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"Os idos de março", ou a morte de Júlio César, no senado romano, numa pintura de Vincenzo Camuccini (1771-1844)

Corbis via Getty Images

"Os idos de março", ou a morte de Júlio César, no senado romano, numa pintura de Vincenzo Camuccini (1771-1844)

Corbis via Getty Images

Júlio César, a guerra civil e a vitória de Octávio: como a república romana se transformou em império

"Imperador de Roma" é o mais recente livro de Mary Beard. O Observador faz a pré-publicação de um excerto do capítulo que explica as origens do regime que mudou o mundo.

Génios militares e tiranos para com o próprio povo. Visionários ou assassinos. Figuras históricas e, ao mesmo tempo, estrelas pop. Os imperadores de Roma conseguiram juntar todas estas faces numa só e ainda hoje são estudados, condenados e reverenciados. O novo livro “Imperador de Roma” propõe uma análise sobre as várias dimensões destas figuras da história clássica: como surgiram, que mundo era o que as criou, o que fizeram e como, até onde chegaram e como caíram em desgraça.

Mary Beard é a autora. Investigadora e escritora, professora e apresentadora de programas de televisão sobre história, responsável pela secção “clássica” do suplemento literário do jornal britânico The Times, é uma das autoridades da matéria e este “Imperador de Roma” foi publicado originalmente em 2023.

Neste excerto, regressamos ao final da República, ao ambiente que levou à revolta liderada por Júlio César, passando pela guerra civil, o assassinato trágico e lendário, a transformação em império e a chegada daquele que ficou na história como oficialmente o primeiro imperador de Roma. O livro é publicado a 7 de março, pela editora Crítica.

A capa de "Imperador de Roma", de Mary Beard, na edição portuguesa da Crítica

Ao longo do início do século I a.C., Roma assistiu a uma série de antecedentes da autocracia. Um dos homens importantes dos anos 80, Lúcio Cornélio Sila, marchou com o seu exército sobre Roma, instalou-se como “ditador” e impôs um programa de reformas políticas conservadoras, antes de renunciar dois anos mais tarde e, depois, morrer na cama. De acordo com todos os relatos, tratou-se de uma doença fatal bastante grave, mas, mesmo assim, talvez um fim melhor do que merecia, considerando os esquadrões da morte que deixara à solta na cidade. Apenas uma década mais tarde, Cneu Pompeu Magno (Pompeu, o Grande) adotou um caminho ligeiramente mais subtil para o que era quase um poder totalitário. Foi ele que, mediante uma votação dos cidadãos, ficou incumbido de erradicar os piratas, com um enorme orçamento e uma posição hierárquica superior a todos os outros oficiais romanos na região oriental do Mediterrâneo, por um período de três anos. (Na realidade, precisou de apenas três meses para concluir a tarefa, ao que se seguiu um mandato ainda mais longo, com um orçamento maior e mais poder, para combater outros inimigos de Roma). Acabou por ser nomeado cônsul solitário, sem um colega, o que constituiu uma flagrante violação dos princípios republicanos, por muito insignificante que possa parecer nos dias de hoje. Investiu avultadas somas em grandiosos edifícios públicos em Roma, muito à semelhança do que fizeram autocratas posteriores e, ocasionalmente, viu a própria cabeça em moedas cunhadas por cidades fora de Itália, um indicador-chave do poder monárquico na Antiguidade e ainda nos tempos que correm.

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Porém, o ponto de viragem ocorreu em meados do século I a.C., com Júlio César, que esteve na cúspide entre a espécie de democracia de Roma e o governo dos imperadores. A carreira de César começou de uma forma bastante normal para um membro da elite de Roma, embora escritores posteriores pensem que ele acalentou secretamente presunçosas ambições desde tenra idade. Uma história apócrifa imagina-o, na casa dos 30 anos, melancólico, de pé, diante de uma estátua de Alexandre, o Grande (a quem Pompeu pediu emprestado o nome “Grande”), e lamentando-se do seu próprio começo lento em comparação com o precoce rei da Macedónia. Mas depois de um comando militar de sucesso (e tremendamente brutal) na Gália, que conseguiu prolongar até oito anos sem interrupção, seguiu o exemplo de Sila. Em 49 a.C., marchou com o seu exército sobre Roma, “cruzando o Rubicão”, que assinalava a fronteira entre a Gália e Itália, e proferindo a famosa frase, ainda hoje em voga, de “passar o ponto de não retorno”. Na guerra civil que se seguiu, os seus inimigos foram liderados por Pompeu, que estava agora, para variar, a representar o papel do tradicionalista conservador, acabando decapitado nas costas do Egito, onde foi procurar refúgio. César aproveitou a sua vitória para assumir efetivamente o controlo exclusivo do governo romano. O Senado nomeou-o “ditador” e, em 44, tornou-se “ditador perpétuo”.

