Tem sido notícia no Reino Unido pelas críticas dos empregadores e pelo ceticismo dos representantes sindicais, o que terá levado o governo trabalhista a amenizar a proposta. Na Austrália vai mesmo avançar. E em nove Estados-membros da União Europeia já é lei. O direito a desligar, ou o dever de os empregadores se absterem de contactos fora de horas, tem provocado muita polémica e, em Portugal, existe no Código do Trabalho desde 2022. Quem acompanha os assuntos laborais aplaude o passo, mas também diz que os efeitos são ainda limitados — em dois anos e meio de lei, só foram abertas duas contraordenações pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Em ambos os casos, o “dever de abstenção de contacto” foi posto em causa durante a prestação de regime de teletrabalho, embora a lei se aplique a todos os regimes de trabalho — presencial, teletrabalho ou híbrido, explica Maria Fernanda Campos, inspetora-geral da ACT, ao Observador.
Ambos os autos, relativos a dois trabalhadores, foram levantados à mesma entidade empregadora, uma pequena empresa do setor de atividades imobiliárias e consultoria. Os contactos fora de horas eram feitos através de telefonemas e por mensagem, incluindo aos fins de semana. Os processos contraordenacionais estão ainda em curso e não houve pagamento voluntário por parte do empregador, que contestou. Nestes casos, a ACT age em caso de denúncia, sendo que o incumprimento do dever constitui uma contraordenação grave, com coimas que variam entre 612 euros e 9.690 euros, consoante o volume de negócios e o grau de culpa da empresa.
A lei que entrou em vigor em janeiro de 2022 não prevê propriamente um “direito a desligar” (como, por exemplo, em França, que foi pioneira), mas um “dever de abstenção de contacto”. Estas formulações têm um significado diferente porque, como já explicaram advogados especialistas em direito laboral ao Observador, o ónus é colocado no empregador: é ele que deve abster-se de contactar. Mas há exceções: estão “ressalvadas as situações de força maior“, embora a lei não as especifique, o que pode dificultar os efeitos práticos.
Segundo a ACT, em causa nas duas contraordenações estiveram situações de incumprimento do dever de abstenção de contacto e não de discriminação dos trabalhadores que não responderam aos contactos fora de horas. É que a lei determina que os trabalhadores que não respondam no período de descanso não podem ser discriminados, o que também tem sido apontado pelos advogados como uma fragilidade da legislação.
“A lei remete para o artigo 25.º do Código do Trabalho que estabelece que quem invoca discriminação tem de demonstrar qual o facto e quais as pessoas em relação às quais se sente discriminado”, explica a advogada Rita Garcia Pereira, especialista em direito laboral. Depois, compete ao empregador demonstrar que aquela diferenciação (salarial, por exemplo) se deveu a razões objetivas e não a discriminação. O problema é que, “para conseguir lançar mão” dessa prerrogativa, “o trabalhador tem de saber, em primeiro lugar, que o colega foi aumentado e, em segundo lugar, que abre os emails. Como é que isso se sabe? Mesmo sabendo, basta à empresa dizer que o motivo [da diferenciação] não foi esse mas que o outro trabalhador é mais competente, trabalha melhor”, exemplifica.
A advogada não conhece nenhuma decisão em tribunal especificamente sobre a violação do dever de abstenção de contacto. Esta questão, quando aparece, está normalmente relacionada com casos mais abrangentes de assédio moral — é um “sintoma de comportamentos assediantes”, diz. Ainda assim, defende que foi um passo importante, desde logo pelo “efeito pedagógico” nas empresas.
Empresas atiraram direito de desconexão para regulamentos internos
O reduzido número de multas não se deverá a uma mudança radical das práticas dos empregadores e trabalhadores. Os especialistas contactados pelo Observador lançam algumas hipóteses: os funcionários queixam-se pouco aos empregadores (tendem a fazê-lo só no final da relação laboral), ou se o fazem não formalizam queixa à ACT, além de que há uma “normalização”e permissão dos contactos fora de horas.
