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Encontramo-lo para uma longa conversa no Porto, onde apresentou o filme numa sessão esgotada no Cinema Trindade. © Maria Lobo
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Encontramo-lo para uma longa conversa no Porto, onde apresentou o filme numa sessão esgotada no Cinema Trindade. © Maria Lobo

Encontramo-lo para uma longa conversa no Porto, onde apresentou o filme numa sessão esgotada no Cinema Trindade. © Maria Lobo

Karim Aïnouz. No "Motel Destino" o sexo é para ser celebrado: "Este filme é trash, humano. Não tem vergonha."

Nova longa-metragem do cineasta brasileiro Karim Aïnouz traz crime e sexo até a um motel no Ceará. Estreado em Cannes, vai ser exibido em Portugal em simultâneo com o Brasil. Falámos com o realizador.

Um filme erótico em que o que resta às duas personagens é o encontro sexual entre os seus corpos. No tom, na cor, no ar de série B a puxar aos anos dourados do policial norte-americano, encontramos Motel Destino, novo filme de Karim Aïnouz , estreado na competição oficial de Cannes deste ano e que teve estreia mundial, em simultâneo, no Brasil e em Portugal, através da Nitrato Filmes. O Ceará à beira da estrada, com o mar no horizonte, torna-se num lugar provocador, de tensões e psicoses, onde o sexo arma o que resta de esperança e fortalece uma ideia de crime que libertará, por fim, Dyanna (Nataly Rocha) e Eraldo (Iago Xavier) das mãos tenebrosas de Elias (Fábio Assunção). Depois de Firebrand, produção norte-americana com Jude Law e Alicia Vikander, também estreado em Cannes, o realizador de Fortaleza quis voltar ao seu país que acaba de sair, segundo o próprio, de um dos momentos mais tenebrosos da sua história: os anos de governação de Jair Bolsonaro. Filmes de Brian de Palma, cinema noir, as marcas do feminicídio no país e muita tesão, cabem todos nas paredes daquele motel, que tem tanto de assustador como de proibido. No fundo, um respirar de alívio que mostra o que só o cinema brasileiro sabe dar: alegria e tragédia com areia no pé. O sistema de Hollywood exigia que Karim Aïnouz  não saísse mais das amarras da grande produção. Só que o cineasta, com já longa carreira (Vida Invisível, O Marinho das Montanhas e Madame Satã são só alguns dos exemplos), mandou as regras do estrelato para o ar e escolheu regressar às suas raízes para fazer uma pergunta: porque não filmar o sexo como uma celebração da vida? Encontramo-lo para uma longa conversa no Porto, onde apresentou o filme numa sessão esgotada no Cinema Trindade.

[Trailer oficial do filme Motel Destino]

Para se chegar a um certo estatuto, é preciso saber estar no meio da elite. Mas este ano, na riviera francesa, Karim Aïnouz saiu de Cannes a sentir-se “sujo”. Basta olhar para ele para se perceber que, com grandes ou pequenos orçamentos, a descontração, fora da rodagem, faz parte do seu ADN. É bom conversador, dispara para todo o lado, sem medo de falhar a palavra certa. Se não se acredita, bastava tê-lo visto a falar na sessão esgotada, cheia de cereaenses, que só acabou à meia noite, quatro horas antes do cineasta apanhar o voo de regresso. Já se tornou num cliente habitual da programação de um dos mais importantes festivais de cinema do mundo, mas o encaixe deste thriller erótico ao lado de Gran Tour, de Miguel Gomes, Anora, de Sean Baker (vencedor da Palma de Ouro) ou The Seed of The Sacred Deer ( Mohammad Rasoulof), deixou o realizador brasileiro a pensar. “Não li críticas, mas li que apelidaram o meu filme de exótico. Vamos parar com essa conversa, sou brasileiro, posso ser exótico. Sinto que saí dali com a sensação de que o meu filme não lavou o pé”. E porquê? Porque, da sua perspetiva, o ocidente, apesar de querer reconciliar-se com o seu passado colonial, continua a ser condescendente com os países que foram colonizados. “É condescendente e esquizofrénico. Como se não pudéssemos fazer um filme erótico. O Pulp Fiction (1994) é muito trash, nunca foi tratado assim. Fiquei contente por ter havido coragem de o programar, mas também senti que apresentei um filme trash que não se pode ver, daí as perguntas sobre o erotismo e não sobre o filme em si”.

