Quando o telefone toca às primeiras horas da manhã, ainda o sol não levantou, geralmente não é bom sinal. Foi isso que João Cruz Veiga pensou naquele 25 de agosto de 1988, quando uma chamada o fez saltar da cama às 6h. Tinha razão. Do outro lado da linha, disseram-lhe que o Chiado estava a arder. Mais, o prédio onde a família tinha uma joalharia estava em chamas. Em poucas horas, grande parte do trabalho de uma vida ficou reduzido a cinzas. Depois de serem forçados a sair de Angola em 1975, este era o segundo grande abalo para os Veiga.
O que João não podia imaginar é que o pior ainda estava para vir. Depois do incêndio, o prédio entre os números 193 e 203 da Rua do Ouro ficou completamente destruído. Viria a ter obras, mas só mais de dez anos volvidos, e depois de a Câmara Municipal de Lisboa se ver forçada a comprar o edifício. Concluída a reconstrução, João contava regressar à loja fundada pelo pai, comprando-a, tal como tinha acordado com a autarquia. Só que nunca mais lá voltou, porque a câmara lhe apresentou um preço muito superior ao combinado. Mais tarde, descobriu que as ajudas financeiras com que sempre contara já não estavam disponíveis. Vinte e sete anos depois do incêndio, João mantém a esperança de um dia voltar a chamar sua à Coralina Jóia, a loja que teve de abandonar quando as chamas chegaram. Só que o município vendeu o espaço a uma imobiliária chinesa…
O império dá, o império tira
Na cara de João Veiga raramente se vislumbra uma sombra de sorriso. Atrás do balcão da Joalharia Correia, na mesma Rua do Ouro onde fica o prédio dos seus pesadelos, vê entrar esporádicos turistas, curiosos com uma ou outra peça ou com a enorme cabeça de elefante que tem a um canto. Depois do incêndio ter destruído a Coralina Jóia, foi para aqui que o pai, João António Veiga, transferiu o negócio da família, com a esperança de que a mudança fosse apenas temporária.
A família Veiga é originária de Carrazeda de Ansiães, mas foi em Angola que prosperou. João António mudou-se para lá em 1943. “Fez de tudo: foi vaqueiro, madeireiro… Um dia encontrou uma mina de água”, conta o filho, sem conseguir evitar que a voz se embargue. Essa mina abriu as portas ao sucesso económico da família, que durante anos captou e exportou aquelas águas, com propriedades medicinais, para muitos países africanos e europeus. Mas João António não quis ficar por ali. “Teve o bichinho dos minerais”, arranjou maneira de entrar na exploração de diamantes e, quase por acaso, tropeçou numas jazidas de pedras preciosas e semipreciosas. Pouco antes do 25 de abril, para dar escoamento a tanta pedra, “comprou a loja na Rua do Ouro” com um objetivo claro: “A ideia dele era fazer uma cadeia de lojas na Europa”, explica o filho.
Quando se dá a Revolução dos Cravos, o império colonial desmorona-se e, com ele, muitos dos impérios económicos também vêm abaixo. As pedras preciosas de Angola acabaram, mas a Coralina Jóia, na Baixa, continuou a laborar com matéria-prima vinda de outras fontes. João António e os filhos mudaram-se definitivamente para Lisboa em 1975 para dar continuidade ao negócio de família. Foi a primeira descolonização.
Começar a renascer das cinzas
Em janeiro deste ano, João Cruz Veiga (o filho, portanto) pediu uma reunião ao presidente da câmara, António Costa. O encontro teve lugar em março e não foi o autarca que o ouviu. “Uma senhora recebeu-me, contei toda a história. No fim, ela respondeu-me: ‘Porque é que não mete a câmara em tribunal?'”. Foi a última vez que falou com a autarquia. E a história que contou a quem o recebeu foi esta.
