Não se vê ninguém. Entramos pelas traseiras. Meio à pressa, faz-nos uma visita pelo andar de cima, biblioteca, sala de jantar, salas comuns e capela, onde o Santíssimo, com autorização do bispado, está em permanência. A pequena vela acesa já o indicara, mas ele faz questão de o dizer. Depois, conduz-nos ao andar de baixo, onde a esposa e o filho mais velho nos esperam, já sentados na sala do arquivo.
“As pedras entram cá dentro.” António Vasco de Melo da Silva César de Meneses, conde de S. Lourenço, fala com a sabedoria dos seus 90 anos. As pedras são a casa que o viu nascer, o palácio na Quinta Cesária, em Alcântara, outrora à beira Tejo, em Lisboa. São pedras antigas, ali colocadas no século XVIII pelos seus antepassados ilustres. Descende de Vasco Fernandes César, cavaleiro fidalgo da casa de D. João III, guarda mor da carga e descarga da Casa da Índia e de todas as suas armadas, brasonado desde 1539 e instituidor do morgadio dos Césares. É por isso que o visitamos. Ele e a família são a prova viva da importância maior e longevidade rara de alguns “vínculos” criados em Portugal no final da Idade Média, quando a abertura a novos pensamentos começa a ser uma realidade.
Entenda-se por “vínculo” uma entidade legal administrada normalmente pelo descendente varão do seu instituidor ou fundador com vista à afirmação económica, à legitimação social e à ascensão política da família através da manutenção e do aumento, se possível, de um património fundiário, indivisível e inalienável. Responsáveis pelo poder local, numa primeira fase, e nacional, numa última etapa.
Resumindo, se olharmos para estes vínculos com os olhos da atualidade, podemos dizer que são uma espécie de fundação, e os responsáveis pelo aparecimento das casas das grandes famílias que entre o século XIV e o século XVIII foram os primeiros “donos disto tudo”.
Um estudo sobre “um modelo central da reprodução das elites”
Sabe-se hoje que em Portugal foram constituídos cerca de 7000 vínculos. A documentação que lhes diz respeito, dividida entre a Torre do Tombo e os arquivos particulares, está agora na mão de uma equipa de investigação chefiada por Maria de Lurdes Rosa, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Bolseira do European Research Council desde 2019, data em que recebeu o maior apoio de sempre dado à área da História, 1,6 milhões de euros durante cinco anos, Lurdes Rosa avança a passos largos no estudo daquilo a que chama “um modelo central da reprodução das elites”.
No Palácio Sabugosa, António Vasco, antigo engenheiro de máquinas, mostra o grande quadro de 1720, um plano militar gigante da Índia de então, trazido para Portugal por Vasco Fernandes César de Meneses, alferes mor, alcaide mor de Alenquer, vice rei da Índia e do Brasil, 1.º conde de Sabugosa por carta de 19 de setembro de 1729. O quadro encima uma das paredes da biblioteca e impõe o respeito a uma casa que em 1903 ainda era comandada pelo mordomo mor do rei D. Carlos I e da rainha D. Amélia de Orleães. Era ele António Maria Vasco de Melo Silva César e Meneses, ainda ilustre escritor e um dos fundadores do célebre grupo dos Vencidos da Vida, faz também parte da galeria de retratos da família, sendo o seu pintado pelo grande Carlos Reis. Josefa de Óbidos e Pellegrini são outros artistas com obras no palácio, um edifício classificado como imóvel de interesse público. Não é para menos: foi na casa dos Sabugosas que Eça de Queirós, amigo do marquês, também ele membro dos literatos Vencidos da Vida, se inspirou, dizem, para descrever o Ramalhete, o célebre palácio de Os Maias.
“Quando eu era novo, pouco se falava do passado. Não estava na moda. A instauração da República, em 1910, fez com que a nossa história fosse guardada”, diz-nos António Vasco. Antes, a prisão do marquês de Angeja — familiar que levou a biblioteca para a Quinta Cesária — pelo Marquês de Pombal, em estadias no Bugio e na Torre de Belém, já tinha assustado a família. “Aquilo que sei foi-me quase tudo contado pela minha irmã mais velha, Isabel, que se dava muito bem com a minha bisavó”, explica. “O meu pai era muito calado, não dizia nada.” Maria do Carmo ajusta: “As balas da República cá para casa fizeram este silêncio todo. Tínhamos medo das guerras, das invasões”. De facto, era até proibido ir à sala dos arquivos, onde a documentação atesta a genealogia da família. “Não nos deixavam vir aqui”, avança também António Maria, o filho mais velho de António Vasco e Maria do Carmo. É um dos seis descendentes a viver lá em casa, os respetivos cônjuges, mais 14 netos. Moram em apartamentos isolados uns dos outros, água, eletricidade, gás e esgotos separados. “Tudo como deve ser.”
