Conseguem atingir rapidamente os 100 quilómetros/hora e são capazes de transportar várias toneladas de droga numa única viagem. As conhecidas ‘narcolanchas’ são um trunfo para o tráfico de droga e esta segunda-feira preparavam-se para fazer chegar a Espanha, através do Estreito de Gibraltar, quatro mil quilos de haxixe e 627 quilos de cocaína quando foram intercetadas pela polícia espanhola. Estas “lanchas voadoras” eram controladas a partir de Lisboa por um “histórico narcotraficante” espanhol, Sergio Anaya, procurado em Espanha desde 2020 e que acabou detido pela Polícia Judiciária numa operação simultâneo dos dois lados da fronteira. É precisamente neste ponto que Portugal entra como facilitador ao tráfico de droga e se torna um sítio seguro para os traficantes: a legislação portuguesa, ao contrário do que acontece em Espanha, não criminaliza a compra e o uso de lanchas. Foi por isso que a rede ibérica de tráfico de droga desmantelada esta semana decidiu fixar a sua base logística em Lisboa. Aliás, Sérgio Anaya, considerado o líder do grupo que dominava o tráfico de cocaína e haxixe no Estreito de Gibraltar, foi o único dos 31 detidos que estava em Portugal.
“As lanchas, como a única função que têm é a de apoio ao tráfico, em Espanha são consideradas um forte indício de tráfico de droga, o que é suficiente para dizer que quem usa lanchas rápidas está a cometer o crime de tráfico de droga”, começa por explicar ao Observador fonte da Polícia Judiciária. Ao contrário, em Portugal, “estuda-se a legislação para eventualmente se adotar uma situação semelhante, mas ainda não se adotou”, acrescenta. É esta diferença que faz de Portugal um país apetecível para os traficantes espanhóis.
“Enquanto não se adotar [a mesma legislação], os traficantes espanhóis vêm aportar em Portugal, porque sabem que aqui não é assim. Às vezes, há apreensões por incumprimento administrativo — ou porque a lancha não está bem registada, ou porque tem combustível a mais nos depósitos e não têm licença para transportar combustível. Às vezes, há formas de, administrativamente, reter a lancha, mas não se pode, em termos de processo crime, promover uma detenção”, justifica ainda a mesma fonte da PJ.
Esta segunda-feira, a PJ fez buscas em cinco casas “num luxuoso bairro” da Grande Lisboa e Sérgio Anaya, descrito como “um histórico narcotraficante” e que era procurado pela polícia espanhola desde 2020, estava numa das casas. Entretanto, também fonte da PJ adiantou que já foi emitido um mandado de extradição, para que o narcotraficante, conhecido por ‘Bola’, possa regressar a Espanha, onde será presente a tribunal. Ao mesmo tempo, em Espanha, eram detidas outras 30 pessoas — incluindo quatro narcotraficantes que estavam a viver também em Portugal, mas que tinham viajado para o país vizinho.
????Desarticulada la mayor red de narcotransportistas del Estrecho por vía marítima a través de Embarcaciones de Alta Velocidad
????Operación conjunta con Guardia Civil, Agencia Tributaria y Policía Judiciária de #Portugal
????31 detenidos y realizados 24 registros domiciliarios pic.twitter.com/IB7XgwkGdU
— Policía Nacional (@policia) April 16, 2024
Era graças às lanchas rápidas, que estavam em permanência na água, que esta rede conseguia fazer chegar a droga a território europeu. No total, tinham sempre entre oito a dez lanchas rápidas — chamadas embarcações de alta velocidade — com a respetiva tripulação. E não faltava nada, já que tinham também pequenos barcos que usavam para levar comida, água e combustível.
