“A palavra que melhor define o João é talento. Todos viram o vídeo de apresentação no Museu do Prado. Não havia sítio melhor para apresentar João Félix do que rodeado de obras de arte.”
As frases pertencem a Enrique Cerezo, presidente do Atl. Madrid, e foram ditas em julho de 2019, há mais de três anos, no dia em que João Félix foi apresentado como reforço dos colchoneros em pleno Wanda Metropolitano. Félix, que ainda nem tinha cumprido duas décadas de vida, era apresentado num dos melhores clubes do mundo ao lado de quadros de Velázquez, Rubens e Rembrandt. Mais de três anos depois, continua a ser um artista incompreendido.
Os primeiros passos com Diogo Costa e Dalot, a felicidade no Benfica e a importância da família
A história de Félix, de João, é conhecida por todos. Figura maior da formação do Benfica que nos últimos anos produziu alguns dos melhores jogadores do mundo, saltou para a ribalta na época em que Bruno Lage substituiu Rui Vitória e conseguiu conquistar a Primeira Liga com recurso aos mais jovens — incluindo Gedson, Florentino, Ferro e companhia. Nesse mesmo verão, sem ter sequer cumprido uma verdadeira temporada pelos encarnados, saltou para o Atl. Madrid a troco de uns extraordinários 126 milhões de euros. Antes, porém, Félix, o João, foi capitão nas camadas jovens do FC Porto.
Nasceu em Viseu e começou a jogar à bola mais a sério ainda no Futebol 7 d’Os Pestinhas, um clube infantil da cidade onde cresceu. A maioria dos colegas de equipa dessa altura, como não podia deixar de ser, saltaram para as camadas jovens do Tondela com o passar dos anos. Mas João, sempre mais esguio do que todos os outros, mas sempre melhor do que a grande maioria, saiu para a formação do FC Porto logo em 2008, com apenas nove anos.
Foi nos dragões que se fez jogador e foi nos dragões que começou a dar nas vistas, passando seis anos a subir de escalão para escalão até ser emprestado ao Padroense, clube satélite do FC Porto, enquanto juvenil. Meses depois, para surpresa geral no universo azul e branco que o rodeava, mudou-se para o Benfica.
Nos encarnados, onde se tornou uma das estrelas do Seixal logo a partir do segundo ano de juvenil, estreou-se como profissional na equipa B pela mão do treinador Hélder Cristóvão num empate sem golos com o Freamunde. Chegou à equipa principal em 2018/19, ainda com Rui Vitória, e afirmou-se no onze inicial já com Bruno Lage, beneficiando da lesão de Jonas e do bom entendimento com Seferovic: marcou 20 golos em 43 jogos em todas as competições, tornou-se o mais novo de sempre a chegar aos 10 golos pelo Benfica e assumiu-se como referência de um conjunto que parecia estar fora das grandes decisões mas empreendeu um período de retoma assinalável que valeu a conquista da Liga. Na Luz, e mais do que Félix, João foi feliz. Algo que, como o próprio já revelou, nem sempre foi no FC Porto.
“À medida que fui crescendo enquanto homem e jogador percebi aquilo que adorava – ter a bola, jogar um futebol bonito e feliz. É aí que estou no meu melhor, é aí que me sinto eu. Mas quando jogava nas camadas jovens do FC Porto isso nem sempre aconteceu. Eles não acreditavam em mim tanto quanto eu acreditava em mim. Não confiavam em mim tanto quando eu acreditava em mim, não confiavam em mim dentro de campo. Criticavam-me pelo meu tamanho. Tiravam-me de campo, tiravam-me a bola. No FC Porto perdi a alegria”, contou o jogador português ao The Players’ Tribune ainda em 2019. Ainda assim, João Félix passou seis anos, dos sete aos 13, de azul e branco. E por lá fez amigos, entre os colegas de equipa que hoje estão espalhados pelos quatro cantos do mundo do futebol. E são alguns desses amigos que agora recordam o miúdo que fez parte de uma geração de ouro da formação dos dragões.
Renato Martins, atualmente a representar o Aparecida, de Lousada, cruzou-se com João Félix quando ambos tinham apenas 11 anos. O lateral esquerdo recorda o avançado do Atl. Madrid como um jogador que “sempre se destacou” – apesar do físico pouco desenvolvido, algo que Félix sempre associou à saída para o Benfica. “Com aquele físico ninguém dava nada por ele. Mas sempre foi aquele miúdo que ninguém gostava de apanhar pela frente”, explica Renato, que também passou pelo P. Ferreira e pela AD Marco 09, ao Observador.
“Eu sabia que ele, chegando lá acima, ia automaticamente rebentar. Sempre foi muito focado naquilo que queria. Quando estávamos em estágio, num hotel, se era para estar pronto às três o João às duas e meia já estava lá em baixo no sítio da concentração à espera de todos. Sempre quis, sempre quis, sempre quis. Nada me surpreendeu”, garante Renato Martins, que destaca a família como o grande apoio do jogador.