Em 1998, dez anos depois do incêndio, o edifício onde ficava a Coralina Jóia continuava completamente destruído. O prédio, que se chama Confepele por ter funcionado ali uma empresa de peles com esse nome, tinha dez proprietários que, à data, ainda não haviam chegado a acordo sobre as obras a fazer. A família Veiga era dona de algumas frações, entre as quais a loja. Pode ler-se na documentação do processo, a que o Observador teve acesso, que a câmara se fartou de ver aquela ferida do incêndio ainda aberta e, entre 2000 e 2001, comprou o prédio, encarregando-se de fazer as tão necessárias e aguardadas obras. O “contrato promessa de compra, venda e de recompra” era claro: a autarquia comprava o edifício, punha-o de novo em condições e, no fim, vendia as frações aos anteriores donos.
“Nós contratámos várias empresas, a nosso custo, para apresentar projetos de reconstrução do prédio”, explica João Veiga. O acordo previa isso, que quem pagava os projetos eram os donos do prédio. Em troca, a câmara recorria ao Fundo Extraordinário de Ajuda à Reconstrução do Chiado (FEARC) – um pacote de ajudas financeiras criado pelo Governo logo após o incêndio – e pagava uma indemnização às várias empresas com sede no Confepele. O valor era uma “compensação pela manutenção (…) dos postos de trabalho”, como se lê numa adenda ao contrato promessa de compra, venda e recompra. O pai Veiga recebeu quatro mil contos através desta cláusula e 33 mil contos (perto de 170 mil euros) pela loja.
Os dois valores
Até aqui tudo bem. Só que rapidamente a situação descarrilaria. “A execução da obra (empreitada) teve um custo considerável e um tempo de execução muito superior ao contratualizado e desejável, ou seja, de 44 semanas, para 324 semanas”, lê-se num documento camarário. A reconstrução do prédio só terminou em junho de 2006, devido a “um moroso processo de adequação dos projetos entregues pelos anteriores proprietários às características do edifício e da descoberta de vestígios arqueológicos que obrigaram à suspensão dos trabalhos no local”, segundo uma carta da autarquia para João Veiga.
Mais de um ano depois, em novembro de 2007, o choque chegou em forma de carta. A câmara informava João Veiga de que podia voltar à Coralina Jóia se comprasse o espaço por 275.080,90 euros. Sem nunca o dizer explicitamente, a autarquia dava a entender na missiva que o preço se devia aos muitos problemas encontrados durante as obras. É que, segundo os Veiga, aquele não era o valor que deviam pagar. De acordo com o contrato promessa de compra, venda e recompra, assinado em fevereiro de 2000, o preço que os antigos proprietários teriam de pagar pelas lojas, escritórios e apartamentos seria calculado através da conjugação de uma série de fatores, como o custo das obras, o preço do metro quadrado e o preço pago pela câmara na altura. Afirma João Veiga que o valor correto a pagar pela loja é de 147.899,12 euros. Todos os documentos camarários que se seguiram a 2007 apontam também esse preço, mas o município não explicou aos Veiga como tinha chegado aos 275 mil euros. Também o Observador tentou perceber este valor junto da autarquia, mas os dois pedidos de esclarecimento enviados na semana passada ficaram sem resposta.
“Foi aí que começaram as nossas divergências”, diz João, que ainda se lembra da sensação com que ficou quando leu aquela carta. Pouco depois, ele e a família reclamaram formalmente do preço proposto. Seguiu-se um grande período de tempo com correspondência de parte a parte. Por fim, em 2009, a câmara acabou por dar razão a João Veiga, estabelecendo o preço de recompra da loja nos tais 147 mil euros, como consta de todas as tabelas elaboradas pelo município desde então.
Só que, entretanto, um novo problema surgiu. Estava previsto no contrato de 2000, e João sempre contou com isso, que, aquando da recompra, os proprietários podiam recorrer aos fundos criados pelo Estado para voltar ao prédio. O Fundo Extraordinário de Ajuda à Reconstrução do Chiado (FEARC) tinha uma linha de crédito com condições muito vantajosas. Acabou em 2001 e foi substituído pelo Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado (FRRC). Este terminou em 2008. Ou seja, quando chegou a altura de comprar efetivamente, já não havia ajudas disponíveis.