César definiu o padrão futuro na forma como morreu, assassinado, em 44 a.C., pouco depois de ser nomeado "ditador perpétuo". Isto foi um alerta para os seus sucessores e um modelo para o assassínio político que se estendeu até ao mundo contemporâneo.

Porém, de certa forma, César continuava de olho na República. A sua carreira começara no âmbito dos tradicionais cargos eleitos de curto prazo. Até a sua “ditadura” tinha, pelo menos, ligações subtis a um cargo temporário antigo criado para enfrentar emergências públicas, embora, desde Sila, se aproximasse cada vez mais do nosso atual significado para o cargo. É por estes motivos que, recentemente, a maioria dos historiadores apresentou uma tendência para tratar César como o último fôlego da velha ordem. Mas quando, no século II d.C., o biógrafo Suetónio (Caio Suetónio Tranquilo é o nome completo) estava a lavrar o seu Vidas dos Césares sobre os primeiros imperadores romanos, optou por o começar com Júlio César, ocupando o número um de doze, o principal fundador da dinastia imperial. Para ilustrar melhor o argumento, todos os soberanos romanos depois dele adotaram o nome “César”, que até então fora um apelido romano vulgar, no âmbito dos seus próprios títulos oficiais – numa tradição que continuou até aos Kaisers e czares. E foi exatamente assim que Plínio tratou o imperador ao longo do seu discurso de agradecimento, não por “Trajano”, mas “César” (palavra que utilizou mais de cinquenta vezes, em comparação com “Trajano”, que utilizou apenas uma).

É fácil compreender porque foi atribuído a César este papel de fundador. Embora menos de quatro anos separassem a sua vitória sobre Pompeu e a sua própria morte em 44 a.C. (e embora raramente estivesse na cidade de Roma durante mais de um mês de cada vez enquanto aplacava outros focos da guerra civil no estrangeiro), César conseguiu mudar o rosto da política romana de formas radicais e controversas que determinaram o padrão para os imperadores que se lhe seguiram. Tal como estes, controlou as eleições para os altos cargos, nomeando alguns candidatos que, depois, os eleitores se limitavam a aprovar. Foi mais longe do que Pompeu ao mandar cunhar moedas com a sua cabeça na própria Roma, não só no estrangeiro (o primeiro romano a fazê-lo em vida), e dedicou-se a inundar a cidade e o mundo mais vasto com os seus retratos, em números inauditos: estavam planeados centenas, se não milhares. Além disso, exerceu um poder sem precedentes, em novas áreas, aparentemente de forma desenfreada. A observação sarcástica de Cícero sobre as estrelas do céu serem obrigadas a obedecer-lhe fora uma referência à sua arrojada reforma do calendário romano, ao mudar a duração do ano e dos meses, introduzindo efetivamente um ano “bissexto”, tal como ainda hoje se utiliza. Apenas os autocratas todo-poderosos – ou, como na França do século XVIII, os conventículos revolucionários – reclamam o controlo do tempo.

O cônsul Lúcio Cornélio Sila, em combate — um dos exemplos do autoritarismo do final da república romana

Além disso, César definiu o padrão futuro na forma como morreu, assassinado, em 44 a.C., pouco depois de ser nomeado “ditador perpétuo”. Isto foi um alerta para os seus sucessores e um modelo para o assassínio político que se estendeu até ao mundo contemporâneo (John Wilkes Booth escolheu a data do assassínio de César – “os idos de março”, o dia 15 do mês no nosso calendário – como palavra de código para o assassínio planeado de Abraham Lincoln, em 1865). A verdade é que, graças a William Shakespeare e outros, os assassinos acabaram tratados de forma bastante generosa pela História. Previsivelmente, foram um grupo que reuniu lutadores pela liberdade de elevados princípios, indivíduos descontentes e egoístas que ambicionavam o poder, os quais fizeram emboscadas e mataram o ditador durante uma reunião do Senado, deixando o seu corpo sem vida defronte da estátua de Pompeu. Marco Júnio Bruto, que assoma como um digno patriota em Julius Caeser, de Shakespeare, foi, provavelmente, um dos que tinha interesses mais egoístas do grupo. Possuía um chocante registo de explorar pessoas no Império Romano. Reconhecidamente, emprestou dinheiro a uma cidade no Chipre com juros a uma taxa de quarenta e oito por cento, quatro vezes o máximo legal, e mandou os seus agentes cercar a câmara da assembleia local para recuperar o que lhe era devido, deixando cinco conselheiros morrer de fome durante o processo. Dois anos depois do assassínio de César, não obstante a sua oposição à monarquia, mandou retratar a própria cabeça nas moedas que cunhou para pagar aos seus soldados.

