Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Foi a propósito do processo Casa Pia que começámos a ouvir falar em violações do segredo de justiça a uma escala mediática até então inédita. E tal decorreu, sobretudo, do envolvimento no caso de várias figuras públicas e políticas. O segredo de justiça ficou, desde essa altura, no centro de inúmeros debates, tornou-se alvo de sucessivas alterações legislativas e, regra geral, consolidou-se como um problema permanente e sem (aparente) resolução sempre que estão em causa os chamados processos mediáticos. Mas, tanto tempo depois, onde estamos em termos de discussão do segredo de justiça, quando a sua violação se converteu numa rotina da vida democrática?
Em boa verdade, são muitas as perguntas que permanecem há anos sem resposta. Para que serve realmente o segredo de justiça, se não é cumprido? Que enquadramentos existem noutros países e qual a sua eficácia? O problema está nos profissionais da justiça ou na comunicação social? O segredo visa proteger bens juridicamente mais relevantes do que a liberdade de imprensa ou não? Indo para além das queixas, que modelo queremos e precisamos? E, afinal, há mesmo como garantir que o segredo de justiça se cumpre?
Todas estas questões carecem de resposta. Porque, por um lado, é como dizia Sophia de Mello Breyner: vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Mas, por outro lado, em que medida é que isso é útil a quem investiga e acusa, a quem se defende ou até a quem aprendeu a olhar para os processos mediáticos como folhetins, muito mais como fonte de entretenimento do que de justiça? É, portanto, sobre essas questões que este ensaio se debruça – concluindo que a questão é mais cultural do que legislativa, mas que isso não é desculpa para não se melhorar a lei.
Letra morta: os pressupostos e como (supostamente) funciona
A Constituição de 1976 consagrou o processo penal com base acusatória e o princípio do contraditório na instrução e na fase de julgamento. O Código Penal de 1982 tipificou o crime de revelação de segredo de justiça, que seria, em termos sintéticos, a prática de publicação, no sentido de dar conhecimento público, de atos ou documentos processuais praticados antes da audiência de julgamento ou de despacho de arquivamento. Já se o processo estivesse em segredo de justiça, mesmo depois da audiência de julgamento só poderia tornar-se público com autorização da entidade competente. Na prática, é o espírito da revisão constitucional de 1982 na legislação penal a consagrar a independência do Ministério Público e o seu papel de condutor da investigação criminal.
Foi nessa senda que o Código de Processo Penal de 1987 veio determinar a existência das três fases processuais que ainda hoje conhecemos: 1) uma fase de investigação, secreta e conduzida pelo Ministério Público, auxiliado pelas forças policiais; 2) uma fase de instrução, de caráter facultativo, dirigida por um juiz; 3) o julgamento, dirigida por um juiz que não o da instrução e com uma audiência pública. Nesta altura, o segredo ainda era a regra na fase de investigação, mantendo-se um princípio inquisitório limitado, ao contrário do que acontecia em ditadura, pelo princípio da legalidade.
Em 1997, com a revisão constitucional desse ano, o segredo de justiça foi consagrado na Lei Fundamental, com o intuito de assegurar direitos fundamentais aos arguidos e também de garantir a eficácia da investigação, ficando, com o Código de Processo Penal de 1998, o segredo de justiça, também na fase de instrução, suscetível de tutelar os direitos do arguido. Só que, entretanto, caiu a tal bomba que foi o processo Casa Pia e tudo o que se lhe sucedeu em matéria de segredo de justiça e suas violações, não só naquele como noutros processos.
Em 2007, acontece uma nova reforma penal, antecedida pelo famoso Pacto da Justiça celebrado um ano antes entre PS e PSD. O Código Penal passou a prever que para haver violação do segredo de justiça não era necessário ter contacto direto com o processo, e o Código de Processo Penal avançou com novas regras inovadoras: 1) a publicidade interna e externa da fase de inquérito, salvo decisão do juiz de instrução que ordenasse o segredo externo do processo; 2) a publicidade da fase de instrução; 3) existindo segredo, todos aqueles que contactassem com o processo ficariam a ele vinculados, o que incluiria jornalistas.
