Abrimos a antologia ‘Misteriosamente Feliz’, lemos uns quantos poemas e ficamos estarrecidos: como é que este poeta nos anda a passar despercebido há mais de 40 anos?
Uma das grandes utopias da modernidade tecnológica, cientifica, digital é prometer-nos de que nada nos escapará. Que estamos no mundo todo sem sair de casa, que tudo o que há a saber e a descobrir está ao nosso alcance num clic. No entanto, muitos de nós não conhecemos Joan Margarit, o enorme poeta que se tornou um dos símbolos da cultura catalã e da Catalunha independente. Seguramente um dos grandes poetas do século XXI.
Casa da Misericórdia (Óvni) e Misteriosamente Feliz (Língua Morta) são tudo o que temos em português deste poeta que se estreou em 1963 em castelhano e que em 1978 renegou toda a sua obra para escrever em catalão, a língua materna, a língua proibida, casulo de onde morreu como poeta comum e renasceu como continuador e renovador da milenar cultura catalã. A mesma que deu ao mundo António Machado, Miró, Dali, Gaudi e que adotou Picasso… e que agora está a fazer tremer as bases políticas de Espanha.
Margarit não é apenas um dos mais amados e premiados poetas da Catalunha, é também um dos mais lidos poetas contemporâneos espanhóis. Até porque, apesar de escrever em catalão, o poeta encarrega-se ele próprio de traduzir tudo para castelhano, pelo que a sua obra é amplamente conhecida e aumenta a nossa estranheza de não haver editores interessados em divulgá-la.
E a prova de que são as pequenas editoras independentes que estão a zelar pela tradução de poesia internacional é que foi uma já desaparecida editora Ovni a responsável pela primeira tradução de Margarit para português, em 2009. Agora é a vez de a Língua Morta, enquanto luta estoicamente para pagar o ISBN, a dar-nos, no seu jeito discreto de ser, este Misteriosamente Feliz, uma antologia onde encontramos poemas de todos os livros de Margarit desde Crónica (1975), a única coisa que o poeta salvou da sua vida como poeta castelhano, até Des d’on Tornar a Estimar (2015).
A tradução é do jovem tradutor e investigador Miguel Filipe Mochila, que “lamenta” o enorme desconhecimento que temos da poesia espanhola, o desinteresse crescente das editoras em publicarem poesia traduzida e de como isso é nefasto para a nossa própria cultura, “pois fecha-nos num inevitável provincianismo”. Ao Observador, a Língua Morta explicou que considera Margarit “um dos maiores poetas contemporâneos mundiais” e isso justificou fazer esta tradução/edição, “cara para as possibilidades financeiras da editora e que se deveu sobretudo à generosidade e ao talento de Miguel Filipe Mochila”. A pequeniníssima edição de Misteriosamente Feliz (de 250 exemplares) esgotou agora na Feira do Livro de Lisboa e, infelizmente para os leitores, a Língua Morta diz que neste momento não tem “condições financeiras” para reeditar o livro.
A minha pátria é a língua catalã
(…) Cidade com a miséria de uma guerra perdidaque nos obrigava a amar com fúria o futuro:tens no passado janelas que na tarde se acendemcomo mansos animais. Janelas que recordamtodos os nossos triunfos –pobres triunfos efémeros —ardentes nas ruas. Fui-te fiel, cidade:numa ou noutra língua, falei sempre de ti! (p.127)
A frase de Pessoa podia ter sido escrita por Margarit, para quem a questão da língua se colocou de uma forma muito mais trágica do que para o poeta português, uma vez que, depois da Guerra Civil Espanhola, o catalão foi proibido. E de cada vez que o pequeno Margarit se descaía utilizado a escola ou na rua uma palavra da sua língua materna era repreendido com um “fala cristão”.
O castelhano era pois a língua cristã e o catalão, língua pagã, coisa diabólica, degenerada mas, ainda assim, língua materna. Linguagem primeira dos afetos, tão poderosa como a própria imagem materna, siderante, inescapável. Nós, apesar dos anos de domínio castelhano, não fazemos ideia do que é sermos proibidos de falar português, ou de só o podermos falar no seio familiar. “A ferida de uma língua roubada é inultrapassável”, há de declarar o poeta, que nasceu em 1938 em plena guerra civil na aldeia de Sanaüja, onde a família se tinha refugiado. O pai lutava do lado dos republicanos, esteve preso, e a família viveu de forma particularmente traumática a derrota e a ascensão de Franco.
Na escola apenas se falava castelhano, e o catalão era a língua de casa que partilhava sobretudo com os avós que, aos domingos, o levavam ao cinema. A sua língua era um abrigo, simultaneamente esplendoroso e terrífico. Por isso demorou muitos anos a assumi-la. “Não faço poesia social, nem patriótica. Mas salvar a Língua pôs-me frente a frente com a minha gente e, ao mesmo tempo, deixou-me à mercê deles”, mais uma vez lembrando que as palavras não são coisas, mas símbolos das coisas, das experiencias corpóreas e cinestésicas arcaicas que lhes deram origem.
Fez-se poeta nas viagens entre Barcelona e Tenerife para onde a família se mudaria na sua adolescência. Tornou-se arquiteto, especialista em Cálculo de Estruturas, não para fugir à poesia mas porque diz “se a matemática é a mais exata das ciências, a poesia é mais exata arte da palavra”. Estará ligado à continuação da construção da Sagrada Família, do anel o estádio Olímpico de Barcelona e à recuperação de velhos bairros sociais da capital catalã.
Barcelona, com os seus esplendores e misérias, é elevada, na poesia de Margarit, a uma cidade primordial, que se confunde com a Paris de Baudelaire, com Ítaca de Ulisses, com o corpo de Calipso, com o rosto paterno marcado por uma terrível cicatriz. A cidade, na sua arquitetura e na sua geografia urbana, as suas forças físicas e espirituais confundem-se com o próprio humano nas suas infinitas metamorfoses.