Mais do que isso, o sucesso dos assassinos na eliminação da vítima (que é, muitas vezes, a parte mais fácil) foi amiúde ofuscado pela inexistência de qualquer plano em relação ao que fazer a seguir. Seguiu-se mais de uma década de guerra civil, durante a qual os apoiantes de César, acima de tudo, se viraram contra os assassinos, e depois uns contra os outros. Em 31 d.C., redundara num confronto entre duas fações principais: de um lado, o capanga de César, Marco António, agora aliado (e não só) da famosa rainha Cleópatra, do Egito; e do outro, o sobrinho-neto de César, Octávio, que também se tornara oficialmente seu filho, através de adoção póstuma, no testamento de César (uma prática romana bastante comum). A batalha final travou-se no mar, ao largo do norte da Grécia, perto do promontório de Áccio, imediatamente a sul da ilha de Corfu. A batalha de Áccio, como ficou conhecida, foi celebrada de forma extravagante em propaganda posterior como a heroica e decisiva vitória de Octávio, e o glorioso início de uma nova era. De facto, venceu mais por motivos relacionados com a deserção e a deslealdade do que pelo heroísmo. Um general de António revelou os planos de batalha ao inimigo, e, na reconstrução mais plausível, Cleópatra regressou ao Egito com os seus navios e o seu tesouro quase antes de a batalha começar, seguida de perto por António. Ainda hoje se debate até que ponto essa partida foi desonrosa, mas muitos autores antigos mostraram-se acérrimos ao retratar Cleópatra como uma rainha cobarde que não foi capaz de enfrentar o combate e simplesmente fugiu. Porém, quaisquer que fossem as circunstâncias, Octávio foi deixado como o único líder do mundo romano, não tardando a ser o primeiro imperador de Roma. Por outras palavras, pelo menos de forma indireta, os assassinos potenciaram precisamente aquilo que alegaram estar a combater: o poder permanente de apenas um homem.

Os romanos ainda se orgulhavam de se terem livrado dos seus lendários reis séculos antes e não tencionavam receber de volta esses tiranos. Desde o início que a maioria dos imperadores revelara uma imensa vontade de reforçar ao público local que, fossem o que fossem, não eram reis.

As roupas novas do imperador

O historial de Octávio durante os conflitos após a morte de Júlio César situa‑se algures entre o ilegal, o desumano e o chocantemente sádico. Com apenas 19 anos em 44 a.C., criou aquilo que foi, na realidade, a sua própria milícia privada, e ao longo da sua aliança temporária com Marco António, juntos, iniciaram um reino de terror em Itália: uma série de assassínios com patrocínio oficial, com a finalidade conjugada de castigar os inimigos de César, ajustar velhas contas e angariar fundos com a venda dos bens das vítimas. Propaganda hostil chegou mesmo a alegar que, em certa ocasião, Octávio arrancara os olhos de um inimigo com as próprias mãos. Como conseguiu transformar a sua imagem desse jovem rufião na de um estadista responsável e fundador de um sistema de governo que (para o melhor ou para o pior) duraria séculos, é um dos maiores enigmas da história de Roma. Foi, porém, uma transformação e uma renovação assinalada por uma astuta mudança de nome.

Em 27 a.C., apenas alguns anos após a derrota final de António e Cleópatra, e depois do seu regresso a Roma, Octávio recebeu o epíteto de “Augusto” – presumivelmente por sua própria sugestão. Segundo vários relatos antigos, ponderara a possibilidade de mudar o nome para «Rómulo», como o lendário fundador da cidade de Roma, mas foi dissuadido pelas embaraçosas associações (afinal de contas, ao matar o seu irmão Remo, Rómulo era também o lendário fundador da guerra civil romana). “Augusto” era um nome mais seguro: um nome completamente novo, inventado e convenientemente descomprometido, que significava algo como “Reverenciado”. O nome colou. Futuros imperadores romanos incluíram “César” e “Augusto” entre os seus títulos. E o calendário ocidental continua a celebrá-los juntos, como julho (de Julius César) e agosto. Os antigos meses romanos de Quinctilis e Sextilis foram alterados em sua honra e, mais de dois mil anos mais tarde, ainda se mantém a homenagem.

