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A história do multimilionário Jeffrey Epstein é a história da outra face de um mundo que uns não querem conhecer e outros não querem que seja revelado. O milionário suicidou-se no ano passado, depois de ter sido acusado de tráfico sexual, por ter abusado de dezenas de menores, num caso cujo início (das investigações) remonta a 2002. Entre quem sempre o acusou, há quem continue a querer justiça. Mas no longo caminho, turbulento e obscuro, que foi a vida de Epstein, houve quem colocasse fim à própria vida — das vítimas ao próprio agressor, que se enforcou aos 66 anos na cela onde estava preso há um mês, em agosto de 2019. É este historial de quase-ficção, mas onde nada podia ser mais real, que faz parte da minissérie de quatro episódios “Jeffrey Epstein: Podre de Rico”, que esta quarta-feira se estreia na Netflix.
Já antes, e através de diversas investigações, principalmente por parte de Julie K. Brown, do jornal americano The Miami Herald, ficámos a conhecer melhor a vida de Epstein, os seus gostos, manias, conquistas, derrotas e até o círculo mais próximo de conhecidos: Bill Clinton, Donald Trump, Woody Allen, Kevin Spacey, antigos governadores, o neto do filantropo George Soros ou o Príncipe André, da família real britânica. Existe ainda um pequeno livro preto de contactos, com nomes que vão de Alec Baldwin a Courtney Love, de potenciais testemunhas ou de alegadas vítimas, revelado pelo site Gawker em 2015.
Agora “Podre de Rico”, produção baseada no livro com o mesmo nome, de James Patterson, traz à luz várias entrevistas com as “sobreviventes” — como apelida a revista Time –, traçando a rede de influências de Epstein. “Ele era um tipo rico e carismático que se safou. Queríamos revelar, passo a passo, a sua vida e o seu padrão de brincar com o sistema. Fê-lo até ao fim”, conta Lisa Bryant, realizadora da série à revista norte-americana. E há, para já, uma garantia, olhando para o trailer: “Os monstros tiraram-nos a liberdade, agora é a vez de lhes tirar a deles”, conta Virginia Roberts, uma das alegadas vítimas.
[o trailer de “Jeffery Epstein: Podre de Rico”]
O Gatsby misterioso, o filantropo de camisa aberta
Ao contrário do que se poderia pensar, Epstein cresceu em Coney Island, Brooklyn. Filho de pais imigrantes, que tiveram outro tipo de vida: o pai trabalhava na recolha de lixo a sua mãe era empregada numa escola. Epstein nunca acabou a licenciatura na Universidade de Nova Iorque. Mas isso não lhe retirou a ambição. A alta finança corria-lhe nas veias (claramente não em sentido hereditário, mas por vida do desejo) e partir dos anos 80 passou a correr-lhe nos bolsos. Epstein começou por ser, imagine-se, professor de matemática e física nos anos 70 na escola secundária de Dalton. O seu estilo, de camisa aberta e casaco de pele, desafiavam o dress code da escola. A postura que desfilava gerava algumas dúvidas sobre as suas intenções. Segundo a revista Times, oito alunas antigas, que confessaram nunca terem estabelecido relações sem consentimento, afirmaram, no entanto, que a conduta de Epstein com raparigas adolescentes “deixava a impressão de que era algo que acontecia há décadas”.
Dez anos depois, tornar-se-ia gestor de fundos de investimento, após um início de carreira no banco Bear Stearns. Em 1982 decidiu fundar a sua própria empresa, onde passou a gerir uma rica carteira de clientes, cuja fortuna rondava os mil milhões de dólares. Ajudou também a manter uma amizade próxima com outro multimilionário, Les Wexner, o diretor executivo da Victoria Secret, que hoje se declara “embaraçado” por ter alimentado tal amizade tão próxima. A sua subida foi tão rápida que, pouco tempo depois, adquiriu a ilha Little St. James, nas Caraíbas, casa da sua fundação, a Jeffrey Epstein VI Foundation, que doou 6,5 milhões de dólares à Universidade de Harvard, como revela um artigo da Vox.
Na passagem para o novo milénio, Jeffrey era visto como um verdadeiro filantropo, elogiado por mentes dessa mesma universidade, criando, paralelamente, uma nuvem de mistério à volta da sua própria existência, até dentro do seu círculo de amigos famosos. “É uma figura Gatsbyana. Gosta que as pessoas pensem que é muito rico e cultiva um certo distanciamento. É tudo estranho”, desabafou uma figura de Wall Street, num perfil da revista New York, em 2002. Mas era alguém cujas ideias poderiam ser incluídas num qualquer filme de terror: usar o seu rancho no novo México para inseminar mulheres com o seu próprio esperma, como contado pelo Vox.