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Foi estudar para Nova Iorque e acabou a trabalhar com o realizador Todd Haynes (May December), que também tem tido um percurso parecido: o de elevar o papel feminino, de o colocar à frente da tela com todas as suas complexidades, livres de olhares masculinos mais tóxicos. Mudou-se para Berlim, onde mora há mais de uma década, cidade que lhe dá liberdade “por não saber de onde vem” e só voltou à sua terra assim que Lula da Silva foi empossado como presidente do Brasil. “Motel Destino” não é só a sua versão de homenagem ao género policial. Nem à pornochachada [importante movimento cinematográfico de filmes de comédia pornográficos] que, durante os anos da ditadura militar nos anos 70, permitiu fintar a censura. Nem um grito de libertação contra “o fascismo, de um filme explosivo, todo errado, over the top o tempo inteiro”.  É a arquitetura de Aïnouz sobre a casa que está a construir à volta do seu cinema: que não se prende a moldes formais, a géneros ou a recantos confortáveis, vítimas do próprio sucesso. “Ando obcecado com um cinema que possa atrair o grande público, porque os números de bilheteira no Brasil são trágicos. É preciso trazer as pessoas de volta para a sala de cinema. O meu grande objetivo, desta vez, era a atenção do espectador. Não queria deixar adormecer o público”. Quem se deixa dormir em “Motel Destino” pode, de facto, nunca mais voltar. E isso ninguém quer.

"Fiz o Firebrand (2023), com duas estrelas gigantes de Hollywood, o Jude Law e a Alicia Vikander. E, nossa senhora, chegávamos ao ponto de ser preciso aprovar o pénis do Jude Law debaixo do lençol. Eu entendo, tem uma carreira a defender que vale milhões de dólares. E a nudez é viralizada em dois segundos nas redes sociais. Queria explodir com esse método de produção pautado pelas grandes estrelas que têm muito a perder."
Karim Aïnouz, realizador do filme "Motel Destino"

Mostra-se muito sexo em toda a parte hoje em dia. Nas redes sociais, no cinema, na televisão. Há também reações contra, mais conservadoras, como vimos nos últimos Jogos Olímpicos. É mais difícil trabalhar o erotismo quando está explorado até mais não?
Não. Para mim nunca foi uma questão falar das experiências sexuais no cinema. Fez parte sempre da potência do cinema, no sentido dramatúrgico. O que é importante ao olhar para estas personagens principais, da Dayana (Nataly Rocha) e do Eraldo (Iago Xavier), é que estão em completo desamparo, e a única coisa que sobrou foi o corpo deles. O encontro físico, essa colisão, é um espaço de recomeço. São mais fortes quando se encontram. A pergunta é mais neste sentido: porque não? A sexualidade tem muita visibilidade, mais do que nunca. Mas é diferente entre a pornografia, sexo feito para alguém ver, e o sexo que é feito para a construção de dois personagens, o disparo dramatúrgico de união entre os dois. Com o lançamento do filme e o encontro com o público, falaram-me de algo que não tinha entendido: a geração Z não está muito interessada no sexo no cinema. Acho fascinante. As pessoas passam mais tempo a ver sexo no telemóvel do que a tê-lo com alguém. É falta de habilidade do contacto físico que se transforma num julgamento de valor.

O que tenho sentido é que isso se transformou numa questão. Por exemplo, há filmes brasileiros e estrangeiros onde a morte não é questionada. Trinta pessoas assassinadas, muita gente morre, no Motel Destino também mas aqui ninguém é morto, o que é diferente. Não se vê o ato de matar. Estas são duas personagens condenadas à morte. O sexo é a celebração da vida. A experiência sexual no filme celebra o oposto da condição da Dayana e do Eraldo. O Eraldo diz que é um alvo ambulante no fim. O debate que surge do filme é sobre a violência. A crítica europeia, que é um pouco colonial, disse que o filme tinha muita cena de sexo. Na década 70 havia muito mais, como no Império do Desejo (1980). Também tem os vários filmes do Brian de Palma no final dos anos 80. O sexo no cinema parece mais real do que é na pornografia. Se fizermos um gráfico do cinema no final da década 80, tem a SIDA, porque o ato sexual virava ato da morte.