O momento da grande mudança de Roma, quando César atravessa o Rubicão, que levou ao início da guerra civil

As grandes modificações constitucionais são quase sempre mais caóticas no momento em que ocorrem do que ao contemplá-las retrospetivamente. Não se sabe que plano Octávio engendrara quando regressou a Roma, mas o mais provável era não incluir muito mais do que ocupar o lugar de Júlio César, evitando, em simultâneo, o seu funesto fim. Histórias do novo soberano a usar armadura por debaixo da toga – uma roupa volumosa e desconfortável – sugerem o seu medo de ser assassinado. Só podemos conjeturar sobre eventuais segundas intenções que pudesse ter (escritores romanos sugeriram que houve ocasiões em que ponderara acabar de vez com o poder pessoal), ou sobre as ideias luminosas que não terão sido postas em prática, ou que foram acolhidas com violenta oposição e convenientemente postas de parte. Nem sequer compreendemos bem como Octávio/Augusto optou por descrever o seu próprio cargo no Estado.

Atualmente, aludimos aos imperadores romanos remontando à palavra latina imperator ou “comandante” – um antigo título romano dado aos vencedores militares e outorgado, por convenção, a Augusto e aos seus sucessores (quer fossem ou não vitoriosos). Mas havia um leque de alternativas, com ênfases muito diferentes, que eram adotadas com mais entusiasmo, ou evitadas. Era muito menos provável que um “imperador” romano se referisse a si mesmo como imperator do que como princeps, que está na origem da palavra “príncipe”, embora, em latim, não significasse muito mais do que “líder”. Porém, “rei” (ou rex) já era uma questão mais complicada. Na metade oriental do império, onde as pessoas falavam muito mais grego do que latim, os imperadores eram geralmente tratados por “reis” (basileis, em grego). Porém, isso raramente acontecia em Roma, onde os romanos ainda se orgulhavam de se terem livrado dos seus lendários reis séculos antes e não tencionavam receber de volta esses tiranos. Desde o início que a maioria dos imperadores revelara uma imensa vontade de reforçar ao público local que, fossem o que fossem, não eram reis (outro bom motivo para Octávio não querer o nome “Rómulo”, o fundador de Roma, mas também primeiro rei). Contudo, isso não impediu que alguns críticos cínicos antigos se questionassem se realmente havia alguma diferença para além da fachada, entre um princeps, um imperator, um Caeser e um rex. Conforme Tácito sombriamente observou no século II d.C., nas primeiras palavras da sua obra Anais, uma história dos primeiros imperadores: “Desde o início que Roma é governada por reis.”

O mais certo é nunca conseguirmos reconstruir pormenorizadamente as improvisações, os retrocessos e as reviravoltas por intermédio dos quais Augusto e os seus amigos e colegas criaram um cargo para um imperador num novo sistema de governo. Não estavam, é claro, a inventar nada de novo, e é bem possível que tenham lido como os filósofos políticos gregos haviam definido os reis e a realeza, boa e má.

Todos os historiadores do mundo romano que se dedicaram, cinicamente ou não, ao reinado de Augusto, presumiram que o imperador estaria a trabalhar numa espécie de plano mestre. Quer escrevessem duas décadas ou dois séculos mais tarde (não havendo nenhuma narrativa digna de nota da própria época), esconderam os complexos processos da improvisação debaixo da imagem autoritária de um pai fundador a estabelecer um novo regime autocrático para o futuro. Dião Cássio, em cuja volumosa história de Roma se pode ler sobre as tentativas de mudança de sexo de Heliogábalo, dedicou, inclusive, um tomo inteiro dos seus oitenta livros (cerca da extensão de um capítulo atual) a um debate formal em que o novo soberano decidia como deveria governar o Estado. Neste debate imaginário, passado apenas dois anos antes de Octávio mudar o nome para Augusto, participavam dois dos seus amigos a discutir sobre os méritos relativos da democracia e da autocracia (as virtudes da igualdade contra o domínio do mais apto) e a comparar os prós e os contras práticos do poder pessoal, que foi evidentemente a fação vencedora. Estes aspetos incluem desde o planeamento financeiro e a necessidade de bons conselheiros (ter a certeza de que não são demasiado jovens) às ansiedades pessoais do soberano, à ameaça de uma conspiração e à prevenção da lisonja insidiosa e corruptora. Trata-se de uma imagem reveladora de como um senador como Dião, em inícios do século III d.C., podia avaliar o governo imperial e que, cem anos antes, Plínio teria reconhecido imediatamente. No entanto, enquanto relato de como o sistema romano do poder pessoal deveras começou, é pura fantasia.