A verdade é que, desde 2007, a regra passou a ser a da publicidade do processo, incluindo a fase de inquérito, ainda que com algumas exceções. Esta publicidade tem uma vertente interna, relativa aos sujeitos processuais, e uma vertente externa, relativa a terceiros. Por um lado, tal acaba por garantir a tutela penal dos direitos do arguido, nomeadamente no que diz respeito ao conhecimento, por parte deste, da prova da acusação, mas também da vítima, já que lhe permite discutir a eventual contraprova do arguido. E, em teoria, a publicidade externa traria consigo maior eficácia à ação da justiça, ajudando a prevenir com mais sucesso quanto maior fosse a publicidade processual.
A publicidade, tendo passado a ser regra, não deixou de ser suscetível de afastamento, nomeadamente na fase de inquérito. E é precisamente nesses casos que se têm levantado problemas.
É verdade que a publicidade e um processo penal de matriz acusatória são essenciais a uma democracia, na medida em que é através desses princípios que se garantem os direitos dos arguidos. Mas, se a publicidade fosse absoluta, estaria em causa, em não raros casos, a descoberta da verdade, a permanência dos arguidos ao dispor da investigação, a facilidade de obtenção de provas. Com a complexidade a que a criminalidade chegou, sobretudo a económica, é essencial garantir que a investigação, nalguns casos, permanece sigilosa. Mas, por outro lado, é importante também garantir que os arguidos não são julgados por terceiros que não os tribunais.
Ou seja, o segredo de justiça existe, em teoria, para proteger a investigação criminal, para que a verdade seja descoberta sem interferências de terceiros, nomeadamente do próprio arguido, no cumprimento das atribuições e dos fins que um Estado de Direito deve ter. É uma forma possível de garantir que quem investiga tem condições para levar a bom porto a sua missão, preservando os meios de prova. Por outro lado, são os próprios direitos do arguido que devem também ser protegidos através do segredo de justiça, nomeadamente o da presunção de inocência, evitando causar danos na maioria das vezes insanáveis ao seu bom nome e na sua dignidade, bem como à da sua família, evitando decisões mediáticas antes das judiciais.
Mas com que fundamentos se determina, então, o segredo de justiça? O segredo pode ser requerido pelo próprio arguido, pelo assistente ou pelo ofendido, alegando que a publicidade do processo lhes é prejudicial, cabendo a decisão sobre tal pedido ao juiz de instrução criminal, depois de o Ministério Público se pronunciar. Mas pode também ser determinado pelo próprio Ministério Público, sujeito a validação do juiz de instrução, quando este entenda que a publicidade do processo atinge os direitos dos sujeitos processuais ou prejudique os interesses da investigação. Certo, certo, é que, uma vez em segredo de justiça, o mesmo só vigora durante o inquérito e termina pelo decurso do prazo deste ou pelo seu levantamento.
Por fim, a sanção: o Código Penal pune a violação do segredo de justiça, com pena de prisão até dois anos (o que dificilmente resultará numa pena de prisão efetiva) ou com multa até 240 dias, considerando-se que viola o conteúdo do segredo de justiça quem der conhecimento, total ou parcial, de ato processual protegido pelo segredo ou de um ato em cuja celebração não estivesse permitida a assistência de público em geral. Ora, como veremos adiante, tudo isto é letra morta.
Perceber o problema: as fronteiras entre o que é da comunicação social e o que é da justiça
Ninguém se atreve, hoje em dia, a colocar em causa a liberdade de informação, o direito a informar e a ser informado. E é evidente que a grande missão da comunicação social é dar publicidade (i.e., tornar público) o que é de interesse para a comunidade. Mas a justiça não tem menor dignidade, até constitucional, do que a imprensa. Daí ao conflito, vai o salto de uma pulga.
