A corda rompeu entre Governo e Bloco de Esquerda no último Orçamento do Estado, mas o desentendimento pode ter solução desde que o Governo seja mais “humilde” desta vez. Na Vichyssoise, programa da rádio Observador, o dirigente e deputado bloquista Jorge Costa — que até junho vai estar a substituir Pedro Filipe Soares como líder parlamentar — explica que não gosta de pensar na relação com o Governo como um “divórcio” que pode justificar uma “reconciliação” e dedica termos menos românticos a um Executivo que considera “arrogante”. Mas as críticas não são dirigidas apenas a António Costa: nas entrelinhas ficam ataques ao PCP, uma vez que, se a “esquerda toda” for mais “exigente” desta vez, sugere o bloquista, o Governo será mesmo obrigado a negociar.
Do outro lado do espectro político não acredita que venham ameaças sérias — nem que o eleitorado do centro queira correr o risco de ver André Ventura sentado no Conselho de Ministros –, mas antes uma “agressividade verbal” e uma agenda política de extrema-direita que pode contagiar o PSD e que deixa “corados” os seus deputados. Incomodado, assume, ficou também o Bloco com o caso da acusação de violência doméstica a um deputado, Luís Monteiro, e que veio “prejudicar a imagem do próprio” partido — mas aconselha atenção aos perigos das “ficções” do Twitter.
Para descrever o clima entre Governo e Bloco, António Costa falou dos casais que se separam e voltam a juntar-se. O Bloco vai usar a convenção para anunciar um divórcio litigioso ou para dizer que há hipóteses de reconciliação?
Não é caso de divórcio nem de reconciliação, o debate de um Orçamento do Estado é sobre grandes opções políticas e sobre compromissos e isso foi o que o BE disse ao PS durante a negociação orçamental passada, no Orçamento para 2021, definindo objetivos muito claros, que são para nós condições para uma resposta capaz às dificuldades que o país atravessa no contexto da crise económica. E é necessário também que o Governo cumpra os compromissos anteriores. Há dois problemas aqui: um de credibilidade da negociação, na medida em que o Governo falhou a cumprir medidas acordadas com os partidos de esquerda e com o BE em particular, e no OE para 2021 recusou-se a incluir aspetos essenciais para nós e para o país.
Por haver o tal problema de credibilidade e confiança das negociações anteriores, é crível que na próxima negociação do Orçamento exista essa hipótese de reconciliação?
O Orçamento do Estado vai ser negociado, da parte do Bloco, com os mesmos critérios com que negociámos o anterior, porque os problemas que então denunciámos não se encontram resolvidos. O que a vida demonstrou é que eles eram essenciais. A evolução da vida económica e das dificuldades sociais demonstrou que as propostas que o PS recusou na negociação do Orçamento anterior eram importantes e necessárias. Em algumas delas o PS até chegou a ter de mudar de posição ao longo da execução orçamental.
Em quais?
Na questão dos apoios sociais, em que o Governo anunciou com altas parangonas que estava a criar uma nova prestação capaz de responder e salvaguardar que a maior parte das pessoas com fortes quebras de rendimento ficariam acima do limiar da pobreza, nós avisámos que isso não ia acontecer e foi isso mesmo que aconteceu. O Governo foi obrigado a corrigir, de modo muito insuficiente, a sua proposta. A mesma coisa no Novo Banco, toda a chantagem e susto que o Governo procurou instalar sobre esta questão, ao dizer que era uma bomba atómica que estava a ser lançada sobre o sistema financeiro, está agora à vista de todos que não tinha consistência.
Já percebemos que o Bloco vai para negociação, mas não há grande expectativa de ficarem lá sentados à mesa com o Governo durante muito tempo, é isso?
Quando foi o encerramento do debate orçamental para 2021, Catarina Martins disse que os pontos avançados pelo Bloco eram necessários e que isso ia demonstrar-se ao longo do ano — e foi isso que aconteceu. Não conseguimos desta vez, mas vamos conseguir na próxima negociação orçamental. É com este espírito que vamos à negociação com o PS.
A realidade ao dar essa razão ao BE leva a que o partido parta com mais força para essas negociações?
Evidentemente, as pessoas e o Governo sabem que nós tínhamos razão. Está na hora de o Governo fazer um exercício de humildade, por um lado, e também de diálogo e abertura.
