Sentado em sua casa em Salvador da Bahia, rodeado de estantes recheadas de livros, Itamar Vieira Júnior admite que “ainda não deu tempo para pensar tudo isso”. No espaço de apenas um mês, tornou-se um dos mais conceituados e premiados escritores brasileiros contemporâneos, ao receber os prémios Jabuti e Oceanos pelo seu romance de estreia, Torto Arado. A obra fala sobre as irmãs Bibiana e Belonísia e a sua família numa fazenda da Bahia. A sua história é a história de uma realidade esquecida e congelada no tempo, a dos trabalhadores negros do sertão brasileiro, uma comunidade que nunca foi verdadeiramente integrada na sociedade e que vive ainda num regime de servidão que se assemelha em quase tudo ao que foi a escravatura, abolida em alguns casos apenas no papel.
Antes de fazer a sua grande viagem até ao Brasil, Torto Arado esteve em Portugal. Foi aqui que foi publicado em fevereiro de 2019, depois de ter vencido o Prémio Leya no ano anterior. A divulgação que foi feita em Portugal permitiu-lhe uma boa receção no Brasil, onde foi lançado pela editora Todavia, de São Paulo. Aos poucos, foi conquistando leitores e construindo uma base sólida de fãs; chamou a atenção da crítica, que elogiou a habilidade narrativa de Vieira Júnior e a sensibilidade com que tratou um tema duro, alertando ao mesmo tempo para problemas que clamam uma intervenção urgente, mas eternamente adiada. Tudo isto levou ao Jabuti de Literatura, o mais importante prémio literário do Brasil, e ao Oceanos, alguns dias depois.
“Que coisa, não é?” Itamar Vieira Júnior sorri. As mudanças foram muitas em pouco tempo, mas talvez nenhuma tenha tido o impacto do Prémio Leya. “Para mim, a grande surpresa foi o Prémio Leya. Foi tudo muito surpreendente”, admite o escritor ao Observador. “Da mesma maneira, me permitiu também pensar a literatura de uma forma mais profissional. Fui publicado por uma grande editora em Portugal e isso despertou interesse sobre o livro no Brasil. Os direitos para a publicação foram comprados por uma grande editora [a Todavia], que, embora seja uma editora nova, tem um catálogo muito bom. Eles promoveram o livro, assim como a Leya, que durante todo esse tempo ajudou a divulgá-lo.”
Nada disto foi planeado, foi acontecendo. “O livro foi ganhando leitores aos pouquinhos, aqui no Brasil, em Portugal, e, de repente, começaram a falar muito dele, no começo do ano passado. Recebeu muitas críticas aqui no Brasil e em Portugal também saiu muita coisa. Tenho conta nas redes sociais para divulgação do trabalho literário, e estava sempre a receber posts, comentários de pessoas que o tinham lido. Foi crescendo, crescendo. Foi assim, conquistando tudo aos poucos.”
Essa conquista fê-lo sentir-se confiante quando soube que estava entre os candidatos ao Prémio Jabuti de Literatura de 2020, uma lista que incluía escritores como Chico Buarque (apontado como o vencedor mais provável com Essa Gente), Maria Valéria Rezende, Paulo Scott ou Adriana Lisboa. Autores que Vieira Júnior, o mais novo dos candidatos, admira e acompanha há muito. “Só estar entre eles era um prémio”, diz ao Observador. “E o livro saiu vencedor. Não digo que foi surpreendente, acho que tínhamos hipóteses iguais de levar o Jabuti, porque eram todos bons livros, e porque vinha acompanhando a leitura e tudo o que estavam falando sobre Torto Arado. Mas fiquei muito feliz e acho que ainda não caiu a ficha”, admite, entre risos.
Itamar Vieira Júnior foi o primeiro escritor da Bahia a receber o Jabuti em 25 anos. Jorge Amado foi o último, com A Descoberta da América pelos Turcos, em 1995. Foi o segundo Jabuti de Amado, que tinha recebido o mesmo prémio em 1959, ano da sua criação, com Gabriela Cravo e Canela. “O livro trouxe o Jabuti para a Bahia”, declara Vieira Júnior, que acredita que o facto de ter nascido e vivido sempre nesse estado e não em São Paulo ou no Rio de Janeiro dificultou a sua entrada no mundo literário. É nestas duas regiões que estão as principais editoras brasileiras, que fazem mexer o mercado e que fazem os livros circularem. “Para mim, era inatingível publicar por elas”, afirma o autor. “Primeiro, porque acho que nem avaliam os originais que chegam de pessoas desconhecidas ou que moram fora daquele eixo.”
