João Semedo teve duas vidas – uma ligada à droga, com passagens por várias prisões, e outra dedicada a dar a mão a miúdos que têm ou tiveram um percurso semelhante ao seu. Numa vida ou noutra, há sempre um lugar comum: a Cova da Moura, na Amadora. Mais conhecido por Johnson, e por ter fundado uma academia com o seu nome, o homem que morreu esta quarta-feira sempre quis regressar ao bairro que o viu falhar, para recomeçar uma nova vida. E para mostrar à mãe que era capaz de deixar o consumo de droga.
Morreu Johnson Semedo, ativista e fundador da Academia do Johnson, com projeto social na Amadora
Antes de chegar à fundação da Academia do Johnson, que tornou João Semedo conhecido além das fronteiras de bairros como a Cova da Moura, o Zambujal ou a Boavista, é preciso conhecer a sua infância. É que, aos nove anos, Johnson já não fazia da sua casa, no bairro da Cova da Moura, o seu lugar habitual. Era então um miúdo de rua, a viver por sua conta e risco. Depois, a partir dos 18 anos, as visitas à cadeia começaram a ser frequentes. Foi condenado por roubo, passou por várias prisões e esteve dez anos privado de liberdade.
Pelo meio das condenações, perdeu um dos seus ídolos: o pai. “Sempre me incutiu valores e princípios, mesmo dentro da pobreza”, disse João Semedo em entrevista ao podcast Imperdíveis, do Observador, em 2020. Terá sido também o seu pai a transmitir-lhe o sentido de família, que fez questão de passar para as crianças e jovens que frequentam e frequentaram a sua academia. “O Johnson era a figura paterna (para os mais novos), e isto tem a ver com a vivência dele, com a dedicação à mãe e com o facto de ter perdido o pai na cadeia e não ter sido possível acompanhá-lo“, contou ao Observador Noémia Silva, uma das fundadoras da Academia do Johnson.
A passagem de uma vida para a outra
Depois de sair da prisão, Johnson quis voltar à Cova da Moura. Mas, nessa altura, não estava completamente livre do consumo de droga. Continuou, aliás, a consumir durante sete meses. “Quando chegava a casa, olhava para a minha mãe e pensava ‘não pode ser, eu não posso dar isto a uma pessoa que nos dez anos em que estive preso esteve sempre lá para mim‘”, contou no mesmo podcast.
Saiu do bairro, foi para o Alentejo, para uma comunidade terapêutica e regressou, livre do consumo de droga. Mas a história não fica por aqui. A mãe adoeceu e, quando morreu, João Semedo voltou ao mundo da droga. “Recaí outra vez na droga, andei sete ou oito meses desatinado da cabeça.”
Foi então que surgiu uma segunda oportunidade. “Fui para o Vale de Acór (em Almada), onde fiz o tratamento de dois anos, sempre pensando assim: ‘Onde ela estiver, não vai estar preocupada, porque eu vou fazer isto por mim’.”
E conseguiu. Foi o último tratamento que fez e nunca mais voltou a consumir droga. Aliás, quando saiu da associação do Vale de Acór e chegou o momento da reinserção, Johnson foi aconselhado a não regressar ao lugar onde já tinha caído várias vezes. “Quando eu disse que ia viver para a Cova da Moura e eles disseram ‘olha, tu vais cair, tu vais-te espalhar’, então deram-me mais força. Foi lá que eu caí, é lá que eu vou criar os meus filhos.”
Quando regressou, mais uma vez, à Cova da Moura, a história foi, de facto, diferente. Desta vez, não voltou a cair, mesmo com os obstáculos que teve de ultrapassar. É que o seu primeiro trabalho foi precisamente com o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), que tinha uma unidade neste bairro para fazer a troca de seringas. “Precisavam de gente do bairro para fazer a ligação entre a malta que consome para trocar as seringas e eu, como precisava de dinheiro e de trabalhar, fui lá. Abri atividade nas Finanças, passava recibo e eles pagavam.”
Johnson recordou esta história ao Observador numa altura em que o país atravessava um dos confinamentos da pandemia e explicou como é que este primeiro trabalho moldou a pessoa em que se transformou. Na altura desta entrevista, em 2020, este homem estava livre de drogas e de álcool há 15 anos.
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No primeiro dia de trabalho para o IDT, entrou na sala de fumo, onde estavam pessoas a consumir droga. “Isto é brincar com o fogo, mas eu tinha de fazer isso para me testar”, disse. O tempo passou e chegou um momento em que “os sinos tocaram”. E estes sinos de que falava Johnson eram os alertas de que podia voltar a um vício que tanto demorou a largar. “Saí e pensei: ‘a partir de hoje, eu não posso entrar mais ali dentro.”