Era mais do que um pecado.
Um ato final, sim. Estava a ver o Challengers, do LucaGuadagnino, no outro dia, o filme não é feito na Arábia Saudita, é pautado por relações de desejo e na cena de sexo está toda a gente vestida. Não é natural. Ninguém faz sexo vestido.

Mas foi vendido como o filme mais sensual do ano.
E isso não é interessante? Quando vemos a cena, estão todos com roupa. Não é proibido, mas porquê então? Aquela jovem que vai para o motel com o Eraldo no meu filme logo no início, está-se sempre a rir durante a relação sexual. O sexo afro-indígena é de riso. Não tem culpa, isso vem da educação judaico-cristã. Aqui não. Os dois corpos entram em combustão, sentem que vão matar o Elias, são todos poderosos. A sexualidade não é pautada pelo culpa. Por exemplo, a candomblé, religião afro-americana, não é pautada pela culpa. É o animismo, o prazer, mas não existe culpa. Pergunto-me se as questões levantadas pelas cenas sexuais vêm de um lugar onde o sexo é ainda visto como pecado. Para mim era importante acabar com a ideia do pecado no ato sexual. A minha pergunta, outra vez, é: porque não? É como tomar café.

© Santoro

Mas o Motel Destino não celebra só a vida. Há uma dimensão trágica que não é associada, no Brasil, ao sexo.
O Brasil é o quinto país de feminicídio e primeiro de crimes de ódio no mundo. Existe essa dicotomia. A grande razão de ser do meu filme é a solidariedade, não é a fusão amorosa entre dois corpos. É o do menino preto em fuga, completamente fodido, sem pai, sem mãe, sem nada. Começa o filme a zeros. Só tem a perda. E a Dayana é uma mulher feita refém. Um pequeno parêntesis: durante a escrita do guião, perguntei porque é que é ela não se divorcia e ficava com metade do motel. A guionista que escreveu comigo disse-me que pensar assim era uma perspetiva masculina porque a lei no Brasil é masculina. Ou fica com ele até morrer ou mata-o. Fechado o parêntesis. A verdadeira razão desse filme é vir de um assombro meu. Foi escrito em 2017 e filmado em 2023. O que nós vivemos, nesse período, foi um momento de terror. Estávamos a brigar entre nós e estava o Jair Bolsonaro a governar. O primeiro tema do filme não é esse, mas também é sobre isto. O ato sexual é o oposto à condição deles.

[Já saiu o quarto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]

Também parece marcar um alívio depois de Jair Bolsonaro. Um momento de efusão pura, de recomeço. Foi essa a sua intenção?
A alma do filme é essa. Era para filmar em 2017 mas houve um golpe de Estado, o fascismo venceu, o Jair Bolsonaro é um monstro. Achei que não ia mais viver no Brasil. Estive fora durante 6 anos. Voltar e poder ser livre outra vez… esse filme é um testemunho de retoma da vida. Um milhão de pessoas morreram durante a pandemia de Covid-19. Honestamente, até a declaração de que o Lula da Silva tinha ganho, nunca achei que ia voltar para filmar. Com a minha idade, mais quatro anos de governo que fez sangrar o país, era difícil. O filme saiu da UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Saímos e fomos para a praia. É um filme explosivo, cheio de colisão, é todo errado, é over the top o tempo inteiro.