A partir de Portugal, Sergio ‘Bola’ Anaya comandava o tráfico no Estreito
Mas não terá sido apenas pela facilidade na utilização de lanchas que esta rede decidiu fixar a sua base em Portugal. De acordo com fonte da PJ, “estavam em Lisboa, julgavam eles, menos controlados”. Nas casas de luxo, montaram um núcleo de coordenação com “as mais modernas tecnologias de comunicação”, referiu a PJ em comunicado, e o jornal regional La Voz de Cádiz adiantou que era através desta tecnologia que ‘Bola’ dava indicações sobre como mover as lanchas de forma a fintar as autoridades. Aliás, só nesta operação, foram encontrados quatro mil quilos de haxixe e 627 quilos de cocaína nas lanchas, uma mercadoria que teria como destino vários países europeus.
Nas mesmas casas viviam, além de Sergio Anaya, outros narcotraficantes que estavam já no radar da polícia espanhola: Francisco, conhecido como ‘El Piraña’, e os irmãos Miguel Ângel e Rafael, que faziam parte da rede ‘Río Piedra’. Estes narcotraficantes viajavam regularmente entre Portugal e Espanha e, segundo fonte da polícia espanhola ao El País, “iam e vinham, como se tivessem uma vida dupla”. “Dava a impressão de que tinham milhões, mas não sabiam onde gastá-los, nem o que fazer com a sua vida”, acrescentou.
No entanto, apesar do elevado nível de proteção, esta rede de tráfico de droga acabou por entrar nos radares da polícia quando, em maio do ano passado, tentou recolher um carregamento de seis mil quilos de cocaína de uma embarcação sul-americana que naufragou e lançou o alerta.
Tanto em Portugal como em Espanha, entre armas e 19 carros topo de gama, foram ainda encontrados um milhão e 400 mil euros em dinheiro. As notas, mostra o vídeo partilhado pela Polícia Nacional, estavam escondidas em várias divisões das casas, incluindo no chão da casa de banho.
Operação Dismantle: o fim de um dos maiores grupos de tráfico de Gibraltar e o início de Sergio Anaya em Portugal
Foi depois de as autoridades espanholas avançarem com a Operação Dismantleque SergioAnaya passou a centralizar em Portugal toda a operação logística da sua rede de tráfico. As operações a sul de Espanha têm sido constantes nos últimos anos, com dezenas de detidos, mas esta foi, segundo as autoridades espanholas, uma das maiores dos últimos anos. E permitiu o desmantelamento de uma das maiores redes de tráfico que usava também o Estreito de Gibraltar como via de entrada de cocaína e haxixe na Europa.
Graças a esta operação, que aconteceu em 2020, o clã Castaña, liderado pelos irmãos Antonio e Francisco Tejon, foi finalmente apanhado pela polícia espanhola. Foram presas 159 pessoas, entre elas o famoso ‘Bola’, que acabaria por fugir e manter-se em fuga nos quatro anos seguintes — até ser detido esta semana em Lisboa.
Antonio Tejon, um dos cabecilhas do grupo, esteve preso durante cerca de três anos, até agosto do ano passado, na prisão de alta segurança de Botafuegos, conta o jornal espanhol El Mundo. No entanto, acabou por sair depois de pagar uma fiança de 400 mil euros naquele que é considerado um dos maiores processos de tráfico de droga da Justiça espanhola. Nesta altura, os dois irmãos, que começaram aos 14 anos a assaltar farmácias e supermercados, estavam os dois em liberdade.
E só em janeiro deste ano é que, avançou o El País, Antonio Tejon, conhecido também como o ‘rei do haxixe’, foi condenado a seis anos e meio de prisão. Dos 157 detidos em 2020, 144 foram formalmente acusados e 97 foram condenados por “introduzir grandes quantidades de haxixe provenientes de Marrocos para a sua posterior distribuição a terceiros”, lê-se no acórdão, citado pelo mesmo jornal. O transporte estava dividido em duas partes: no mar, eram utilizadas cinco lanchas; em terra, eram utilizados jipes – alguns roubados – que distribuíam depois a droga pelo território europeu.