Na última negociação, o Governo contou com o PCP para isso. O Presidente da República disse ontem que acredita que o Orçamento para 2022 vai ser aprovado com o mesmo apoio que o anterior. Este desentendimento nas Grande Opções do Plano significa que afinal o PCP pode vacilar ou vai continuar ao lado de António Costa para o que der e vier?
Não sou dirigente do PCP e não vou dizer quais são as minhas expectativas face à forma como o PCP vai conduzir a negociação orçamental.
Mas isso pode dar algum conforto a António Costa e pode-se notar na atitude do Governo que pode não precisar de negociar com o BE…
A nossa postura é independente da dos outros partidos. Temos objetivos políticos que consideramos importantes para o país, importantes para a classe trabalhadora e são essas as vítimas da crise e que nós representamos. Vamos à negociação com essa transparência. A negociação anterior, se toda a esquerda tivesse sido firme, teria sido possível alterações importante na legislação laboral. Teria sido possível impor ao Governo uma prestação social consistente que garantisse que ninguém ficava para trás nem abaixo do limiar da pobreza no contexto da crise e das restrições à economia. Isso não aconteceu, essas medidas não foram tomadas e nós fizemos um balanço da negociação que nos levou ao voto contra o Orçamento, isso não muda a nossa posição negocial.
Quando o Bloco decidiu o voto contra, sabia que do outro lado podia existir uma crise política. Ou havia uma solução alternativa?
Nós vemos a negociação orçamental como uma necessidade decorrente da existência de um Governo minoritário, que ao tomar posse está a reconhecer a necessidade de negociações, cedências e aproximações a outras forças para assegurar uma maioria no Parlamento que torne possível a governação. Não pode governar como se tivesse maioria absoluta. O PS tem tido a arrogância — para não usar termos hiperbólicas — e sentimento de autossuficiência que não corresponde à escolha democrática das pessoas. O PS não é autossuficiente porque os portugueses não quiseram que fosse, não lhe deram uma maioria absoluta, e está obrigado a negociar. E das duas uma: ou negoceia com a direita, para governar com medidas de direita, ou quer o apoio da esquerda e terá de ceder em medidas de esquerda. E penso que esse exercício vai ser feito assim que o PS tenha essa necessidade efetiva, e que toda a esquerda imponha à negociação patamares exigentes.
Se não se chegar a esse ponto ótimo vale mais avançar para umas eleições antecipadas ou vale um orçamento em duodécimos por tempo indeterminado?
Não vemos que faça qualquer sentido o fantasma da crise política. Todos os indicadores que temos sobre intenções de voto e expectativas políticas da população são de que o status quo eleitoral se mantém basicamente inalterado desde as eleições legislativas, portanto o que se trata aqui é de ter sentido de responsabilidade e coragem para medidas a favor das pessoas. Esse é o ponto. Porque há maioria na Assembleia da República para garantir medidas de proteção em torno de quem está mais vulnerável nesta crise, de medidas de transparência e exigência sobre o sistema financeiro.
Às vezes também há maiorias variáveis. No PS e no Governo há a ideia de que o Bloco, quando é conveniente, negoceia ou conversa pelo menos com o PSD. Isso acontece, e tem acontecido de forma mais frequente?
Não, o Bloco não faz negociações com o PSD.
No Parlamento não conversam para concertar posições quando acontecem as chamadas coligações negativas?
O termo coligação negativa é estritamente antiparlamentar. A Assembleia não é o Governo, e uma maioria que se forme na Assembleia da República é apenas a Assembleia da República a funcionar. Quem tiver respeito pelo sistema parlamentar não deverá qualificar dessa forma as decisões que a AR livremente e soberanamente toma. Não há negociações entre o BE e os partidos de direita, o que há é em momentos particulares votações em que as posições coincidem.
Mas não tem um cordão sanitário à volta do PSD.
Não fazemos concertações de posições com a direita.
Isso seria só a democracia a funcionar… ou são acasos?
Não, não são acasos, são posições políticas. O PSD neste momento tem uma posição sobre a necessidade de se conhecer as contas do Novo Banco para se autorizar uma injeção, na sequência do que o BE tem dito há tanto tempo — não foi preciso negociar nada para o PSD ter esta posição, ele simplesmente tem-na. Portanto há uma maioria muito expressa na AR neste sentido. O que tem acontecido é que muitas vezes o PSD afirma posições — estou a lembrar-me das carreiras dos professores ou da descida do IVA da eletricidade — em que parece que há uma maioria na AR positiva para a vida das pessoas mas na hora da verdade e do voto o PSD já lá não está.