"Era para filmar em 2017 mas houve um golpe de Estado, o fascismo venceu, o Jair Bolsonaro é um monstro. Achei que não ia mais viver no Brasil. Estive fora durante 6 anos. Voltar e poder ser livre outra vez... esse filme é um testemunho de retoma da vida. Um milhão de pessoas morreram durante a pandemia de Covid-19. Honestamente, até a declaração de que o Lula da Silva tinha ganho, nunca achei que ia voltar para filmar. Com a minha idade, mais quatro anos de governo que fez sangrar o país, era difícil. O filme saiu da UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Saímos e fomos para a praia"
Karim Aïnouz, realizador do filme "Motel Destino"

Há também uma homenagem dos filmes de série B, dos policiais norte-americanos, certo?
Queria fazer um cinema que não fosse preciso. Estou cansado de ouvir o this is very precise. I’m a mess, digo-lhes. Sou um caos. Adoro filme de série B. Tem algo popular que é maravilhoso. Pensei muito nas pornochachadas, que também são homenageadas aqui. Se olharmos para a história do cinema brasileiro, politicamente, há o cinema novo, de elite, que fala das classes populares. Quem o fez eram homens brancos privilegiados, até o Glauber Rocha entrou nessa categoria. Era gente do bem a fazer coisas perigosas. Durante a ditadura houve repressão, nos anos 70 começa o código de censura. As pornochachadas vêm para contornar a censura. Vários autores de cinema de autor, todos homens, faziam o trabalho da metáfora através da comédia pornográfica porque a romântica era chata. Esse ato de transgressão era precário, feito muito rápido, sem meios. O filme era feito em duas semanas, editava-se em cinco e ia para o cinema. Um sistema de estúdio undeground fundado involuntariamente. Ou seja, este é cinema de género mas a falar de questões relevantes. É meio trash.

Porquê?
É trash porque é humano. Não tem vergonha. Não está dentro de uma ética da educação. Fiz o Firebrand (2023), com duas estrelas gigantes de Hollywood, o Jude Law e a Alicia Vikander. E, nossa senhora, chegávamos ao ponto de ser preciso aprovar o pénis do Jude Law debaixo do lençol. Eu entendo, tem uma carreira a defender que vale milhões de dólares. E a nudez é viralizada em dois segundos nas redes sociais. Queria explodir com esse método de produção pautado pelas grandes estrelas que têm muito a perder. E vale milhões. O Fábio Assunção, no meu filme, nunca tira a roupa. O rabo dele não aparece. Não aparece nada. Tem a entrega sexual dos atores, que faço como provocação para ele.

O erotismo e as cenas de sexo puxam o ator a ir mais além. Aqui sente-se que essa sedução está mais nos silêncios. No jogo de olhares. Porque fez assim?
Queria algo narrativamente claro. O cinema comercial é comercial quando se entende. Quando se entende, pode fazer o que quiser. Um exemplo: quando o Eraldo volta para o Motel, lembra-se? Passámos semanas a escrever aquela cena. Porque volta? Porque é que a Daynna o deixa entrar? Porque é um menino preto em fuga, fez algo de errado. Está em desespero. Escrevemos a cena, explicámos porquê. Já tinham tido uma cena de violência. Não dá para achar que é um anjo. Escrevemos imenso diálogo. Filmámos mas, desta vez, preferi fazer algo baseado num exemplo que a Vikander me disse, porque o Michael Fassbender tinha feito o The Killer com o David Fincher. Esse realizador faz todos os planos em rodagem, mas se fizer x takes, o último faz em silêncio. Peguei nisso e executei à minha maneira. Na montagem, tive esse recurso, ou seja, gravei tudo com diálogo e usaria se quisesse. Mas o máximo que pudesse não usar de diálogo, não usava. Nessa não usámos quase nada. Tive um desejo de fazer um filme claro mas que não fosse faladamente claro.

Cursou arquitectura. Quanto influencia o que aprendeu nessa altura para desenhar o motel em “Motel Destino”?
A história podia se passar numa bomba de gasolina, precisava de um espaço de passagem onde devia pedir abrigo. Sugeriram-me um motel, achei interessante. Um espaço dramaturgicamente rico, psicologicamente muito rico. Esse código do hotel é clássico do terror psicológico. Desde o The Shining (1980) que se tornou num lugar muito rico. Arquiteturalmente, os motéis também são muito brasileiros. Comecei a pesquisar, vimos e pesquisamos 80 motéis. Queria um que fosse perto do mar, do horizonte. Encontrámos alguns. Têm uma tipologia clara: são casas de duas águas, com corredor no meio e quartos dos dois lados. Todos são assim. Qual o problema? Os quartos são muito pequenos, a não ser que vás para um hotel urbano e de luxo. Só que isso é atípico quando vais para um “rural”. Este tinha os quartos maiores para não fazer um filme inteiro de plano aproximado. É atípico mas tem a mesma dinâmica dos outros. Daí escolher este. O motel também me deu algo que não percebi no guião: permite entrar no lugar do inconsciente. É o lugar da fantasia, o teatro do desejo.