A justiça, por um lado, tem o seu tempo, as suas complexidades, os seus métodos de apuramento da verdade. A comunicação social, cada vez mais rápida, conseguiu competir com a justiça, ultrapassando-a na obtenção de meios de prova, na investigação em geral, e, naturalmente, na acusação e na condenação. Pergunta: se a justiça não consegue cumprir os prazos da lei (nomeadamente os do inquérito, importaria noutra fase discutir o sentido dos mesmos) e tem à sua frente grandes obstáculos quanto aos meios de prova, como pode competir com a anarquia processual de uma redação jornalística?
O desafio está em traçar os limites e as compatibilidades. Parece cínico que se diga, por um lado, que a justiça quer impedir a liberdade de informação como, por outro, que a imprensa quer impedir a justiça de atuar. É fatal como o destino: ambas, justiça e comunicação social, terão de se compatibilizar e arranjar uma forma de garantir o direito à informação e a tutela dos direitos dos arguidos e da investigação.
Esse entendimento deve começar num diagnóstico correto do problema, evitando confusões. Por exemplo: não há qualquer violação do segredo de justiça quando a comunicação social se antecipa à investigação judicial e divulga factos, com melhor ou pior prova, que não fazem parte do processo e que, como tal, não estão sujeitos a segredo. O problema não é a investigação jornalística. O problema é quando se passa o risco, isto é quando há transcrição de escutas nos jornais, existência de buscas acompanhadas pelas objetivas dos repórteres, ou os diretos televisivos das detenções – porque se percebe que houve violação do segredo de justiça e se permitiu a interferência de um no trabalho dos outros.
Os dados sobre Portugal: quem e quando se viola o segredo de justiça?
Talvez seja interessante perceber de onde vêm afinal as violações do segredo de justiça – mesmo sabendo que não é por aí que se resolve alguma coisa. Dos arguidos, que pretendem descredibilizar a investigação? Dos advogados, que pretendem o mesmo? Dos juízes? Do Ministério Público, que pretende o reconhecimento do seu sucesso ou a justificação da sua ineficácia? Dos funcionários judiciais? E os jornalistas, confrontados com a informação que obtiveram, seja por que meio for, o que devem fazer com ela – publicar, esconder, aguardar?
Em 2014, a Procuradoria Geral da República publicou o relatório de uma auditoria, tendo por objeto os processos que, estando em segredo de justiça, foram violados em 2011 e 2012. Dos 1.310.609 processos registados, o segredo de justiça vigorou apenas em 6.354 e houve suspeitas de violação do segredo de justiça em 92 casos (1,5% dos processos em segredo de justiça). Destes dados resultou a abertura de 83 inquéritos, que redundaram em nove acusações, maioritariamente a jornalistas, e apenas um julgamento – que até resultou em absolvição. Ou seja, fica claro que a legislação em vigor é, de facto, ineficaz.
Os números dão que pensar. Mas, mais do que acumular lamentos, interessará perceber o que fazer com as violações do segredo de justiça. A lei, como acontece muito em Portugal, tem respostas teóricas, mas o sistema não dá garantias de cumprimento na prática. Razão tinha o advogado Paulo Saragoça da Matta quando dizia, em 2017, que “esta lei é totalmente desadequada à realidade, já que manifesta um princípio e uma proibição que são, na prática, uma completa letra morta. De duas uma: ou cessa o regime de segredo de justiça, passando todos os processos a ser integralmente públicos, ou, se se deseja manter a possibilidade de sujeitar os inquéritos a segredo de justiça, ter-se-á de responsabilizar quem viola a lei reiteradamente. De momento, são normas meramente para inglês ver!”.
O que existe lá fora?
Que modelos existem e com quem nos podemos comparar? A Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou um ensaio de Fernando Gascón Inchausti, professor na Universidade Complutense de Madrid, que oferece uma visão muito completa das várias realidades em matéria de segredo de justiça. A partir dele, é possível compreender os modelos que outros países implementaram.