Epstein descrevia os amigos famosos como uma “coleção de sortidos”, confessando que “investia em pessoas”, da política à ciência. E em pessoas de qualquer tipo, até do tipo que se tornam príncipes, já que segundo confessou o milionário ao NYT, o Príncipe Mohammed bin Salman visitou-o na sua mansão várias vezes. Mansão que era uma verdadeira “casa de horrores”, com móveis portugueses lacados do século XVIII ou próteses mamárias na casa de banho, como já tínhamos escrito aqui.
Mas era nesse círculo que se gostava de movimentar. Nessa altura, voou até África ao lado de Kevin Spacey ou de Bill Clinton, que utilizou diversas vezes os seus aviões privados para uma campanha de sensibilização relativa ao VIH. “O Jeffrey é um homem das finanças de sucesso e um filantropo comprometido, com um sentido refinado sobre os mercados globais e um conhecimento profundo da ciência do século XXI”, afirmou um porta-voz do antigo presidente norte-americano, citado pela New York, e referido num extenso artigo do The Guardian.
E é também aí que ficamos a saber o que é que o atual presidente dos EUA, Donald Trump, pensava do milionário, com quem partilhou o mesmo espaço, de festas a fotografias: “Conheço-o há 15 anos, é um tipo fantástico, muito divertido. Até se diz que gosta de mulheres bonitas tanto como eu, e há muitas que são jovens”. Disse-o em 2002. 18 anos depois, já com o poder da Sala Oval a seu cargo, veio afirmar que tinha deixado de ser seu fã. O interesse de Jeffrey por raparigas mais novas não era, portanto, tabu. O colunista da Vanity Fair, Michael Wolff, que viajou num dos aviões privados do falecido milionário, descreveu em 2007, num artigo da revista New York, esta tendência: “Gosto de raparigas mais novas, o que é que posso dizer… talvez você deva dizer que gosto de mulheres mais novas”, terá dito Epstein ao colunista.
“Eu não sou um predador sexual, sou um agressor”
É duro ou até incompreensível perceber as diferenças nesta afirmação de Jeffrey Epstein, que remonta a 2011, numa entrevista do próprio ao New York Post. “É a diferença entre um assassino e uma pessoa que rouba um bagel”, contou. Mas é também o sintoma de alguém que conseguiu, quer pelo seu poderio financeiro, quer pela rede de amigos influentes, passar pelas malhas da justiça com acordos, lavando sucessivamente a sua imagem pública através dos órgãos de comunicação social. E é também o sintoma de alguém que considera que “criminalizar sexo com raparigas adolescentes era uma aberração”, como descreveu ao jornalista James B. Stewart (do NYT), que foi convidado pelo próprio para escrever uma biografia sua. Alegar ter conhecimento de “podres” da vida de amigos famosos, com detalhes das suas supostas atividades sexuais ou consumo de drogas, também pode ter ajudado no processo.
Em 2005 começaram a surgir os primeiros rumores de condutas sexuais inapropriadas com menores, e detetives em Palm Beach iniciaram uma investigação. A verdade é que a partir 2008, com o caso já referido ao FBI, Epstein passou a ficar registado, pelo menos na Florida, como agressor sexual, depois de se ter confessado culpado de solicitar a uma menor de idade que se prostituísse — a acusação, contudo, envolvia dezenas de raparigas menores. Jeffrey pagava às raparigas para que lhes dessem massagens — algo pelo qual Epstein era “apaixonado” –, enquanto o magnata se masturbava, acabando por terem relações sexuais, como contado pela investigação jornalística de Julie Brown do Miami Herald. O caso chegou mesmo a ser descrito como “um esquema sexual em pirâmide”, já que havia outra pessoa que recrutava as raparigas. Curiosas são também as alegações de que alguns media decidiram manter o silêncio em relação a Epstein. “Alguém vai ligar ao teu publisher e, em pouco tempo, vais ficar a fazer obituários”, um aviso dado a Julie Brown, contado pelo The Guardian.
Só que um acordo de não acusação, negociado secretamente, com Alexander Acosta — antigo secretário de Estado do Trabalho de Trump — e procurador em Miami na altura, condenou-o a apenas 18 meses atrás das grades, numa secção privada de uma prisão em Palm Beach. Cumpriu 13 e podia sair seis dias por semana para “trabalhar”. O facto de ter um autêntico exército de advogados e de investigadores privados, que tentaram desacreditar as mulheres e raparigas que avançaram com acusações, também permitiu que saísse praticamente ileso.