“A família para ele é tudo. Se há uma hora vaga num estágio se calhar os outros vão todos para o Instagram ou para o Facebook e ele não, já está a ligar para a família. Sempre teve ali aquele braço direito para o manter protegido”, acrescenta, numa linha de pensamento que encaixa com as declarações do internacional português esta quinta-feira e logo depois de se ter estreado a marcar num Mundial, contra o Gana.
Em 2013/14, ainda no FC Porto mas já enquanto juvenil, João Félix integrou uma equipa orientada pelo ex-FC Porto e Sporting Bino, que tinha ao seu dispor jogadores que hoje fazem parte do plantel principal dos dragões, do Benfica e ainda de vários clubes estrangeiros. Nessa equipa, que no final da temporada ficou no primeiro lugar da Série B do Nacional de Juvenis mas acabou em último na final four nacional que o Benfica conquistou (e que integrava ainda Sporting e U. Leiria), estavam Diogo Dalot e Diogo Costa, dois nomes que agora partilham o balneário da Seleção Nacional com Félix. E Nuno Esgueirão. O lateral esquerdo, que está no Oliveira do Bairro, era um dos elementos que maior proximidade mantinha com o avançado e jogou com ele desde 2012 até este se mudar para o Benfica, em 2015.
“Ele fazia da bola o que queria, tinha uma capacidade de visão de jogo completamente acima da média. Em relação a mim mesmo e aos outros que lá estavam”, explica o jovem jogador que, tal como Renato Martins, destaca a importância que a estabilidade familiar tem para João Félix. “Conhecendo os pais dele, acho que vai ter sempre o apoio de que precisa para tomar decisões. Tem uma família bastante unida e que sempre o apoiou, sempre estiveram lá para o ajudar. Eu via esse apoio quando ia a casa dele, notava-se que tinha ali uma boa estabilidade, um bom lar”, sublinha.
O avançado de 23 anos chegou ao Atl. Madrid com o rótulo de obra de arte, depois de impressionar no Benfica e de ter dado os primeiros passos no FC Porto ao lado de quem também chegou a internacional português. Contudo, três anos depois de ser apresentado com pompa e circunstância no Wanda Metropolitano, está longe de ter vingado em Espanha. Mas como é que chegámos aqui? Ou melhor: como é que nunca saímos daqui?
A relação com Simeone e como algo que começa torto nunca se endireita
João Félix chegou a Madrid com o carimbo dos 126 milhões de euros, o carimbo de ser a transferência mais cara da história do Benfica e o carimbo de ser a contratação mais cara da história do Atl. Madrid. Ficou com o 7 que Griezmann tinha acabado de deixar vago para rumar ao Barcelona, impressionou nos particulares da pré-época e até assinou uma jogada digna de Diego Armando Maradona na estreia na liga espanhola, mas depressa começaram os problemas. Lesionou-se em outubro, esteve um mês parado e quando regressou à competição não passou ao lado da linha de pensamento que se mantém até hoje: a ausência de encaixe, adaptação e entendimento com Diego Simeone.
O treinador argentino olha para o jogador português como um ala para o corredor direito ou um segundo avançado e exige aos avançados um compromisso defensivo e uma intensidade na hora de pressionar a que João Félix não estava claramente habituado. Voltou a lesionar-se já em maio e acabou a temporada com nove golos em 36 jogos em todas as competições – sendo interpretado pelo jornal Marca como uma das contratações que mais desiludiram em 2019/20.
A temporada de estreia, porém, foi apenas o início de um problema que se mantém até hoje. Os últimos três anos da carreira do internacional português foram uma verdadeira montanha-russa entre períodos muito positivos, períodos francamente negativos, elogios de Simeone e recados de Simeone. Se Félix foi eleito pelos adeptos o melhor jogador da época passada, Félix também é associado a uma saída sempre que se aproxima a janela de transferências – e a relação entre o jogador e o treinador atingiu um momento particularmente complexo nos últimos meses.
Depois de começar a temporada num bom momento de forma, assinando até um hat-trick de assistências contra o Getafe, o avançado perdeu a titularidade de forma aparentemente inexplicável e tornou-se mesmo a quinta opção para o ataque, atrás de Griezmann, Morata, Correa e Matheus Cunha. “Vou ser muito claro, tal como fui com o João: eu quero ganhar. Quero ganhar com o João, quero ganhar com o Correa, com o Matheus, com o Morata ou o Griezmann. É a única realidade. Ele fez uma pré-época muito boa e, apesar da lesão que teve no início da época, jogou muito bem contra a Juventus e contra o Manchester United e jogou enquanto teve bom rendimento. Agora, como o rendimento dele baixou, joga outro”, chegou a dizer Diego Simeone, dando ainda a entender que o português não estava comprometido com a equipa.