A mesma organização rigorosa para esse “centro de documentação”, que em 2007, mereceu a atribuição do 1.º Prémio Vasco Vilalva da Fundação Calouste Gulbenkian. “Tentamos manter e melhorar o que temos”, diz António Vasco, ainda desconfiado pelo interesse jornalístico demonstrado. Agora, Maria de Lurdes Rosa acaba de entrar novamente no arquivo. A professora e a sua equipa vão passar os livros e documentos a pente fino. Estes e aqueles que já se encontram na Torre do Tombo, vendidos pela família.
Só assim é possível estudar e preservar a memória do que foi a sociedade portuguesa de outros tempos e como se organizou. Estas famílias protagonizaram a liderança do reino durante séculos e a sua influência e poderio chega, em alguns casos, como escreve Judite Nunes Esteves na sua tese de doutoramento, ao século XX e à entrada de Portugal na União Europeia, a CEE de então.
“É uma geração de homens empreendedores, que negociaram com a expansão e apoiaram D. Manuel, moravam todos ao pé do Palácio da Ribeira. Entre eles está Vasco César de Meneses, o ascendente destes condes de Sabugosa que entretanto se juntaram aos Melo”. “Ele era amigo do rei, homem de sua confiança, gente que geria muito dinheiro. Eram todos investidores no sentido atual do termo, compravam, vendiam, tinham barcos, iam à pimenta da Índia”, conta Maria de Lurdes Rosa. “Aqui, conforme casamentos e fortunas, as coisas foram andando”, adianta o também conde de S. Lourenço, António Vasco. Antes da chegada à propriedade agrícola que era a quinta desde o século XIII, a família viveu num outro palácio situado na Calçada de S. Francisco, em Lisboa, perto, muito perto do Paço da Ribeira, pois claro, tal era a ligação à família real. Foi o Terramoto de 1755 que fez com que os Césares Meneses mudassem de casa, pois a primeira caiu por terra. Mas nem por isso deixaram de estar ao serviço da monarquia.
Os vínculos, essas fundações de hoje, viviam dos “desejos e vontades” dos seus instituidores que, ao criá-los deixavam por escrito como queriam que os seus bens fossem administrados depois da sua morte e em nome da sua alma. Os descendentes, normalmente o filho varão, não tinham margem de manobra para vender ou desfazer-se fosse do que fosse — ao contrário, deviam conseguir aumentar e melhorar a fortuna que tinham herdado quer em terras, quer em dinheiro, para desse modo aumentarem também o seu prestígio social. De resto, esse património, maioritariamente fundiário, era indivisível e inalienável. E a sua administração obedecia a um largo conjunto de regras impostas pelo fundador para serem cumpridas escrupulosamente.
“Essa entidade, que compreendia os vivos, os mortos, e os futuros membros da família, detinha um enorme poder. Ancorada na figura culturalmente construída, e investida de profundo significado, do ‘fundador’ – cuja vontade era aceite como lei, no sentido pleno da palavra – o corpo vincular regulava as relações humanas dentro e fora da família; estabelecia relações específicas com a propriedade e com a economia; negociava a tradição e controlava a mudança. Numa larga medida, o corpo vincular era o agente social, governando e regulando as ações dos seus membros humanos, as suas circunstâncias e estratégias”, esclarece melhor a investigadora. Há quem vá mais longe. O domínio da propriedade de cada um “ficou, digamos assim, chumbado na campa de um túmulo: o túmulo retêm-no até ao fim das gerações”, escreve Alexandre Herculano em 1856. No texto que dedica aos “Vínculos”, o autor de O Bobo critica ainda com mais fulgor a figura do instituidor que classifica como “tirano”: “O fundador de um vínculo não fez mais que empilhar os corpos dos indivíduos tirados de diversas gerações para sobre eles assentar o trono da sua vaidade”. E muitas são as peripécias apresentadas por vários outros escritores do século XIX relativas à fuga às regras de diversos morgados, como também se chama ao administrador do vínculo. Veja-se Júlio Dinis ou Camilo Castelo Branco, que conta como o morgado se apaixona pela cristã nova e é expulso, por exemplo.