É um labirinto.
Também é meio uma prisão. Foi-me muito útil.  Quando os portões se fecham, ouve-se esse som mais forte. É um lugar de esconderijo. Na censura, servia para falsificar álcool. É um lugar de hipocrisia, da transgressão. Deu-me imensas coisas novas. Vemos os animais, que são uma projeção psicológica do Eraldo. É um espaço elástico no texto e a nível visual. Há uma ópera em cada quarto. Temos os bastidores, temos o teatro, foi-se revelando um espaço fértil para esta história.

E os policiais, quanto o influenciaram?
Quando nasci, havia duas coisas que víamos muito em Fortaleza: as novelas, quatro por dia, era como beber água. As novelas é melodrama mal feito. Puro melodrama. Não tem outra maneira de as descrever. Na rede Globo havia a sessão da tarde com filmes americanos dobrados. Muito melodrama e cinema noir. O cinema noir nunca entrou nos meus outros filmes mas agora tenho ficado obcecado com esse género. Com um cinema que possa atrair um grande público, porque os números de bilheteira no Brasil são trágicos,  é preciso dar algum retorno para o dinheiro público. E na minha produtora queria trazer o género policial para a cultura do meu país. O policial não nos deixa dormir. O meu objetivo é fazer as pessoas não adormecer. É preciso trazer as pessoas de volta para a sala de cinema. Queria captar a atenção. Ensaiei algo assim no Firebrand mas aqui quis muito adensar essa engenharia do suspense. Com a estratégia de não fazer dormir.

Discute-se muito como o cinema ficou num lugar confortável que não desafia o espectador. Prefere ir para o outro lado?
Temos de assombrar o público. O policial é útil para isso. Foi interessante fazer o Vida Invisível (2019) porque tem códigos clássicos do melodrama, quais os movimentos de câmara, quais os personagens e o antagonista. O Martin Scorsese uma vez disse que cada filme dele é uma aprendizagem nova. Comigo, o Motel Destino também foi essa aprendizagem. Um começo de outro lugar. Fiz muitos filmes de cinema de autor. Queria entrar num lugar onde nunca tinha entrado. Para fazer com que o público estivesse presente.

"O policial é útil para assombrar o público. Foi interessante fazer o Vida Invisível (2019) porque tem códigos clássicos do melodrama, quais os movimentos de câmara, quais os personagens e o antagonista. O Martin Scorsese uma vez disse que cada filme dele é uma aprendizagem nova. Comigo, o Motel Destino' também foi essa aprendizagem. Um começo de outro lugar. Fiz muitos filmes de cinema de autor. Queria entrar num lugar onde nunca tinha entrado. Para fazer com que o público estivesse presente´"
Karim Aïnouz, realizador do filme "Motel Destino"

Considera que este filme vai contra uma certa tendência do festival de Cannes, cinema ocidental mas que também gosta de trazer outras vozes?
Fiquei surpreendido quando o filme foi selecionado para a competição oficial. Este é o meu sexto filme lá, nunca tinha tido um em que tivesse sido convidado mais de um mês antes da conferência de imprensa de apresentação da programação. Costuma ser na véspera, fica-se na aflição se se vai ou não. Já recebi telefonemas de Cannes  três horas antes da conferência de imprensa oficial. Estranhei ser tão cedo. Só vi três dos filmes da seleção, mas o meu é dissonante. Talvez por isso é que foi querido pelo comité de seleção. Senti que estava meio sujo quando saí em Cannes. Que era sujinho…

Também teve o Substance, da Coralie Fargeat, body horror sexual.
Mas esse é chique. Tem a Demi Moore. A Margaret Qually. Esse elemento trash do meu filme incomodou as pessoas. Não li as críticas, mas li que era um filme exótico. Gente, vamos parar com essa conversa, sou brasileiro, posso ser exótico. Sinto que sai dali com essa sensação: um filme que não lavou o pé.