Espanha. No sistema espanhol, atendendo ao que estabelece a lei processual, dir-se-ia que se estava perante um ordenamento com um apertado grau de segredo na investigação criminal. De facto, tanto o segredo externo como o interno são previstos, mas é na proteção do segredo externo que o modelo cai no ridículo.
A violação do segredo externo, se praticada por advogado ou procurador de uma das partes, tem como sanção uma quantia de 250 a 2.500 pesetas (algures entre 1,25 euros e 12,50 euros), um valor que não é atualizado desde 1955; se for praticada por um funcionário público, incorre numa pena de 12 a 18 meses de multa e interdição de funções públicas de um a três anos, ou, causando especial dano a terceiros ou à causa pública, pena de prisão de um a três anos e interdição de 3 a 5 anos. Significa isto que só os funcionários públicos se consideram legalmente dissuadidos de revelar segredos da investigação criminal, neles se incluindo os juízes, procuradores, órgãos de polícia criminal, funcionários judiciais ou peritos. Já as partes e os seus advogados nada têm a temer, dado o ridículo da sanção que lhes é aplicada por difundir, nomeadamente à comunicação social, segredos do processo.
O segredo interno e a sua violação têm uma moldura penal mais dura, incluindo para os advogados, o que faz com que os juízes tenham, não raras vezes, de determinar o segredo interno do processo para garantir o sucesso da investigação e a tutela dos direitos dos arguidos. Caso contrário, isto é, se apenas for decretado o segredo externo (em que o processo apenas se torna sigiloso para terceiros, nomeadamente a comunicação social), o que acontece é que, com um custo muito baixo para os advogados e para as partes, os processos rapidamente perdem o sigilo pretendido.
Além do mais, é muito curiosa a nota que Fernando Inchausti faz no seu ensaio a propósito do que tem sido a política do Consejo General del Poder Judicial, o órgão máximo do governo do poder judicial espanhol: “o que realmente lhe interessa é manter uma boa relação com os meios de comunicação, em claro detrimento dos valores que subjazem e justificam o segredo da investigação penal – e também em claro detrimento da independência judicial em relação ao poder mediático. Penso que não são necessários mais comentários.”
França. Também os franceses têm um regime que contempla o segredo externo e o segredo interno. Em relação às partes processuais, desde 1897 que o processo é público, embora com algumas restrições ou condicionantes. Já em relação a terceiros, a regra é a de que os atos da investigação são secretos, o que abrange os advogados na medida do seu vínculo ao sigilo profissional.
Claro que o que tem preocupado o mundo judiciário em França é exatamente o mesmo que preocupa todos os outros países: a relação entre a comunicação social e o segredo da investigação. Por isso, além de algumas sanções específicas aplicáveis a advogados que violem o segredo de justiça, a lei de liberdade de imprensa pune, com multas que vão de 3.500 a 15 mil euros, quem publique determinados atos ou informações processuais. Além destas sanções impostas a advogados e jornalistas, o ordenamento francês faz ainda aplicar penas de prisão de um ano e 15 mil euros de multa quando estejam em causa pessoas obrigadas pelo segredo da investigação.
Itália. Ao contrário de França e Espanha, a legislação italiana não tem especial preocupação em distinguir o segredo externo do interno. Em Itália, existe apenas uma categoria de atos secretos: aqueles que o são para o indagato, isto é, o suspeito, já que a regra é a de que os atos de investigação levados a cabo pela Polícia e pelo Ministério Público são secretos. O que significa, muito resumidamente, que o que os italianos consideram relevante no seu processo penal é o êxito da investigação criminal e fazer com que esta não seja contaminada, no que diz respeito à prova, pelo arguido. Porém, este secretismo dos atos está limitado no tempo, não se mantendo o segredo depois de encerrada a fase de investigação (equivalente, em Portugal, ao inquérito). Em todo o caso, a regra geral de segredo de justiça apresenta uma série de exceções.