As regras, as obrigações e as proibições
As histórias que estes autores contam nos seus romances não são muito diferentes das reais descobertas agora pela equipa de Lurdes Rosa. Desde a obrigação do morgado ser doutor, expressa em testamento por Álvaro Fernandes de Pavia, em 1494, por exemplo, à vontade de ser “autopsiado” por suspeita de assassinato pelo cunhado, o ilustre Bastião de Góis, e pela própria rainha D. Maria, dada a conhecer por Diogo de Faria, da Casa de Palmela, em 1541. Histórias e historietas que, analisadas, nos dão a conhecer o quotidiano dos indivíduos que viveram em Portugal há séculos e que nunca foi estudado.
Cada herdeiro do seu morgadio pagará, no dia de Páscoa, uma refeição com carne, pão e vinho a todos os pobres do hospital, seja qual for o seu número, institui Gomes Borges, em 1470. No Brasil, em Paraíba, Duarte Gomes da Silveira, em 1639, decide por sua vontade que a sua descendência ficava sujeita a um conjunto de regras de conduta social, cujo incumprimento acarretaria a perda da administração do vínculo. Uma delas era que todos os descendentes deveriam ostentar “em sinetes, reposteiros e assentos de cadeiras” o brasão de armas dos Gomes e Bezerras, apelidos da mãe de Duarte Gomes, acrescentando neles um verso que diga “Verdade e Felicidade”, como lembrança para que “todos os seus descendentes […] conservem estas duas virtudes”. De entre outras regras, relacionadas ao bem viver, à abstenção de cometer atos de ingratidão ou crimes de lesa-majestade, destacam-se ainda aquelas ligadas ao casamento e destinadas a preservar a chamada “limpeza de sangue”, que existem também noutros vínculos do período. Figuram ainda outras regras mais excecionais, como a de manter um “Livro de Histórias” da família, e a de proibir os administradores de “criar seus filhos com vinho, nem coisa que o pareça tomando exemplo do que diz o Apóstolo S. Paulo, dizendo que o demasiado beber é a origem dos vícios”.
Há mais. Em 1537, D. Manuel, rei de Ternate (arquipélago das Molucas) doou a Jordão de Freitas as ilhas de Amboíno e Ceram, no mesmo arquipélago, para que ele e os seus descendentes as possuíssem como um morgadio. As ilhas seriam, assim, transmitidas preferencialmente, ao filho varão mais velho e legítimo e o seu sucessor estava obrigado a chamar-se de Freitas. O novo vínculo adquiriu validade depois de D. João III o confirmar seis anos mais tarde. Já convertido ao Cristianismo e com o mesmo nome do anterior rei de Portugal, o rei de Ternate recorreu a uma instituição portuguesa para recompensar os serviços do seu padrinho de batismo, fundando aquele que deve ser o mais distante e exótico dos vínculos até agora identificados.
Outro exemplo curioso é a vinculação de escravos. Nos espaços da expansão atlântica, mas, principalmente, em Cabo Verde, S. Tomé e no Brasil, não é incomum encontrar casos em que os instituidores vinculam escravos, africanos ou ameríndios. Casos conhecidos como o do Morgado dos Mosquitos, em Cabo Verde, ou da Capela do Desterro, instituída por André Vidal de Negreiros em Itamaracá, são ilustrativos de casos em que os instituidores vinculam o conjunto das unidades produtivas, fazendas e/ou engenhos, juntamente com os seus escravos. O de Luís de Almeida de Vasconcelos, na Ilha do Ano Bom, chegou a ter mais de 250 escravos vinculados. Outros, como o de Gregório Lourenço, também conhecido como o da Capela do Castelo, em Cabo Verde, vinculam um número específico de escravos no testamento, neste caso 40, o qual os administradores tinham de manter sempre estanque através das gerações.
“Até à geração final dos nossos filhos estará assim articulado”
Os vínculos, morgadios ou capelas foram proliferando até ao século XVII, quando começaram a definhar por falta de capacidade económica. Mesmo assim, mantiveram-se até ao século XIX sob forte ameaça de extinção, vis a vis de correntes liberalistas que assaltaram o governo do Portugal de então. Sebastião José de Carvalho e Melo, acérrimo defensor do mercantilismo, foi o primeiro a querer acabar com os vínculos. O Marquês de Pombal considerava excessiva a multiplicação dos morgadios, como explica Judite Nunes Esteves, e, em 1770, faz publicar uma legislação contra a instituição do morgadio, impondo-lhe limites, nomeadamente a possibilidade de serem constituídos apenas por indivíduos de condição nobre, uma vez que até aí “o estatuto social de instituidores nunca tinha sido questionado”. Partia-se do pressuposto de que os vínculos favoreciam o aparecimento de grupos sociais privilegiados.