“Quando o João voltar a estar bem nos treinos, quando a equipa precisar dele, vai voltar a jogar. Neste momento, entendo que há outros jogadores que estão melhor. Vocês acham que eu não meto o Félix a jogar para perder? Nenhum treinador faz isso”, acrescentou, numa declaração que incendiou ainda mais a opinião do universo colchonero sobre o jogador numa altura em que foi apanhado numa festa, com um cigarro na mão, logo após a eliminação da Liga dos Campeões.
Entre explicações vazias de Diego Simeone nas conferências de imprensa, Enrique Cerezo a assumir que João Félix ainda não correspondeu aos milhões investidos e o claro desagrado demonstrado pelo jogador sempre que começava um jogo no banco, a situação agravou-se em outubro exatamente na Liga dos Campeões.
Aí, numa receção ao Club Brugge em que o Atl. Madrid precisava de ganhar para seguir em frente na prova milionária, Félix aqueceu em três períodos distintos e nunca chegou a entrar em campo. No dia seguinte, a imprensa espanhola garantia que o jovem avançado já tinha indicado a Jorge Mendes que o futuro passava por uma saída já no mercado de janeiro. Ainda assim, e apesar da falta de regularidade, Fernando Santos convocou João Félix para o Mundial do Qatar. E o Campeonato do Mundo pode ditar uma viragem total na carreira do internacional português.
O Mundial do Qatar, um ponto de viragem que pode abrir a porta a novos destinos
Na quinta-feira, pouco mais de uma hora antes de Portugal entrar em campo para defrontar o Gana na estreia no Campeonato do Mundo, o onze inicial de Fernando Santos tinha uma surpresa principal: João Félix, e não Rafael Leão, era titular no trio ofensivo português em conjunto com Bruno Fernandes e Cristiano Ronaldo. O avançado parecia recolher os frutos da exibição positiva no particular contra a Nigéria e era aposta do selecionador nacional no primeiro desafio no Qatar.
Em campo, depois de uma primeira parte discreta, foi um dos elementos fulcrais de um segundo tempo em que Portugal marcou três golos e foi rápido e eficaz a responder ao empate ganês. João Félix fez o segundo golo da Seleção Nacional e fez parte do lance que deu o terceiro, de Leão, demonstrando a qualidade técnica e a inteligência de que nunca ninguém teve dúvidas mas que teima em não chegar para ficar.
A exibição do avançado do Atl. Madrid poderá dar uma boa dor de cabeça a Fernando Santos e abre a porta a uma indecisão quanto ao onze desta segunda-feira frente ao Uruguai: vai o selecionador nacional devolver a titularidade a Rafael Leão, que tinha estado nas opções iniciais no passado recente, ou manter a titularidade de João Félix, que parece estar a regressar ao um bom momento de forma? As dúvidas só serão esclarecidas na antecâmara da partida mas, em Espanha, a ideia generalizada é de que o internacional português vai aproveitar o embalo do Mundial para mudar de ares já em janeiro.
Esta sexta-feira, logo no dia seguinte à vitória da Seleção Nacional, o jornal Marca garantia que o jovem jogador já tinha pedido ao Atl. Madrid para sair no próximo mercado de transferências – uma ideia que, contrariamente ao que já aconteceu noutras alturas, nem sequer desagrada à cúpula colchonera. Segundo o jornal, os dirigentes do clube reconhecem a relação complexa e difícil que João Félix mantém com Diego Simeone, para além dos últimos episódios em que se ouviram assobios vindos da bancada para o avançado português, e olham para o cenário de uma eventual transferência como praticamente incontornável.
Uma eventual transferência que, a realizar-se, não deixa de ser um falhanço para as duas partes do negócio: Félix nunca vai sair por 126 milhões, nem perto disso (o Transfermarkt só já o avalia em 50 milhões), e a ausência de encaixe financeiro por parte dos espanhóis é também a certeza de que o jogador nunca conseguiu corresponder a tudo aquilo que era esperado dele.
Pelo meio, Simeone comentou a exibição de João Félix contra o Gana, defendendo que o Mundial é o “torneio ideal” para o jogador. “Curto, em que se vê beleza, velocidade, onde nos apaixonamos por jogadores como ele”, acrescentou. Essa paixão, porém, é precisamente aquilo que o treinador argentino nunca demonstrou ter pelo português. A ausência dessa paixão, porém, é precisamente aquilo que leva figuras como Ricardinho a alertar um para a qualidade do outro. A necessidade dessa paixão, porém, é o que leva o avançado a olhar para o Campeonato do Mundo como um autêntico trampolim para paragens que podem ser o Bayern Munique, o Chelsea ou o Manchester United. Afinal, João Félix continua a ter o talento que fez com que fosse apresentado ao lado de Velázquez, Rubens e Rembrandt.