Discurso de Kamala Harris na Convenção Democrata
América, o caminho que me trouxe até aqui nas últimas semanas foi, sem dúvida… inesperado. Mas eu estou habituada a viagens improváveis. (…) A minha mãe tinha 19 anos quando atravessou o mundo sozinha, viajando da Índia para a Califórnia com o sonho inabalável de se tornar a cientista que curaria o cancro da mama. Quando acabou os estudos, era suposto regressar a casa para um tradicional casamento arranjado. Mas, como o destino queria, conheceu o meu pai, Donald Harris, um estudante da Jamaica. Eles apaixonaram-se e casaram-se.”
Kamala Harris começou o discurso com agradecimentos, onde incluiu o Presidente Joe Biden, mas não se quis debruçar sobre o processo de desistência do democrata que lhe deu a possibilidade de se tornar a candidata do partido à presidência. A única referência a esse processo foi o uso da palavra “inesperado”. Harris aproveitou o discurso de aceitação da nomeação para contar a sua história de vida. Através da história de amor dos pais, imigrantes de origem indiana e jamaicana, Kamala frisou as suas origens sem ter de dizer diretamente que é de origem asiática e negra — um ponto que o adversário Donald Trump tem questionado, insinuando que Harris está a tentar agora afirmar-se como afro-americana quando não o é exatamente. Da mesma forma, Kamala Harris também não relembrou que poderá ser a primeira mulher a tornar-se Presidente dos EUA — ao contrário do que Hillary Clinton fez em 2016, com o slogan de campanha “Estou com ela”. A ideia é a de que isso é evidente olhando para ela e, portanto, não precisa de ser sublinhado.
Mas a harmonia entre os meus pais não durou. Quando estava na primária eles separaram-se e foi sobretudo a minha mãe que nos criou. Antes de conseguir ter finalmente capacidade para comprar uma casa, alugou um pequeno apartamento na East Bay. Na Bay, ou se vive nas colinas ou nas planícies. Nós vivíamos nas planícies. Um bairro maravilhoso de classe operária, de bombeiros, enfermeiras e trabalhadores da construção civil — e todos eles cuidavam com orgulho do seu relvado.”
Recorrendo à sua história de vida, Harris tenta criar uma imagem de “pessoa comum” onde os norte-americanos se possam rever. O sublinhar das suas origens humildes, de “classe operária”, é uma tentativa clara de afastar a ideia de que veio da elite. E que tenta ainda associar Kamala a valores típicos norte-americanos, representados na ideia de “cuidar do relvado” em frente à casa.
Como procuradora, quando tinha um caso a acusação não era em nome da vítima, mas em nome d'”O Povo”. Por uma simples razão: no nosso sistema de justiça, um dano a qualquer um de nós é um dano contra todos nós. (…) Todos os dias, em tribunal, levantava-me com orgulho perante um juiz e dizia quatro palavras: ‘Kamala Harris, pelo Povo.’ E para ser clara: em toda a minha carreira, tive um único cliente — ‘O Povo’.”
Em 2020, quando foi candidata às primárias presidenciais do seu partido, Kamala Harris concorreu com uma plataforma mais à esquerda do que a de Joe Biden. O seu percurso como procuradora na Califórnia foi, por vezes, uma pedra no sapato para essa imagem. Agora, é usado com orgulho pela candidata, para se aproximar do centro, com Kamala a mencionar vários dos criminosos que conseguiu que fossem condenados. O objetivo é também o de desmontar a acusação do adversário Donald Trump de que não terá capacidade para lidar com a criminalidade.
Sei que há pessoas com várias visões políticas a ver-nos esta noite e quero que vocês saibam: prometo ser uma Presidente de todos os americanos. Podem sempre confiar em mim para colocar o país acima do partido e de mim. Para preservar os princípios fundamentais americanos. Desde o Estado de Direito a eleições justas, até à transição pacífica do poder. Serei a Presidente que nos une em torno das nossas maiores aspirações. Uma Presidente que lidera e ouve, que é realista, prática e que tem senso comum. E que luta sempre pelo povo americano.”
Com uma ligeira farpa a Donald Trump, ao garantir que respeitará a “transição pacífica do poder” — por contraste ao que aconteceu a 6 de janeiro no Capitólio —, Kamala aproveitou o discurso para sublinhar a imagem que foi tentada pintar ao longo de toda esta Convenção Democrata: uma visão centrista de uma candidata pragmática, que seguirá “o senso comum”. Uma estratégia necessária já que a candidata continua a ser vista por muitos como “radical” — ainda na semana passada uma sondagem do New York Times em alguns swing states decisivos, como o Arizona, a Geórgia, o Nevada e a Carolina do Norte dizia que 43% dos eleitores a consideram “demasiado progressista”. Não por acaso, para combater essa ideia, a Convenção contou esta quinta-feira com o discurso do antigo congressista republicano Adam Kinzinger (insuspeito de ter inclinações mais à esquerda) que deixou uma frase lapidar: “Quero contar um segredo aos meus companheiros republicanos: os democratas são tão patriotas como nós. Amam este país tanto quanto nós”.