A segunda descolonização
“Fomos descolonizados duas vezes”, atira João Veiga com um tom de voz entre o revoltado e o amargurado. Primeiro, foram forçados a sair de Angola. Depois, o incêndio expulsou-os da Rua do Ouro. A câmara ajudou à situação, acrescenta o joalheiro, que hoje vende mais peças de ouro e prata do que pedras preciosas, apesar de as prateleiras da joalharia estarem repletas de gemas e quartzos. “Isso foi chão que deu uvas.”
Depois de descobrir, em 2009, que já não havia FEARC nem FRRC, João voltou a uma intensa troca de correspondência com a câmara, em busca de soluções para o problema. Tentou obter crédito bancário com o apoio da autarquia, sem sucesso. Tentou comprar a loja pagando em 180 prestações, mas o município nunca respondeu à proposta. “Que culpa temos nós?”, questiona João, neste momento o único membro da família Veiga empenhado no assunto, uma vez que o pai tem atualmente 91 anos e sofre de uma doença degenerativa psiquiátrica. Os irmãos, diz, já desistiram. Para ele, os problemas começaram todos no momento em que a câmara apresentou aquele valor de 275 mil euros. “Isto foi má-fé. Porque é que fizeram isto? Não consigo perceber.”
À medida que o tempo passava, João ia ficando mais velho e cada vez mais impossibilitado de obter um crédito bancário. Entretanto, em 2011 e 2012, a autarquia conseguiu convencer dois antigos proprietários a comprar quatro frações do Confepele. A eles, a venda foi feita pelos valores estabelecidos em todas as tabelas e propostas. O Observador não conseguiu chegar à fala com estas pessoas.
Entre janeiro e julho de 2014, a autarquia vendeu em hasta pública algumas das frações do Confepele. Depois, em outubro, levou a leilão mais dez frações, entre as quais se contam as cinco da família Veiga. A loja onde funcionou em tempos a Coralina Jóia foi vendida a uma imobiliária chinesa, que está fechada há alguns meses.
Uma ferida por sarar
O número 195 da Rua do Ouro já não é a ponta-de-lança de um império de pedras preciosas na Europa. Já não é há muitos anos. Ainda assim, na joalharia onde trabalha, a menos de cem metros do local, João Veiga ainda sonha em regressar àquilo que foi a Coralina. Por isso tem batalhado todos estes anos e por isso continuará a batalhar, mas também tem os seus limites. Em março, quando a assessora do município lhe disse: “Porque é que não mete a câmara em tribunal?”, ele respondeu: “Com que dinheiro? Não ando aqui a roubar”.
Antes desse último encontro, João tentou impedir que a hasta pública em que a loja foi vendida fosse por diante. A câmara recusou através de uma carta com seis páginas, em que rebatia os argumentos dos Veiga. “Importa salientar que V. Exas., enquanto titulares do direito de recompra, sempre manifestaram interesse em exercer o respetivo direito em condições mais favoráveis que as previstas no contrato promessa”, escrevia António Furtado, do Departamento de Política de Solos e Valorização Patrimonial da autarquia. João Veiga afirma que isto é mentira.
Mais à frente, o responsável argumenta que, em 2012, a família foi convocada para assinar um contrato de compra e venda e não compareceu, nem enviou a documentação solicitada. “Nestes termos, entendemos que a não comparência na data marcada para a celebração dos contratos de compra e venda (…) teve como consequência a caducidade do direito de recompra”, lê-se. João Veiga respondeu que esta argumentação não faz sentido, uma vez que até àquela data nunca lhe foi dada oportunidade para exercer o direito de preferência na recompra do imóvel.
Na mesma carta, a câmara descarta responsabilidades pela extinção do FEARC e do FRRC (que eram da competência do Estado) e recusa que os atrasos tenham tido influência direta no desfecho desta história.
Vinte e sete anos depois do incêndio no Chiado, há uma ferida que ainda não está sarada. “Que justiça é que há neste país?”, pergunta, com ar incrédulo e triste, João Cruz Veiga, atrás do balcão de uma joalharia que já teve melhores dias. Lá fora, os turistas fazem fila para o Elevador de Santa Justa.