Menos de um mês depois de ter recebido o Prémio Jabuti de Literatura, Vieira Júnior ficou em primeiro lugar no Prémio Oceanos, o que foi “mais surpreendente ainda”. “É um prémio com uma vocação internacional. Abrange todos os países de língua portuguesa e tem um júri com jurados de vários países. Estava também acompanhado de muitos bons autores, que admiro, como o José Luís Peixoto, a Djaimilia, a Maria Valéria Rezende, que venceu também e que tinha sido concorrente ao Jabuti de romance.” O escritor admitia a hipótese de ficar entre os três primeiros, mas nunca pensou que lhe fosse atribuído o primeiro lugar. “No dia em que recebi o anúncio, fiquei muito surpreso, não esperava”, recorda. “Ainda estou assimilando tudo isso.”
Os dois prémios tiveram uma natural repercussão nas vendas de Torto Arado. Após o anúncio do Jabuti, a 26 de novembro, o romance passou a figurar nas listas dos livros mais vendidos no Brasil, juntamente com clássicos como 1984 e A revolução dos bichos (título brasileiro de A Quinta dos Animais), de George Orwell, e obras mais comerciais, como as de Julia Quinn. Vieira Júnior é o único autor entre os mais vendidos que escreve em português. Torto Arado terá em breve uma nona reimpressão, totalizando assim os 56 mil exemplares impressos desde que foi lançado pela Todavia. As vendas em formato digital também têm sido boas (três mil exemplares). Atualmente, não existe nenhum outro autor de língua portuguesa que venda tanto no Brasil. “Tem sido surpreendente mesmo. Diante de tanta notícia ruim para todos nós, pelo menos eu tive o que celebrar”, confessa o autor. “Sou um cara de muita sorte!”
Uma história que começou em Portugal
Tudo começou com o Leya. “Escrevo desde muito cedo, mas só comecei a publicar aos 32 anos. Tinha publicado dois livros de contos. O último chegou a ser finalista do Prémio Jabuti, mas vivo fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, que é onde estão as grandes editoras que fazem os livros circularem”, lembra Vieira Júnior. “Depois que terminei de escrever, uma amiga fez a revisão comigo, discutimos, ela ficou muito empolgada com o livro. Por coincidência, o primeiro prémio [que surgiu] foi o Leya. Já conhecia o prémio, sabia que era um prémio de qualidade, com grande repercussão na divulgação do livro. Resolvi submeter.” Foi assim — simples — e sem grandes expectativas. “Confesso que não tinha esperanças”, admite. “Se ficasse entre os finalistas — porque o Leya divulga uma lista de livros finalistas — já seria bom. Houve livros escritos por autores brasileiros que foram finalistas do Leya e que foram publicados por grandes editoras aqui no Brasil.”
Itamar Vieira Júnior enviou Torto Arado quando faltavam poucos dias para o fim do prazo. “Quando fui aos correios, faltavam cinco dias para acabar a inscrição. Ou seja, o livro chegou a Portugal depois do prazo, mas o que valia era a data de postagem. Por pouco não mandava.” Mas mandou, e o romance impressionou o júri, que elogiou a “solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil”, assim como a “qualidade literária de uma escrita em que se reconhece plenamente o escritor”. Para o autor, foi uma surpresa — a maior de todas –, sobretudo porque tinha passado “um tempo sem lembrar”, por não “confiar muito” que fossem ler o seu manuscrito. “Achava que deveria haver muita coisa de qualidade. Uma semana antes, recebi um alerta dizendo que divulgariam o prémio na semana seguinte. Lembro que pensei: “Se ficar entre os finalistas, vou estar muito feliz, porque depois posso tentar uma editora para publicar esse livro”. E daí veio a surpresa no dia da divulgação.”
O escritor admite que nada foi planeado ou premeditado, e que só se candidatou ao Leya porque queria enviar o romance para um concurso literário e o promovido pelo grupo editorial português foi o primeiro que apareceu. “Já estava resolvido que submeteria o manuscrito para prémios literários, porque era uma forma de vê-lo ser publicado se tivesse mérito”, explica. “Foi por isso que mandei para o Prémio Leya. Não tinha editora, não tinha uma casa para publicar o livro aqui no Brasil… Foi o primeiro prémio que apareceu. Acho que foi porque tinha que ser. É uma daquelas coisas que uma pessoa não consegue explicar”, diz, entre risos.