As consequências de recolocar Donald Trump na Casa Branca são extremamente sérias. Tenham em conta não apenas o caos e calamidade quando ele ocupou o cargo, mas também a gravidade do que aconteceu desde que ele perdeu a eleição. Donald Trump tentou deitar fora os vossos votos. Quando falhou, enviou uma multidão armada para o Capitólio dos Estados Unidos, onde atacaram agentes de segurança. Quando políticos do seu próprio partido lhe imploraram para que tirasse dali a multidão e os ajudasse, ele fez o oposto: alimentou as chamas. E agora, por uma série de crimes completamente diferentes, foi considerado culpado de uma fraude por um júri de americanos comuns. (…) Considerem o poder que ele vai ter — especialmente depois de o Supremo Tribunal dos Estados Unidos ter decidido que ele estará imune de acusações judiciais. Imaginem Donald Trump sem barreiras. Como ele usaria os imensos poderes da presidência dos Estados Unidos. Não para melhorar a vossa vida. Não para fortalecer a nossa segurança nacional. Mas para servir o único cliente que alguma vez teve: ele próprio.”
As críticas a Donald Trump voltaram a centrar-se no ataque ao Capitólio e incluíram ainda os processos judiciais de que é alvo e a sua condenação no caso do pagamento à estrela porno Stormy Daniels. Mas a afirmação sobre a recente decisão do Supremo Tribunal não foi exata, como lembra um fact-check feito pela CNN: a decisão deu “total imunidade” ao antigo Presidente, mas apenas em matérias que estejam relacionadas com a sua “autoridade constitucional” enquanto chefe de Estado. Ou seja, as acusações judiciais de que é alvo neste momento mantêm-se e Trump pode ser ainda acusado de outro tipo de crimes no futuro.
Sabemos como seria um segundo mandato de Trump. Está tudo explícito no ‘Projeto 2025’, escrito pelos seus conselheiros mais próximos. E a sua súmula é tentar puxar o nosso país de volta para o passado. Mas, América, nós não vamos andar para trás.”
A referência ao “Projeto 2025” foi repetidamente invocada ao longo da Convenção. Trata-se de um documento formulado pela conservadora Fundação Heritage que foi visto como uma espécie de programa oficial da candidatura de Trump, já que foi elaborado por muitos responsáveis que lhe são próximos e que contém ideias polémicas como “o despedimento de milhares de funcionários públicos, a serem substituídos por nomeados leais ao Presidente”. O candidato republicano, contudo, tem tentado distanciar-se do documento e garante que não tem qualquer vínculo oficial ou legal àquele projeto.
Como Presidente, irei unir os trabalhadores, os donos de pequenas empresas e os empreendedores e empresas americanas que criam empregos, fazem crescer a nossa economia e baixam o custo de vida de necessidades quotidianas como a saúde, a habitação e as compras. (…) Iremos aprovar uma redução de impostos para a classe média que vai beneficiar mais de 100 milhões de americanos.”
Nesta fase do discurso, Kamala Harris tentou apresentar o seu programa económico, que ainda não é conhecido em profundidade. O documento de Joe Biden ainda não foi substituído e não é claro se Harris o subscreve na íntegra, tendo anunciado algumas medidas extra avulso — mas ainda com pouco escrutínio, já que Kamala praticamente ainda não aceitou entrevistas nem fez conferências de imprensa.
Donald Trump escolheu a dedo membros do Supremo Tribunal para retirar a liberdade reprodutiva. E agora gaba-se disso. As suas palavras, e cito: ‘Fi-lo e estou orgulhoso de o ter feito.’ Fim de citação. (…) E entendam que ele não acabou. Como parte da sua agenda, ele e os aliados limitariam o acesso a contracetivos, proibiriam medicação para abortos e imporiam uma proibição do aborto em todo o país, com ou sem o apoio do Congresso. (…) Resumindo de forma simples: estão malucos.”
Com estas afirmações, Kamala Harris por um lado assumiu-se muito mais claramente do que Joe Biden na questão do aborto e da decisão do Supremo de acabar com o Roe v. Wade; por outro, ligou Trump a uma série de políticas restritivas nesta matéria, apesar de o adversário não ser assim tão taxativo. Sim, o candidato tem-se gabado de ter escolhido os juízes que permitiram essa decisão; mas, como lembra a CNN, a posição de Trump é a de que cabe a cada estado decidir que legislação aplicar nessa matéria e não impor uma proibição nacional ao aborto, seja em que circunstâncias for.