O Governo já deixou claro que não quer fazer depender do Parlamento uma nova injeção no Novo Banco. O tema vai voltar a ser uma linha vermelha para o BE no próximo Orçamento?
Está muito claro que nem foi cumprido o que está no próprio contrato em matéria de fiscalização e acompanhamento das decisões tomadas pelo Conselho de Administração; nem o dinheiro que está a ser colocado nestas injeções é uma contribuição dos bancos, mas sim receita fiscal, por isso são os contribuintes que estão a pagar as prestações que os bancos entregam; que a gestão foi descontrolada e não foi devidamente acompanhada; e que esta injeção não se justifica sequer para cumprir as exigências europeias, que foram alteradas no contexto da pandemia.
Hoje o Banco Central Europeu exige rácios de capital mais reduzidos, e esses o Novo Banco já cumpre, o que faz com que esta nova injeção que o Governo se prepara para fazer seja um bónus ao Novo Banco que utilizará para o que bem entender, mas que não será certamente para cumprir rácios europeus. A coisa é tão escandalosa que já temos no Parlamento os partidos de direita, que foram os grandes obreiros desta catástrofe do Novo Banco no momento em que optaram pela resolução em 2014, do lado do CDS a dizer que o contrato é ilegítimo e deve ser abandonado e do lado do PSD a dizer que mais valia termos mantido o controlo público do banco. A coisa está de tal maneira que até os partidos de direita repetem o que o BE vem dizendo há muito tempo.
A derrota de Marisa Matias serviu de alerta para o rumo a seguir pelo BE?
São eleições muito específicas e toda a vida se verificou, nos diversos partidos, que os candidatos presidenciais obtêm muitas vezes resultados muito diferentes dos que os partidos têm, e das próprias intenções de voto. Nas últimas presidenciais, as sondagens à boca das urnas atribuíam ao BE o dobro das intenções de voto daqueles que a Marisa acabou por ter enquanto candidata presidencial. O resultado foi fraco e o BE assumiu-o transparentemente, cremos que isso resultou de uma perceção sobre o desempenho de Marcelo Rebelo de Sousa que aliás foi transversal a todos os partidos…
Marcelo pode ter sido um eucalipto também para o BE?
Sim, pensamos que terá havido uma parte do eleitorado do BE que se reviu numa certa atitude do Presidente em termos públicos, da forma como não hostilizou nem impediu que se tivesse formado um acordo entre os partidos da esquerda, e olhando para trás não se identificam iniciativas substantivas de oposição a isso…
Marcelo não servia de cola. Catarina Martins chegou a falar numa cheguização do PSD. Esse reforço do Chega não justifica que a esquerda se junte para encontrar uma alternativa?
Uma coisa são as presidenciais, em que não acredito que uma candidatura única à esquerda de Marcelo tivesse tido resultados muito diferentes dos que foram obtidos por estas três candidaturas. Pelo contrário: cada uma representou, à sua maneira, espaços políticos que não se reviam em Marcelo e que quiseram ter uma expressão própria. Essa diversidade levou certamente mais gente às urnas.
Mas a esquerda tem ou não essa responsabilidade de oferecer uma alternativa?
O que está à vista é que existe uma maioria muito substancial na atual Assembleia e se olharmos para as intenções de voto está até reforçada relativamente às últimas eleições. A direita não tem maioria. Não vai ter maioria. O Chega não vai ser uma força de Governo. O que temos é a direita a deixar-se arrastar pela extrema-direita, a radicalizar-se em torno da sua agenda política, e até a adotar os próprios representantes e expoentes públicos desta política do ódio — veja-se a candidatura do PSD na Amadora — como seus. Esse é um problema que a direita tem, de cheguização. Mas quanto mais cheguizada estiver, menos expectativas de poder terá, porque todo o eleitorado central não gostará de saber que corre o risco de ao domingo votar em Rui Rio e à segunda-feira ter André Ventura no conselho de ministros. Não me parece nada que a direita seja uma ameaça desse ponto de vista; há um perigo que é a agenda política, a cultura política, a dinâmica da mentira, da desinformação, da agressividade verbal… Na semana passada, no Parlamento, os deputados do PSD estavam mais ou menos corados enquanto ouviam aquilo, tivemos o deputado da extrema-direita a dizer, a propósito de Odemira, que estes imigrantes são um perigo para as nossas mulheres e os muçulmanos são um perigo para Portugal. No dia a seguir estava Rui Rio a dizer que não se pode ostracizar este discurso.