E é neste caldo cultural fervilhante que é e foi a Catalunha que Joan Margarit expõe a sua posição política face independência, numa entrevista a uma estação de rádio australiana:
“Em Espanha há uma grande questão ligada à Liberdade, que é a independência da Catalunha. Eu coloco a questão ao nível da Roma e da Grécia antigas. Qual dos impérios ganhou ou ganha? A Grécia porque produziu cultura. Uma cultura sem a qual Roma não seria nada. Não existiria. Roma é a Grécia com engenharia, com arcos. O único triunfo de um pequeno país é a sua cultura. A única possibilidade de liberdade da Catalunha é a sua cultura, e a Catalunha tem feito algo extraordinário que é: através da sua língua gerar cultura.”
Estreou-se em castelhano, em 1963, numa paisagem poética que não tinha espaço para a força simbólica do seu realismo. Em 1978 era ainda era quase desconhecido quando tomou a radical decisão de passar a escrever em catalão: “A língua da poesia é a cripta sem a qual não haveria catedrais. A poesia só pode ser escrita na língua-materna. Perdi 20 anos a tentar escrever em castelhano, porque só aos 40 anos pude entender isto”, diz Margarit numa das várias entrevistas em que é abordado sobre a sua decisão.”
A verdade é que, depois de rejeitar toda a sua obra anterior a (guardando apenas Crónica, de 1975) Joan Margarit ganha um novo fôlego como poeta e, em 1982, recebe os primeiro prémios da sua carreira: Miquel de Palol e Vicent Andrés Estellés de 1982. Em 1984 ganha o premio Nacional da Crítica. E em 2008 o prémio Nacional de Poesia. Os prémios e encómios nunca fizeram dele um “poeta oficial” ou num “poeta de carreira”. E é ele mesmo quem avisa “a poesia dos poetas profissionais é terrível”.
Uma poética do quotidiano
Coltrane, Chet Baker, Baudelaire e Leo Ferre, boulevards e ramblas, cafés e estações de comboio, velhos hotéis à beira mar, navios oxidados, praias vazias. Uma Europa incessantemente destruída e reinventada nos seus mitos. Desde logo afirmando que Ulisses morreu nas praias de Troia e que, portanto, tudo o que vivemos é alucinação de uma coisa há muito morta. Nada nos resta senão o brilho das estrelas há muito extintas.
A perda, a viagem, a casa, são as marcas fundamentais da poesia de Margarit, como explica Miguel Filipe Mochila, no posfácio de Misteriosamente Feliz, um texto sólido e aliciante. A arquitetura urbana surge intimamente ligada às experiencias do poeta, no dialogo de confronto do Eu com o espaço que o rodeia. Mesmo sendo arquiteto e trabalhando com a resistência dos materiais, a argamassa, os pilares, as fundações das grandes construções humanas são feitas de matérias intangíveis como o sonho, a memória, o amor e a morte. Se fosse imagem esta poesia seria um quadro de Edward Hopper; corpos e cidades, presos na sua existência excessiva e intransponível.
Os objetos, os gestos, os lugares provisórios, os espaços degradados pelo uso, a casa e os seus fantasmas, a viagem como condenação a uma busca sem fim, os corpos, compõem um quotidiano onde refulgem sucessivas camadas de tempo e onde cada experiência ganha um poderoso caráter simbólico. Podemos mesmo dizer que Margarit faz bem aquilo que os poetas portugueses da chamada “poesia do quotidiano” tentam fazer sem jamais conseguir.
Mesmo quando é autobiográfico (como no livro Joana, onde conta a doença e morte da sua filha), o poeta catalão consegue evocar a universalidade da perda, do amor, e da impossibilidade trágica de chegar ao absoluto no Outro. Nele, como em Vergílio Ferreira (escritor muito admirado por Margarit) estamos ainda numa solidão ontológicas, numa solidão inacabada.
“Vais chegando à ilha e agora sabes
o que quer dizer a vida, o que é o destino.
O teu arco será pó na prateleira.
Pó serão o tear e a sua peça.
Os pretendentes que lá fora acampam,
são sombras dos sonhos de Penélope.
Vais chegando à ilha: nas rochas,
como no tempo da Odisseia, bate o mar.
Nunca ninguém teceu a tua ausência,
nem desteceu o olvido da tua partida.
Por mais que às vezes a razão o ignore,
Penélope é uma sombra do teu sonho.
Vais chegando à ilha: as gaivotas
que cobrem a praia não se movem
quando a atravessas sem deixares rasto,
porque tu não existes:és o mito.
Haverá talvez um Ulisses morto em Tróia,
e chorá-lo-á talvez uma mulher,
mas no sonho de um poeta cego
continuas a salvar-te. Na cabeça de Homero,
eterno e rigoroso, a cada alvorada,
um solitário Ulisses desembarca.”(Ulisses em Águas de Ítaca,p.35)
Assim, a poética de Margarit é errática, deambulatória, jazzística, cheia de sobressaltos, impulsos líricos e palavras rudes, carne, e óxido, é sensível às modulações dos sonhos e as irrupções melancólicas ou revoltas da alma humana. Como as cidades que incessantemente percorre a sua poesia tem esse bulício caótico, ora sensual, ora trágico que encontramos no spleen baudelairiano mas que este autor leva ainda mais longe, porque não nele nenhuma sombra de snobismo, ou distanciamento agressivo, pois mesmo a morte inevitável abre para uma possibilidade futurante: o regresso à idade de ouro das palavras, quando estas não eram meros sons mortos pelo uso, mas símbolos de experiências vivas, vibrantes.