O ocidente trata assim o Brasil ainda?
É condescendente e esquizofrénico. Como se não pudéssemos fazer um filme erótico. O Pulp Fiction (1994) é muito trash, nunca foi tratado assim. Outra coisa que achei curioso em Cannes é a questão dos orçamentos. No Firebrand tinha um orçamento milionário. Quem fez isso bem feito foi o realizador Hector Babenco. No meu caso, por exemplo, fui para a competição oficial com a equipa toda inglesa. É outra realidade. Este filme custou dez vezes menos. Mas, ao mesmo tempo, também houve, este ano, um filme iraniano e outro indiano. Não havia filme trash. De um lado, fico feliz de terem tido a coragem de o programar. Passei vários anos em que não fui selecionado. Não era porque não queria ir. Gosto que acompanhem o meu trabalho. Achei curioso de, todos os escolhidos, ter sido um dos primeiros selecionados. Fiquei contente de estar presente lá, foi tesudo estar em Cannes. Mas também senti que apresentei um filme trash que não se pode ver. Daí as perguntas da imprensa sobre erotismo e não sobre o filme em si. É como se não tivéssemos direito de fazer este filme.

Parece-lhe que, por vezes, o ocidente tem um lado condescendente com o Brasil, agora que o tema do colonialismo saltou para a agenda mediática?
O ser humano que é colonial, o seu comportamento e dinâmicas…tenho pensado nisso por causa da Argélia, terra do meu pai. São muitas gerações, foi muito profundo. Não se resolve do dia para a noite. A relação de Portugal com o Brasil é mais interessante. Se formos para a Argélia, é um regime mau, está toda a gente chateada. É um povo muito maltratado mas é autónomo. Morreram milhões de argelinos. Quanto a nós, nunca brigámos. Não é frontal. A colonização francesa ou espanhola é barra pesada. Há confronto. Nunca vi um brasileiro a ter raiva de um português. A sensação de fricção com o passado colonial é recente no nosso caso.

"Para mim é importante o exercício da liberdade. Se tiver alguma marca, embora não ache que tenha uma marca de autor, é a da liberdade. Sou livre porque tenho um lugar e foi isso que foi difícil durante os anos do Bolsonaro. Tenho sempre uma casa para voltar e brincar. É simples. Olho para realizadores amigos americanos da minha geração ou os ingleses, e talvez os franceses, em que é uma selvajaria"
Karim Aïnouz, realizador do filme "Motel Destino"

Há realizadores que se estabelecem num certo patamar e não querem olhar para trás. Não querem descobrir mais sobre si mesmos. O que descobriu sobre si com o documentário Marinheiro das Montanhas (2020)?
Que sou livre, posso fazer o que quiser se conseguir pagar as minhas contas. Há um limite da loucura, claro. Tive produtores a dizerem-me que não podia fazer esse documentário ou este filme. Que era pequeno. Qual era a minha ambição? Só fiz o documentário por causa da pandemia. Não estava a rodar nada. Não tinha nada. Tive o direito de fazer esse filme porque não podia fazer mais nada. Estou a fazer um filme novo, estou em pré-produção, inglês, mas quando fiz o Firebrand disseram-me que não podia fazer um filme em português. Porque não? Para mim é importante o exercício da liberdade. Se tiver alguma marca, embora não ache que tenha uma marca de autor, é a da liberdade. Sou livre porque tenho um lugar e foi isso que foi difícil durante os anos do Bolsonaro. Tenho sempre uma casa para voltar e brincar. É simples.