Catarina Martins é líder desde 2014. Não está na hora de se promover uma renovação do partido?
Catarina Martins tem tido um trabalho como coordenadora e principal rosto do partido que é reconhecido unanimemente, quase, dentro do BE. Algumas das moções que se apresentam como alternativa reconhecem na Catarina Martins a pessoa que deve continuar a protagonizar a apresentação das alternativas do BE na sociedade. Não faz qualquer sentido prescindirmos de uma figura que é hoje das mais prestigiadas da esquerda em Portugal e que tem tido um papel importantíssimo em todo este ciclo político em que tem estado à frente do Bloco.
Essas moções críticas da direção atual falam num excesso de centralismo e numa obsessão por lugares e cargos. O BE aburguesou-se?
O Bloco é um partido político que tem uma estrutura democrática, aliás que não pede meças a nenhum outro partido em Portugal. O BE tem sistemas de eleição para as suas convenções super respeitadoras da pluralidade e da expressão das minorias. isso sucede depois em toda a estrutura de direção, desde a mesa nacional à comissão política. São todas elas estruturas composta de forma proporcional entre as diversas sensibilidades e opiniões que se expressam no BE. Não há inerências, não há cargos indicados pelo secretário geral, não há unanimidades como existem noutros partidos de esquerda em Portugal.
Tem-se falado numa vaga de desfiliações de que se tem falado nas redes sociais existe mesmo ou é só fumaça?
Fiquei tão pasmado com essas alegações das redes sociais que pedi os números da nossa base de dados sobre quanto aderentes entraram e quando saíram nos últimos tempos. E desde o início do ano entraram no BE aproximadamente 700 pessoas, saíram 150 e dessas só 10 é que saíram desde o início deste mês. Essa vaga é uma ficção do Twitter e é preciso tem muito cuidado com elas.
Essas 150 é um número muito elevado para o que é habitual?
Não, é precisamente em linha.
Neste momento é líder parlamentar e teve de gerir uma denúncia grave e uma acusação de violência doméstica a um deputado, de violência doméstica. O Bloco geriu bem o processo ou tentou encobrir a situação?
O Bloco reagiu como tem de reagir em qualquer acusação como esta, a pessoa que se queixou foi acompanhada por militantes do BE que a encaminharam para as instâncias que dão apoio a pessoas vítimas de violência doméstica. O BE olhou para este caso com o mesmo respeito pelas alegações de qualquer vítima, mas não é uma polícia de investigação nem um tribunal — e o Twitter também não é — e a única forma de apreciar um crime tão grave como este, que dá pena de prisão, é fazê-lo na justiça. Não podemos dar como culpado e prescindir da presunção de inocência quando se trata de um crime desta natureza.
Não teme que o facto de Luís Monteiro deixar de ser candidato à Câmara de Gaia seja visto como uma assunção de culpa?
O que Luís Monteiro comunicou foi que mantém todas as responsabilidades partidárias que hoje tem mas que, em função de tudo isto que aconteceu e muito prejudicou a imagem dele e a própria imagem do BE, não tem condições de se pôr numa posição que podia ser instrumentalizada como forma de ataque ao BE. Portanto, tanto no caso da candidatura autárquica e da Convenção e dos futuros órgãos do Bloco, o Luís prescindiu de se candidatar a qualquer um deles. Mantendo, desse ponto de vista e não dando como culpado do que vem sendo acusado nas redes sociais, as responsabilidade atuais.
Agora o momento dos desafios, o Carne ou Peixe… É jornalista de profissão. Preferia colaborar com o “Avante!” ou ter um contrato precário na RTP?
Preferia ter um contrato precário na RTP porque sou de outro partido e não gostava de trabalhar no jornal do PCP. Além disso valorizo imenso o serviço público de rádio e de televisão, penso que precisa de um grande reforço, de preferência sem precariedade.
Quem preferia levar como convidado à convenção do BE: António Costa ou Pedro Nuno Santos?
O BE convida o PS, portanto qualquer um deles pode lá aparecer. Mas sou amigo do Pedro Nuno há 30 anos e, portanto, gosto sempre de o encontrar.
A quem preferia pedir dinheiro emprestado: João Galamba ou João Leão?
Espero que não ter de pedir a ninguém, mas se tiver mesmo de ser acho que vou recorrer a um banco.
Quem preferia levar a um concerto no Popular de Alvalade: Catarina Martins ou Francisco Louçã?
Nunca os vi a cantar e acho que vou prescindir disso…