Quem revelar informações secretas relativas a um processo penal é punido com pena de prisão até um ano. Se o infrator não assistiu ao ato, mas veio a conhecê-lo por razões profissionais, poderá ser punido com pena de prisão de seis meses a três anos. Já para quem publicar atos ou documentos de um processo penal cuja publicação esteja proibida por lei, tem pela frente uma pena de prisão até 30 dias ou uma multa entre 51 e 258 euros – o que tem sido apontado como manifestamente escasso no que ao efeito dissuasor da pena diz respeito.
Alemanha. Fernando Inchausti diz, muito acertadamente, que os modelos latinos são especialmente bons a regular, em extensão e pormenor, e péssimos a fazer cumprir. Já na Alemanha a regulação normativa é praticamente inexistente, mas a realidade demonstra um respeito generalizado para com o segredo da investigação penal. Isso tem-se manifestado na forma como os próprios meios de comunicação têm feito uso do seu poder de autocontrolo: a omissão dos nomes dos arguidos, aquando da informação sobre atuações penais, a menos que se trate de pessoas que já tenham tido relevância pública, é notável. Na Alemanha, durante a fase da investigação, ninguém saberia quem era Manuel Palito, Pedro Dias, Leonor Cipriano ou Carlos Silvino.
Se quisermos usar como referência os sistemas latinos, para facilitar a comparação, pode dizer-se que na Alemanha funciona um modelo de segredo interno da investigação. Significa isto que o arguido não participa na fase das diligências da investigação, que cabe ao Ministério Público. No entanto, a duração da investigação não é indefinida, o que, entendem os alemães, colidiria com os direitos de defesa. Nesse sentido, o arguido deve poder conhecer dos factos que lhe são imputados, sendo que a jurisprudência constitucional tem considerado que deve receber essa informação antes do seu interrogatório, o que sucede antes do termo formal da investigação.
Considerando estes factos, o modelo alemão acaba por não ter um regime sancionatório ao estilo dos países latinos para a violação do segredo de justiça. Além disso, existe uma relação próxima entre o Ministério Público e a comunicação social, já que existe na Alemanha uma estrutura de gabinetes de imprensa ligada aquele e aos tribunais que torna transparente a relação existente e necessária entre as partes.
Inglaterra. Abandonados os modelos continentais, o que está em causa na matriz inglesa não é a proteção da investigação, mas evitar que os meios de comunicação social possam interferir na correta administração da justiça e no direito do arguido a um fair trial. Porém, mesmo entre os modelos anglo-saxónicos existem diferenças: os ingleses dão preferência à tutela do processo, os americanos preferem a liberdade de imprensa.
Ao contrário dos modelos latinos e continentais, o sistema inglês não chega a considerar a fase de investigação como uma verdadeira fase da estrutura processual penal. A investigação é levada a cabo pelas entidades policiais e só dão lugar a um efetivo processo judicial com a detenção ou com a autorização por um juiz para a realização de buscas ou escutas telefónicas. Daí que não se possa falar de uma fase de investigação, nem do seu eventual secretismo.
Além disso, a imprensa britânica, apesar do seu conhecido sensacionalismo, tem mostrado, na maior parte das vezes, um grande respeito pelos processos judiciais, num regime que apela muito à sua autolimitação, nomeadamente através da figura genérica do contempt of court e, em particular, do contempt of court by publication. O que está em causa, para os ingleses, não é a tutela da presunção de inocência do arguido tal como ela é entendida entre nós, mas a proteção que se deve dar ao arguido de que não vai ser julgado por um tribunal que não tenha uma mente aberta em relação ao processo por causa do que foi veiculado nos órgãos de comunicação social. Isto confere, na prática, algum secretismo ao processo penal inglês, o que tem sido confirmado com a aplicação de algumas penas de prisão a quem já pôs em causa estes princípios que se enunciaram.