E não entrou. Mas também não desistiu. Johnson arranjou outra forma para conseguir ajudar aqueles que eram seus companheiros do bairro e começou a combinar encontros longe do sítio que o deixava desconfortável e longe da zona de conforto de quem consumia. “Quando dei por mim, passado um mês, o meu trabalho estava feito. A malta ia toda à carrinha fazer as trocas das seringas”, explicou.
A academia: “Não há nada que aqueles miúdos façam e que ele não tivesse feito”
Johnson trabalhava no Moinho da Juventude quando Noémia Silva começou a fazer voluntariado nesta associação criada dentro do bairro da Cova da Moura. Foi lá que os dois se conheceram e foi de lá que saíram para fundar a Academia Johnson, em abril de 2014.
“Começámos no Bairro da Boavista, dentro do meu carro a dar apoio escolar. Não tínhamos instalações e, quando chovia, tinha de ser dentro do meu carro”, contou Noémia Silva ao Observador, recordando o início da instituição por onde já passaram centenas de crianças e jovens. “Enquanto ele ia dar os treinos de futsal, eu ficava no apoio escolar, depois foi cedido um espaço dentro do bairro da Boavista e depois conseguimos os espaços dentro do bairro do Zambujal”, acrescentou a voluntária e também fundadora da academia.
É, aliás, no bairro do Zambujal que funciona ainda hoje a Academia Johnson, um produto da cabeça de João Semedo e que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse já ter feito uma “obra excecional” pelas crianças a que foi dando apoio ao longo dos anos. “O Johnson é a alma da academia. Ele faz ali um trabalho que é inigualável, pela história de vida dele — desde pequenino até ter sido preso. Ele tem uma experiência de vida que lhe permite fazer com muita facilidade aquilo que ele faz. Não há nada que aqueles miúdos façam e que ele não tivesse feito”, contou Noémia Silva.
Aliás, sobre Noémia, Johnson costumava dizer que esta era o seu elástico: “Quando ele ia muito à frente, eu puxava-o e chamava-o um pouco à terra. O Johnson sonhou sempre muito e muito alto. E, por vezes, era necessário trazê-lo um pouco mais para baixo, para podermos ultrapassar patamares”.
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O conceito das quintas-feiras, os treinos e as aulas
Ainda antes de fundar a sua academia, Johnson trabalhava no Moinho da Juventude com jovens entre os 13 e os 18 anos e a sua função era tirar estes miúdos da rua. Depois, já na Academia, continuou este trabalho, mas seguindo os seus métodos. Aqui, nesta academia, as crianças e jovens têm acesso ao desporto — seja futebol, futsal, ou dança, por exemplo –, têm apoio ao estudo e têm, sobretudo, acesso a um espaço seguro.
Num debate promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e pela RTP, em 2017, Johnson alertou para o seguinte: “Na escola primária, não chega dizer a um miúdo ‘vai para a escola e aprende'”. “Temos de ir à base, tem de haver primeiro um equilíbrio comportamental, não só da crianças, mas também dos pais”, acrescentou. Ainda no mesmo debate, Johnson descreveu um episódio que foi um dos momentos que o fez acreditar que o sucesso daqueles jovens não depende só da escola. Durante o apoio ao estudo, perceberam que um dos alunos não estava concentrado e a resposta era simples, mas dura: “Não tinha tomado o almoço.”
Uma das estratégias implementadas nesta academia é o conceito das quintas-feiras, dia em que os jovens se sentam para conversar uns com os outros. “Estes miúdos são miúdos hoje e homens amanhã e é importante que eles percebam que ser criança é uma coisa boa”, explicou Johnson. “É preciso pôr os miúdos a falar uns com os outros, sem ser com setas, sem ser a acusar, sem ser a atacar.”
Neste momento, a Academia do Johnson já ajudou centenas de crianças e jovens. E as redes sociais desta academia contam várias histórias de quem passa por ali. O percurso de Soraia é um desses exemplos. Entrou para a academia aos 15 anos, “com muitos medos, com muita revolta interior e com muita carência de afetividade paternal”, lê-se numa das publicações. Agora, aos 22 anos, esta jovem seguiu a carreira de militar da GNR.
Johnson Semedo morreu esta quarta-feira, aos 50 anos, e deixou um dos seus maiores sonhos: “Um dia, ver os meus mentores a tomar conta do barco e serem eles os pilares da academia”.