Sem o Leya, Itamar Vieira Júnior admite que teria sido muito difícil publicar Torto Arado no Brasil. “Talvez conseguisse publicar por editoras pequenas, que não fazem o livro circular da forma como o autor gostaria. O Prémio Leya foi um divisor de águas. Acho que nada disso — o Jabuti, o Oceanos — teria acontecido se o livro não ganhasse esse impulso que o Leya deu”, defende. “Foi lido pela crítica, foi bastante divulgado e teve uma boa circulação em Portugal. Isso despertou o interesse da editora Todavia, que o publicou no Brasil. Aqui, o livro seguiu essa trajetória de muitos êxitos. Foi lido e resenhado pelos principais jornais e revistas literárias do Brasil e conseguiu agradar aos leitores. De vez em quando observo o Twitter. Acho que é o melhor fórum para leitores. Eles comentam com muita paixão. Se pesquisar Torto Arado, vai ver uma legião de pessoas que leem, indicam, falam. Acho que tudo isso contribuiu para que o livro tivesse esse êxito.”
Pôr o romance brasileiro a olhar outra vez para dentro
Uma das razões pelas quais Itamar Vieira Júnior sempre julgou que teria dificuldades em publicar o seu livro no Brasil tem a ver com os temas que abordou em Torto Arado. E não apenas o racismo, mas sobretudo a precariedade de populações que vivem numa “região tão remota do país que vive anacronicamente, com um pé no passado, num passado ainda colonial”. “Tudo isso me fez pensar que talvez o interesse do público, que já é mais urbano, que vive nas cidades e que se interessa por temas mais urbanos, fosse menor”, admite o escritor, que acabou por descobrir o contrário: “Acho que o livro despertou as memórias mais remotas dos leitores brasileiros e vejo que também dos leitores portugueses mais velhos”, diz.
Tal como o Brasil, “Portugal foi um país agrário durante muito tempo, principalmente durante o período salazarista, então as pessoas tinham uma profunda ligação com o campo. Em conversa com leitores portugueses mais velhos, eles me diziam assim, ‘olha, esse regime de servidão existia aqui no Alentejo, isso era muito comum na época do salazarismo’. Houve essa conexão com os leitores portugueses, com essa memória de uma ligação com a terra muito precária, e no Brasil da mesma forma”, frisa Vieira Júnior. “O Brasil é um país mais urbano, mas ainda há muita gente a viver no campo. Também é um país onde as pessoas não saíram há muito tempo para a cidade, [isso aconteceu] há duas, três, quatro décadas. As memórias do campo estão com os avós, com os pais, e todo o mundo vive ouvindo essas histórias nas suas casas, com as suas famílias.”
O próprio autor cresceu com essas memórias. Itamar Vieira Júnior nasceu em 1979 em Salvador, na Bahia, mas o pai foi criado no campo, onde nasceram os avós. “Vivia com essas memórias do campo na minha vida na cidade. Os leitores [que cresceram num contexto semelhante] foram-se conectando com isso também, com essas memórias afetivas, conectando com isso também, com essas memórias afetivas. Esse apelo mais íntimo do livro fez com que ele fosse esse êxito também, que conquistasse o público aos poucos. Acho que, na literatura, ainda acontece muito isso — a melhor divulgação é feita de leitor para leitor. Leitor recomendando a leitura para outro leitor.”
Não foram, no entanto, as memórias da infância que motivaram Vieira Júnior a escrever o seu romance de estreia, mas a experiência de 12 anos junto de comunidades rurais. Nascido e crescido na cidade, o único contacto que o escritor, formado em Geografia, tinha tido com esse universo tinha sido através das histórias de família e dos autores que, antes dele, tinham explorado o interior do Brasil. Apesar de os romances contemporâneos passados no meio rural serem raros, existe uma antiga tradição literária de histórias sobre o campo. “Temos grandes romances que foram escritos na primeira metade do século XX e quase todos versam sobre o campo, sobretudo sobre a realidade da região onde moro, o nordeste brasileiro. Muitos autores, muitos deles premiados, como Jorge Amado ou Rachel de Queiroz, escreveram romances voltados para o campo. Esse foi inclusive o motivador inicial para escrever esse romance.”
A inspiração pode ter tido origem aí, mas foi o trabalho que lhe permitiu recriar a riqueza desse universo. “Saí da cidade e fui para o campo. Considero que foi um privilégio. Descobri uma vida, uma realidade, tanta coisa ainda para ser contada. As pessoas viviam como que longe daquilo, distantes. Acho que esse foi um dos motivos que me levou a escrever Torto Arado, ver que ainda há muita vida no campo, que há muita história, muita coisa. Que há muita coisa a ser feita para permitir que essas pessoas se integrem de forma definitiva na sociedade, que tenham direito à saúde e à educação”, afirma. “O Brasil é um país muito anacrónico. Se, por um lado, a gente tem cidades desenvolvidas, com muitos serviços, por outro, no campo, na floresta e nas regiões mais remotas do país, ainda há muita precariedade, vulnerabilidade, violência, como a violência que é retratada no livro, uma disputada por terra, sobretudo pelos poderosos em detrimento dos mais vulneráveis, do trabalhador rural, que muitas vezes está em risco. Tudo isto estava aqui, na minha cabeça. Disse: ‘Não, essa história merece ser contada, preciso dividi-la com outras pessoas’. Foi isso que me levou a escrever Torto Arado.”