Segundo o Daily Beast, Epstein afirmou que foi tudo consentido e que estava convencido de que as jovens tinham mais de 18 anos. Foi aí que também ficou garantida a imunidade para todos os que pudessem estar envolvidos nos seus crimes. Até porque uma das alegadas vítimas acusou o príncipe André, de quem Jeffrey Epstein era amigo pelo menos desde 2011, de ter tido relações sexuais com ela. Entretanto, o também duque de York deixou as funções reais e, depois do caso inicial, largou o cargo de embaixador comercial britânico. Agora, com os contornos das novas acusações, há suspeitas de que André tenha mesmo estado em casa de Epstein durante os alegados abusos sexuais. Chegou a ser inclusivamente “apanhado” em 2010 à porta da casa do milionário.
2019, o ano das novas acusações
Depois de ter chegado de uma viagem a França, Epstein acabou por ser detido no aeroporto de New Jersey. E porquê? Porque tinha sido acusado de tráfico sexual, com novas vítimas e novos casos reunidos, num tribunal federal em Nova Iorque onde, caso fosse condenado, poderia ter ficado 45 anos na prisão, ou seja, o resto da vida. A acusação remontava a acontecimentos passados entre 2002 e 2005, onde o milionário terá recrutado raparigas jovens — no mínimo 14 anos — para a sua residência em Palm Beach mas também para a sua mega mansão em Manhattan, onde as terá abusado sexualmente. No documento da acusação, consta também que Epstein sabia que as raparigas eram menores de idade e que terá conspirado com outros, incluindo associados (leia-se “amigos famosos anteriormente referidos”) e empregados, que facilitaram o processo.
Todos estes novos contornos surgem depois de alegações sobre supostos crimes sexuais nas propriedades do milionário por parte de Bill Clinton, mas também de Donald Trump, que terá alegadamente violado uma mulher, de nome fictício Katie Johnson, numa das festas de Epstein, quando tinha apenas 13 anos. Katie acabaria por largar o processo. Dois anos dois, surgiria uma nova investigação do Miami Herald, onde foram expostas entrevistas de alegadas vítimas, e também do papel de Acosta no tal acordo de não acusação de 2008. A opinião pública, tanto republicana como democrata, dividia-se entre troca de acusações e a procura de responsáveis. Mas as amizades com esta figura, essas, parecem ser transversais ao espectro político. Porque há algo que outrora não tinha tanta força: as vozes femininas que, apoiadas pelo movimento #metoo, são agora escutadas por milhares de pessoas, tendo ganho o seu espaço nos media tradicionais. E até em novas plataformas, como é o caso da Netflix.
Além de toda a sua história obscura e rede de influências, outro dos temas explorados pela nova minissérie documental é a dúvida em relação à morte Epstein: se foi assassinado ou se foi suicídio, como já tinha sido relatado pelo programa “60 Minutes”. O New York City Medical Examiner Office declarou a morte como suicídio, mas um médico forense, contratado pelo irmão do magnata, declarou-o homicídio. Quanto às investigações dos seus alegados crimes, estão paradas, enquanto continuam a surgir relatos de raparigas. Uma delas, de 15 anos, teria fugido da ilha de Epstein depois de ter sido forçada a ter sexo com o empresário, acabando por ser “capturada” pelo próprio, tendo-lhe sido confiscado o passaporte.
Epstein estava preso numa prisão de alta segurança em Manhattan, ao lado de alegados terroristas ou do conhecido barão de droga, El Chapo. A sua fortuna permanece, para já, parada: 500 milhões de dólares. Na sua mansão encontra-se um cofre com “pilhas de dinheiro” e um passaporte falso.
Do outro lado, estão os amigos famosos e as instituições que receberam dinheiro de Epstein, que agora tentam distanciar-se do seu passado ou da ligação com o outrora aclamado filantropo. E que também esperam que a sua morte abafe todos os contornos ainda não conhecidos da vida desta personagem hollywodeesca. Por exemplo, foi recentemente revelado que, após a detenção de 2008, o magnata visitou várias vezes a faculdade de Harvard, onde lhe foi atribuído um escritório, como descrito pela ABC. O MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) também terá recebido donativos, entre 2002 e 2017, e, alegadamente, os administradores desse instituto sabiam de tudo, como revelou o New York Times.