A partir de então, “crescem as críticas a este modelo de propriedade e se sucedem outras tentativas de legislar no sentido de condicionar ou mesmo acabar com a sua existência. Contudo, apesar da atmosfera carregada de ideais de liberdade e de igualdade veiculados pela revolução liberal do início do século XIX e pelo concomitante aumento da censura a este tipo de propriedade, o processo de extinção dos morgadios será longo e difícil. Os debates provocados pela questão mobilizaram essencialmente grupos colocados no topo da pirâmide social portuguesa. E por ser este o posicionamento social da maioria dos detentores de propriedade vinculada, a procura de defesa dos seus interesses irá refletir-se na forma ativa como se desenvolveram as discussões e as formulações dos artigos de lei nas câmaras parlamentares, quando se tratou de se legislar sobre vínculos fundiários”, escreve ainda Judite Nunes Esteves na tese Do morgadio à divisão igualitária dos bens: extinção do morgadio e estratégias de perpetuação do poder familiar (entre o fim do século XIX e o século XX).
Em 1832, a legislação de Mouzinho da Silveira, diz-nos a doutoranda, “restringe drasticamente o número de vínculos”, apesar de ter sido “uma legislação tímida que não teve as consequências desejadas pelos oposicionistas à instituição”. “No Parlamento foram surgindo, até à década de sessenta do século XIX, vários projetos, que propunham a extinção completa ou parcial da propriedade vinculada, mas que não foram, pelas mais diversas razões, concretizados.”
Só em 1863 é que uma lei extingue definitivamente os vínculos. Nasce nessa altura, então, um conjunto de “resistências” por parte dos seus descendentes, que querem a todo o custo continuar a manter financeira e simbolicamente o estatuto de morgados. Chegam mesmo a criar-se movimentos sociais, tais como os Integralistas Lusitanos. A sua ação que reclama a continuação da propriedade estende-se pelo século XX. O que aconteceu foi precisamente o desenvolvimento de estratégias capazes de preservar ou mesmo melhorar o seu lugar na cadeia social. São variadíssimos os descendentes que o fazem, convertendo o morgadio na casa senhorial. Fala-se então dessa “casa de família, do nome, da aliança matrimonial, de títulos universitários” como “mais habilmente geridas por muitos dos descendentes dos morgados e às quais o antigo poder económico, social e político não parece ser de todo estranho”, conclui Judite Nunes Esteves.
“O património dos vínculos está espalhado por todo o nosso território. Não deve haver nenhuma terra onde não haja uma capela, ou uma antiga casa senhorial”, diz Lurdes Rosa. Daí o “profundo interesse cultural deste projeto no sentido em que ele mostra como esta ideologia vincular permanece na sociedade portuguesa”, avança a professora da FCSH. “Através do estudo destas instituições há uma maneira de conhecermos o quotidiano das pessoas, os seus testamentos e estas aspirações”, remata. É que o que está a ser estudado não é uma documentação do rei, também não é uma documentação de administração de propriedades, é uma documentação de histórias pessoais e histórias de família.
“Queremos manter e melhorar o que temos”, repete António Vasco de Melo da Silva César de Meneses. Ele e as três irmãs — só uma sobrevive — são os herdeiros de tudo isso. “Até à geração final dos nossos filhos estará assim articulado. Quando o último filho desaparecer, volta a estar a cargo de quem estiver à frente da casa.” À sua guarda estão várias relíquias, livros anteriores à tipografia, livros antigos já impressos, o primeiro exemplar de Os Lusíadas, uma Bíblia raríssima, um folheto inédito de O Auto da Festa, de Gil Vicente, cujo fac-simile o seu bisavô mandou publicar em 1906, O Tratado dos Morgadios e tantas outras. “A História está aqui dentro” e será possível visitá-la em breve. A família está a concorrer a um fundo europeu para restaurar uma parte da casa, onde virá a receber virtualmente pessoas que, com todo o decoro, respeitarão quem lá vive. “Isto não é uma festa. É um peso e uma responsabilidade.”