A história de Torto Arado atravessa várias épocas e gerações, mas a realidade que retrata não é do século passado. “Ainda existe e é muito presente”, garantiu Itamar Vieira Júnior. “Recordo que cheguei no campo há 15 anos e fiquei muito impressionado quando vi pessoas vivendo em fazendas alheias, sem muitos direitos, como direito a uma casa digna, a plantar, e dando o seu trabalho pelo direito de morar naquele lugar, sem receber nada em troca. Nem um salário, uma remuneração. Nada. Esse sistema de exploração, que ainda permanece nos nossos dias, era, para mim, algo que, como humanista, como uma pessoa interessada em direitos humanos, não deveria existir. Daí veio a memória e a vontade de contar essa história, fazendo sempre essa ponte com os romances do passado.”
O fascínio do romance: acordar e adormecer com as personagens
Torto Arado é o primeiro romance de Itamar Vieira Júnior. Antes da sua publicação, o autor tinha escrito apenas contos. O primeiro livro de ficção curta, Dias (2012), venceu o Concurso XI Projeto de Arte e Cultura; o segundo, A Oração do Carrasco (2017), venceu o Prémio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores, ficou em segundo lugar no Bunkyo de Literatura e foi finalista do Jabuti na categoria de contos. Os contos continuam a sair da caneta de Vieira Júnior, que tem colaborado regularmente com revistas e jornais brasileiros na publicação de histórias curtas, mas é ao romance, um género pelo qual diz ter “muito apreço”, que mais quer voltar. “Acho que depois de escrever um romance, ficamos um tanto viciados na trama”, admite ao Observador. Mas o regresso tem de acontecer a sem tempo, sem pressões ou prazos.
O processo de escrita de Itamar Vieira Júnior é lento. No caso de Torto Arado, demorou vários anos até se decidir a escrever a história de Bibiana e Belonísia, que lhe surgiu quando tinha 16 anos e que só publicou aos 39. “Passo um grande tempo maturando…”, admite. “Costumo dizer que é como se estivesse em campo fazendo um trabalho etnográfico. O antropólogo vai até a uma comunidade e observa as pessoas, vai anotando. Como escritor, sinto a mesma necessidade — preciso entender as personagens. Vou anotando suas características, passagens de suas vidas. Só depois de muita convivência é que sinto segurança para me sentar e escrever sobre aquela história.”
A convivência é tanta, que muitas vezes acorda pensando nas personagens dos projetos em que tem vindo a trabalhar. “As personagens moram aqui, na cabeça da gente, e estão o tempo todo aqui, connosco. E, mesmo assim, é preciso conhecê-las, não basta habitarem a minha cabeça. Preciso conhecê-las para poder falar sobre elas. E conhecer é pensar muitas vezes sobre elas, pensar muitas vezes sobre as suas origens, as suas motivações de vida, por isso leva um tempo. Também se alimentam de leitura e pesquisa. Muita pesquisa sobre o que se pretende falar, sobre o que se pretende escrever.” A pesquisa pode ser bibliográfica ou de outro género. “Costumo me alimentar de muitas formas de informação. Assisto a documentários e filmes que se passam naquela época, sobre aquele tema ou sobre temas que sejam homólogos, que sejam similares, para me ajudar a criar e oferecer esse mundo ao leitor”, explica.
“Primeiro crio esse mundo aqui, em mim, e depois ofereço esse mundo ao leitor, para que ele se sinta seguro, guiado, e não só seguro e guiado, mas também desestabilizado com as histórias, porque acho que a gente precisa disso, de desestabilizar o leitor, de tirá-lo dessa zona de conforto e fazê-lo pensar além da sua própria vida.” Itamar Vieira Júnior tem várias histórias que caminham consigo “já há bastante tempo” e para as quais tem vindo a recolher material, “fazendo pesquisas, trazendo bibliografia”. “Porque tenho o projeto de escrever, tenho essa pretensão.” Só não quer que lhe deem um prazo, “não é preciso haver correria. “O que importa é que nasçam bons livros e que as pessoas possam apreciá-los na leitura sem nenhuma pressa.”