No ano passado, eu e o Joe conseguimos unir democratas e republicanos conservadores para redigir a proposta de lei mais forte em relação à fronteira em décadas. A polícia fronteiriça apoiou a proposta, mas Donald Trump acredita que um acordo para a fronteira irá prejudicar a sua campanha. Por isso, ordenou aos seus aliados no Congresso que chumbassem a proposta. (…) Eu irei trazer de volta o acordo bipartidário sobre a segurança na fronteira que ele matou. E irei promulgá-la. (…) Podemos criar um caminho merecido para a cidadania [de imigrantes] e garantir a segurança da nossa fronteira.”
Harris herdou a questão da imigração através da fronteira com o México como uma responsabilidade direta — o que levou Trump a classificá-la de “czar da fronteira” num assunto que é central na sua campanha. Kamala quis enfrentar o elefante na sala e provar que defende uma proposta relativamente ao tema que pode ser aceite por membros dos dois partidos, tentando esvaziar as propostas do adversário.
Como comandante-em-chefe, irei garantir que a América tem sempre a força de combate mais forte e mais letal do mundo. E irei cumprir as nossas obrigações sagradas de tomar conta das nossas tropas e das suas famílias e irei sempre honrar — e nunca menosprezar — os seus serviço e sacrifício. (…) Trump, por outro lado, ameaçou abandonar a NATO. Encorajou Putin a invadir os nossos aliados, ajudou a Rússia ao dizer que esta pode ‘fazer o que raio quiser’.”
Numa declaração surpreendente face à sua perceção de candidata mais à esquerda, Kamala Harris invocou um tom patriótico e de defesa de umas Forças Armadas fortes e presentes na geopolítica mundial, por contraste com uma política mais isolacionista de Trump. Aproveitou a questão da Ucrânia para associar Trump à Rússia e tentar retratá-lo como um candidato que não está preocupado com a segurança e os interesses da defesa nacional.
Relativamente à guerra em Gaza, o Presidente Biden e eu estamos a trabalhar a toda a hora, porque este é o momento de conseguir um acordo sobre os reféns e deixem-me ser clara: irei sempre apoiar o direito de Israel de se defender e irei garantir que Israel tem a capacidade de se defender, porque o povo de Israel nunca mais deve enfrentar o horror que a organização terrorista Hamas provocou no 7 de outubro. (…) Ao mesmo tempo, o que aconteceu em Gaza ao longo dos últimos dez meses é devastador. (…) A escala de sofrimento é de partir o coração. (…) O sofrimento de Gaza tem de acabar para o povo palestiniano conseguir o seu direito à dignidade, segurança, liberdade e auto-determinação.”
Era o ponto de maior pressão para Harris, num tema divisivo que assombrou a Convenção Democrata pelos protestos de democratas pró-palestinianos. A candidata tentou fazer um ato de equilibrismo: deixar claro o apoio a Israel, ao mesmo tempo que defendeu uma postura mais pró-Palestina do que a de Biden. A palavra “auto-determinação” revela um apoio claro a um possível reconhecimento da Palestina como Estado.
E sei isto: nunca hesitarei em tomar qualquer ação necessária para defender as nossas forças e interesses contra o Irão e os terroristas apoiados pelo Irão. E não irei aproximar-me de tiranos e traidores como Kim Jong-un, que estão a torcer por Trump porque sabem que ele é fácil de manipular através de elogios e favores”,
Uma vez mais, Kamala recorreu à política externa para marcar as diferenças face a Trump, nomeadamente na sua aproximação a líderes autoritários como o ditador da Coreia do Norte no passado. E a posição face ao Irão — muito distante da dos tempos em que Barack Obama e Joe Biden tentavam negociar um acordo nuclear com Teerão — tenta projetar uma imagem de força, de pulso firme, até distante de muitas das ideias e estilo da ala mais à esquerda do Partido Democrata a que tantas vezes Kamala Harris é associada.
Portanto, vamos sair e lutar por isto. Vamos sair e votar por isto. E, juntos, deixem-nos escrever o próximo grande capítulo na história mais extraordinária alguma vez contada. Obrigada. Deus vos abençoe. Que Deus abençoe os Estados Unidos da América.”
O fim do discurso termina com o apelo ao voto, tão importante para garantir a vitória, tendo em conta a possibilidade de eleitores tendencialmente pró-democratas se absterem, como aconteceu em vários estados na eleição de 2016. E com a referência tão tradicionalmente americana à ideia de “Deus abençoe a América” — uma forma de Kamala Harris tentar provar, mais uma vez, que está ao centro e longe de ser a “marxista radical” que Donald Trump diz que é.