O mais certo é nunca conseguirmos reconstruir pormenorizadamente as improvisações, os retrocessos e as reviravoltas por intermédio dos quais Augusto e os seus amigos e colegas criaram um cargo para um imperador num novo sistema de governo. Não estavam, é claro, a inventar nada de novo, e é bem possível que tenham lido como os filósofos políticos gregos haviam definido os reis e a realeza, boa e má – embora seja um mistério o interesse que deveras lhe dedicaram. Porém, graças a um desses extraordinários, e felizardos, sobreviventes da Antiguidade, temos uma retrospetiva de O Que Fiz pela mão do próprio imperador. Trata-se de um breve “ensaio” ou “manifesto” de cerca de uma dúzia de atuais páginas, redigido imediatamente antes da sua morte em 14 d.C., aos 75 anos, e preservado em pedra, inscrito por todas as paredes de um antigo templo romano naquela que é hoje a Turquia.

O Que Fiz

Chegam até nós vários livros escritos por soberanos romanos. Os relatos de autojustificação da campanha de Júlio César na Gália e da sua guerra civil contra Pompeu foram distribuídos pela Roma Antiga, copiados na Idade Média e sobreviveram até chegarem aos manuais escolares da atualidade. O mesmo aconteceu com as Meditações, de Marco Aurélio, e os escritos do imperador Juliano do século IV, os quais ainda enchem vários volumes. As obras de Juliano incluem, juntamente com alguma teologia pagã deveras pura e dura, aquela sátira deliciosamente irónica na qual caracteriza de forma hilariante os seus antecessores no trono de Roma, desde Heliogábalo ao próprio Augusto, que foi significativamente descrito como um velho “camaleão” – inconstante, astuto e difícil de definir.

Não se sabe que plano Octávio engendrara quando regressou a Roma, mas o mais provável era não incluir muito mais do que ocupar o lugar de Júlio César

O próprio ensaio de Augusto sobre O Que Fiz (Res Gestae, em latim) tem uma história muito diferente, pois redigiu-a para ser exibida em público, gravada em pilares de bronze do lado de fora da sua sepultura perto do centro de Roma. Esses pilares, com a sua inscrição, há muito foram fundidos, provavelmente reciclados e transformados em armamento medieval. Porém, o ensaio foi amplamente copiado, e a reconstrução do texto que temos hoje provém, sobretudo, da versão quase completa encontrada em Ancara, entalhada nas paredes do templo em latim e grego (a pensar no público local que falava grego), as letras originalmente pintadas em tinta vermelha garrida para as realçar. Grandes excertos foram aparecendo a partir do século XVI, mas foi revelado na íntegra, pela primeira vez, na década de 1930, com o patrocínio de Kemal Atatürk, fundador da atual República da Turquia, para assinalar o aniversário dos dois mil anos do nascimento de Augusto. Pouco depois, foi copiado outra vez, por ordens de Benito Mussolini, o ditador fascista italiano, que se mostrou bastante entusiasmado ao reinventar o imperador como o seu precursor. Mandou inscrever uma versão completa em latim, com letras em bronze, na parede exterior de um novo museu que mandara erigir, sobranceiro ao túmulo de Augusto, onde ainda se encontra, para que todos possam ver.

O Que Fiz é uma narrativa na primeira pessoa implacavelmente egocêntrica: “Fiz isto”, “Fiz aquilo”; pronomes na primeira pessoa, “eu”, “me”, “mim” repetem-se quase cem vezes no breve texto atual. Não é uma leitura entusiasmante nem uma autobiografia de reflexão, mas, à primeira vista, um registo insípido de “proezas” conjugado com um eufemismo por vezes ilusório. Os horríveis crimes das guerras civis são descritos com palavras ambíguas (“Libertei o Estado oprimido pelo poder de uma fação” é o mais próximo que há de qualquer referência à perseguição organizada que iniciara). Além disso, várias páginas são monopolizadas por listas: de dinheiro gasto, espetáculos organizados, templos restaurados, recenseamento da população ou inimigos subjugados. Porém, há mais por detrás do que parece à primeira vista. Com certeza, o documento é um relato descarnado, retrospetivo e egocêntrico dos mais de quarenta anos em que o imperador esteve no poder. Porém, conforme a sua exibição pública sugere, também se destina a ser um ponto de partida para o futuro, uma lição sobre aquilo que um imperador deve ser. Por outras palavras, tal como o discurso de agradecimento de Plínio, também foi uma “descrição do cargo”.

 
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