Iuri viu dois drones a sobrevoar o bairro este domingo à noite, quando estava a descontrair no terraço. Vive no segundo andar do prédio que fica mesmo em frente ao centro comercial Retroville.
Não se limitou a comentar a desconfiança com os vizinhos deste condomínio de classe média com casas de construção recente, localizado a 9 km da praça Maidan. Como é tempo de guerra, alertou as autoridades.
Seguiu-se uma sequência de sons até ao estrondo final: passado pouco tempo, pelas 9h00 da noite, soaram as sirenes que alertam para um ataque aéreo; a seguir, Iuri viu as luzes vermelhas e ouviu as rajadas que sinalizam as defesas anti-aéreas ucranianas a serem disparadas na diagonal, a partir de edifícios próximos; depois, a app que os ucranianos têm nos seus smartphones para os alertar de ataques aéreos também começou a apitar, como se fosse uma sirene individual. E no preciso momento em que Iuri estava a descer para o abrigo improvisado na cave, a terra tremeu.
Sem que ele soubesse na altura, um míssil balístico de curto alcance tinha acabado de atingir em cheio o Retroville, o maior centro comercial de Kiev, com 250 lojas (as maiores são um supermercado Nuovo, uma Leroy Merlin e uma H&M), 8 cinemas, ginásio e mais de 3 mil lugares de estacionamento. A violência da explosão troou em toda a cidade.
No bairro mesmo em frente, depois do abalo, os moradores ouviram os vidros a partir, os alarmes de proteção a disparar, as crianças a chorar e os cães inquietos a ladrar.
A reformada que dorme com roupa da rua e tem sempre a mala pronta para sair
Dalina Shipenko, uma contabilista reformada de 64 anos, casada com um antigo guarda-redes campeão do mundo de andebol da ex-União Soviética, e também ela uma veterana da mesma modalidade, sobe diariamente até ao seu 12º andar pelas escadas, para se manter em forma. Por isso, apesar de o elevador não estar a funcionar, não lhe faz tanta diferença subir mais uma vez para abrir as portas de sua casa ao Observador.
Tem uma vista direta das janelas da sala e do escritório para a parte do shopping pulverizada pelo míssil, a 200 metros em linha reta. Mas fechou os estores, seguindo a recomendação das autoridades para não se ver do lado de fora que tinha a luz acesa.
Estava sentada ao computador a ver notícias e não viu nada do míssil que caiu mesmo em frente. Quando sentiu o estrondo, com a agilidade de quem continua a fazer ginástica todos os dias, atirou-se para fora do escritório e refugiou-se atrás da parede. Foi mesmo a tempo de evitar ser atingida pelos mil estilhaços em que se desfizeram os vidros altos das suas janelas. Depois pegou na mala e saiu para junto do elevador, para procurar a proteção de mais uma parede, caso houvesse uma nova explosão.
Pode parecer que Dalina ignorou os vários avisos, mas não é de todo indiferente à rotina da guerra. Desde 24 de fevereiro, dorme sempre num colchão no chão, na estreita divisão onde tem a máquina de lavar, para estar protegida por duas paredes. Deita-se sempre com roupa de andar na rua, para uma emergência. E tem sempre a mala com os documentos e o dinheiro num banco ao lado da porta, para o caso de ter de sair à pressa.
Sem saber ainda se vai ter alguma ajuda para suportar os gastos com a substituição das janelas, Dalina vai dormir nas próximas noites no apartamento do vizinho, que fica virado para as traseiras, e portanto ainda conservou as janelas intactas. Não são propriamente amigos, mas vivem num país em guerra e sentem que devem olhar uns pelos outros.
O capelão militar ortodoxo, a professora e o casal de avós que não subiu a casa do neto
O mesmo sentiu o capelão militar Raimondas Tumėnas, que chegou ao centro comercial antes das 8 da manhã e ainda viu rastos de sangue no chão, como se as vítimas tivessem sido arrastadas para serem retiradas do interior do shopping. O balanço provisório divulgado pelas autoridades aponta para 8 vítimas mortais.
O capelão ainda viu as autoridades fecharem o perímetro, para evitar a presença de populares e jornalistas junto às traseiras destruídas do shopping, com um edifício de 8 andares completamente esventrado e um parque de estacionamento com pelo menos duas dezenas de viaturas amolgadas e cheio de destroços provocados pela explosão. O intuito do padre ortodoxo, que dá orientação espiritual a um batalhão militar, era confortar as vítimas ou familiares que precisassem de apoio, antes da eventual chegada dos psicólogos.
Antes, durante a noite, esse conforto aos moradores foi dado na maior parte dos casos pelos próprios vizinhos. Uma professora que se preparava para dormir desceu imediatamente com o gato para o abrigo improvisado na cave, onde ficou com os outros residentes do seu prédio até às 4h00 da manhã. Na altura nem sabiam exatamente o que provocou o estrondo, nem onde. Só a meio da madrugada é que um grupo de vizinhos decidiu sair para confirmar o que tinha acontecido e se o perigo tinha passado.
Valéry e Anna, um casal de idosos, olham esta terça-feira de manhã para o prédio mais destruído. Estão ao lado do parque infantil no interior do condomínio. O neto vive no 20º andar do edifício, mas não estava lá na altura da explosão, porque saiu de Kiev com os pais. Os avós gostavam de subir para ver os estragos no apartamento, mas como não há elevadores não se sentem com energia para tantos degraus.
A avó emociona-se e tem os olhos a lacrimejar enquanto observa a destruição. Vive a 1,5 kms e sentiu uma espécie de onda a abalar os edifícios em redor, mas não fez estragos no seu apartamento. “Por agora”, frisa. O marido, mais sereno, corrige-a: “Não digas ‘por agora’, porque não vai acontecer nada, está bem?”.