Olho para realizadores amigos americanos da minha geração ou os ingleses, e talvez os franceses, em que é uma selvajaria. Os franceses têm um financiamento incrível. Os americanos esperam imenso tempo entre filmes. Às vezes nem conseguem fazer. Se alguém fica no meio do caminho, é a lei do mercado que manda. Tenho o acesso à lei do mercado porque o conquistei e depois tenho o Brasil. Estaria tudo errado se tivesse feito o Firebrand e depois esta produção inglesa. O privilégio do Sul Global (América Latina, África ou Caraíbas), quando cruzamos o Equador para estar aqui, dá uma sensação de liberdade gigante. Este filme foi tão tesudo que falei que queria fazer uma trilogia. Tinha acabado de inventar [ri-se]. Pegou! Foi uma vontade de que não importava o que passava no Norte Global, porque o Sul Global faz parte da minha vida. E tenho uma ideia para a trilogia, atenção. Venho de um país com política de formação de audiovisual que é o Brasil. Tiraram-nos isso durante o Bolsonaro mas está lá.

Aprendeu a ser mais livre vivendo em Berlim?
Acho que sim. Primeiro, há a perenidade. Tenho 58 anos. Tinha 28 anos quando comecei a fazer o Madame Satã (2002), fiquei em Nova Iorque com pânico com a ideia de ter 60 anos e não ter trabalho. A minha mudança para Berlim foi por ir à procura do financiamento público. Essa escolha deu-me também liberdade. Saí do Brasil com 17 anos. É a minha casa e não é. Berlim deu-me a possibilidade de estar desse lado, ninguém sabe de onde sou. Não há um lastro colonial. É incrível.

Tem também a liberdade noturna.
Claro que também me mudei por causa dessa parte. Agora, politicamente o que se está a passar é assustador. Mas ainda me sinto livre.

Falemos de Todd Haynes, com quem trabalhou e realizou o “May December” o ano passado.
Li o guião mas ainda não vi.

Segundo a imprensa norte-americana, o filme foi mais desprezado porque fala sobre o quão perverso pode ser o papel de um ator.
Fui assistente do Todd durante muitos anos. Não estudei cinema, estudei teoria de cinema, quando acabei queria fazer cinema mas era muito caro. Não dava para pagar contas. Ele é uma grande inspiração. Não deixou de falar do que queria falar, apesar de estar dentro do sistema norte-americano.

O Karim foi criado com uma grande influência de mulheres. Falemos da personagem feminina, a Dayana, em jeito de conclusão da nossa conversa. Vemo-la por inteiro, complexa, com vontade sexual, que pode ser má, que tem desejo de vingança. Tinha de ser assim, dado a sua história familiar?
Sinto-me confortável a falar sobre isso. Jamais conseguiria fazer um filme sobre um jogador de futebol, detesto, muito alfa, muito heterossexual. Fui criado só por mulheres: mãe, avó, quatro tias. Filho único. Fui o primeiro da nova geração. Esse espaço do feminino deixa-me confortável. É-me familiar. Há muita horizontalidade, ninguém competia. Dei conta que fiz personagens femininas e continuo. Mas estou-me a interessar pela autópsia do masculino. Acho que o Motel Destino mostra essa transição.

O Elias, por exemplo, mais grotesco e violento, mais associado ao tradicional protótipo de homem viril não é unidimensional.
Ninguém é. É produto de um contexto.  O Eraldo está a tornar-se num homem, achei que, depois do Vida Invisível e do Firebrand, estava condenado ao lugar de homem que faz cinema para mulheres. E o pior que há é a zona de conforto. Isso não dá.

O que pensa sobre os portugueses?
Há um lado melancólico de um tempo que não vai voltar. O austríaco ainda acha que pode voltar. O bonito do português é achar que esses navios já foram e não voltam.

Nunca mais…
[ri-se] É uma visão romântica. Há uma pessoa que trabalha comigo, é angolana-alemã. Tenho aprendido muito com ela algo que não sabia: da tristeza da perda, típica do português. Sente-se muito na cultura portuguesa. Com o Salazar, ficaram isolados muito tempo.

A melancolia pode ser uma forma de arte?
Claro. É incrível. Pode-se entrar em muitos lugares. Quando há festas depois dos filmes em Cannes, fico a pensar nas festas portuguesas versus as festas brasileiras…

São diferentes.
[ri-se] É um traço compreensível. De um país que está à beira do abismo.

 
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