Estados Unidos da América. Como se disse, apesar da matriz inglesa, os americanos desenvolveram o seu processo penal num sentido muito diferente, dando muita relevância à liberdade de imprensa consagrada na Primeira Emenda da sua Constituição. Também aqui não existe a figura latina do segredo da investigação, sendo que a única regra é a publicidade das atuações judiciais e o reconhecimento de que existe um interesse legítimo dos meios de comunicação social em informar.
Apesar de manterem a figura do contempt of court, os americanos foram afastando, ao longo dos anos, a britânica figura do contempt by publication. Porém, o ordenamento americano mantém uma série de instrumentos que visam garantir um julgamento justo aos arguidos. O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público português, em alusão ao caso Madoff, dizia que a investigação americana assenta na informalidade, na liberdade de atuação do Ministério Público, na inexistência de prazos de inquérito, ao contrário do sistema português, em que o inquérito funciona com diário de bordo, funcionando com um excesso de garantias conferidas ao arguido que têm como fundamento a reação às práticas autoritárias do Estado Novo. Teria razão nalguns aspetos, não teria em muitos. Talvez os Estados Unidos não sejam exatamente o modelo judicial que será mais comparável ao português, nem se encontra, como o nosso, isento de críticas.
Três conclusões (com a dimensão cultural a sobressair)
Primeira conclusão. O grande problema que se levanta com o segredo de justiça é o da sua violação pelos meios de comunicação social. É assim em Portugal como em muitos outros países. Nos modelos latinos, a regra é a de que os sistemas estão bem construídos, mas sem consequências. A exceção é o caso francês que, apesar das suas falhas, tem sancionado as violações do segredo de justiça, incluindo jornalistas. O modelo existente na Alemanha parece, nesse domínio, ser o mais equilibrado. Mas estes casos de autorregulação só operam com facilidade em países em que exista um tecido social que possua um elevado grau de respeito pelo ordenamento jurídico – algo que, mostra a nossa realidade, não parece ser o caso português. É por isso que, em Portugal, seria fundamental que as normas fossem poucas, mas muito precisas, sem grandes margens para interpretações e malabarismos jurídicos que advogados e juristas de todos os sectores de atividade tanto apreciam. Por outro lado, um regime incapaz de fazer aplicar sanções a quem viola o segredo de justiça – seja ele sujeito processual, advogado, funcionário judicial, juiz, procurador ou jornalista – é um regime que não se respeita a si próprio e que, como tal, não faz por ser respeitado.
Segunda conclusão. Era também importante definir se faz ou não sentido continuar a atribuir ao Ministério Público a condução da investigação criminal ou se, como no sistema inglês, ao poder judicial deve caber a tutela dessa investigação, controlando e fiscalizando a sua legalidade. E, quanto a este aspeto, seria também fundamental discutir os meios de que dispõe a polícia e o próprio Ministério Público. Por outro lado, não há discussão sobre o segredo de justiça sem se discutir a razoabilidade dos prazos de inquérito e os mecanismos que possibilitam uma justiça penal célere e eficaz. Quando se compara o caso Madoff com os nossos processos de natureza financeiro-criminal, esquece-se muitas vezes que a natureza dos regimes jurídicos é que possibilitou respostas diferentes a cenários idênticos.
A terceira (e grande) conclusão é, de facto, que o respeito pelo ordenamento e a confiança no sistema judicial é mais cultural que normativo. Mas, num país como o nosso, a legislação tem que responder por si. A escolha pode passar por eliminar de uma vez o segredo de justiça – com as consequências que isso traz aos arguidos e, em bom rigor, a cada um de nós enquanto cidadãos suscetíveis de ser investigados por algum motivo, e presumivelmente inocentes até prova em contrário. Mas também pode passar por fazer aplicar efetivas sanções penais e profissionais a quem infringir o segredo de justiça. Seja qual for o caminho, certo é que ficar como está é insustentável.
Nuno Gonçalo Poças é advogado e foi assessor no XIX Governo. Escreve no Observador sobre o sistema político e a justiça