“A perceção que tenho do contacto no terreno e do número de pedidos de intervenção que nos chegam, que são residuais, é que é encarado como normalidade, as pessoas não têm consciência de que têm um direito seu violado, admitem com muita facilidade que o empregador as contacte sem ser por um motivo de força maior”, defende Maria Fernanda Campos, inspetora-geral da ACT. Noutros casos, o trabalhador tendo consciência do seu direito a não ser perturbado no período de descanso “não interiorizou toda a dimensão desse direito e também não o faz valer, admite que é normal, um hábito integrado”.
Rita Garcia Pereira lembra que, pelo texto da lei, também não é certo se configura uma violação do dever de abstenção de contacto um email fora de horas, mesmo que esteja indicado que não é esperada uma resposta fora do horário de trabalho. “Considero que este artigo não tem tido uma aplicação prática, ou porque as próprias pessoas aceitam serem contactadas, ou porque não se queixam e não consideram uma violação dos seus direitos”, afirma. A advogada frisa que os trabalhadores tendem a queixar-se aos empregadores só no fim da relação laboral e quando estão em causa contrapartidas financeiras (como no caso do incumprimento das horas extraordinárias ou o pagamento da formação não prestada), o que não é o caso.
Além disso, “estamos em tempos de maior fluidez entre tempos de trabalho e não trabalho e essa fluidez funciona nos dois sentidos”. E acaba por dificultar a instituição de barreiras horárias muito rígidas. “Os próprios trabalhadores acham normal ir ao email ou ir ver o WhatsApp durante o seu tempo de descanso. Admito que eles próprios não se queixem porque de certa forma se normalizou este tipo de comportamento”, afirma.
Apesar disso, admite que a lei possa ter tido um “efeito pedagógico” não necessariamente no sentido de desincentivar os empregadores a enviar emails fora de horas, mas a esclarecer que não esperam uma resposta imediata fora do horário laboral. Se houve empresas que seguiram em frente como se nada fosse — e, de facto, como já tinham antecipado especialistas ao Observador aquando da aprovação da lei, a legislação não é muito clara — outras fizeram adaptações.
Segundo relatos recolhidos pelo Observador, embora sejam mais a exceção do que a regra, várias empresas atualizaram os regulamentos internos para estipularem que os contactos fora de horas não são permitidos, ou que o trabalhador não tem a obrigação de responder no período de descanso. Outra abordagem comum é a indicação, no final dos emails, de que não é exigida uma resposta no período não laboral. Há, também, quem esteja a ponderar mecanismos que cortam automaticamente o acesso a ferramentas de trabalho após o horário de trabalho, mantendo-se apenas para os cargos dirigentes e em situações de urgência.
António Carvalho, business manager da Gi Group, empresa especializada em gestão de recursos humanos, diz por sua vez que o dever de os empregadores se absterem de contactar os funcionários decorre mais de um debate que tem sido feito nos últimos anos sobre a conciliação entre vida pessoal e profissional e a saúde mental dos trabalhadores do que propriamente da legislação. “Não me recordo de que essa legislação de alguma forma venha à conversa ou que tenham sido tomadas medidas para ir ao encontro dela”, afirma.
Entre os trabalhadores, acredita, ainda há “no subconsciente quase uma obrigatoriedade de continuidade de trabalho”. “Não sinto no dia a dia que a legislação tenha sido efetiva.” Além do “facto de trabalharmos em regimes integrados, com colegas fora de Portugal, o que obriga a diferentes horários e impossibilita a boa intenção da legislação”.
Por outro lado, Marta Dias Gonçalves, líder da área de recompensas da Mercer Portugal, diz ter a perceção de que “efetivamente existe cada vez mais do lado das organizações uma preocupação e consciência relativamente ao bem-estar dos seus colaboradores”, onde se incluem os temas da conciliação. E do lado dos trabalhadores há “cada vez mais uma expectativa de que a organização lhes proporcione essas condições de bem-estar”. O baixo número de queixas pode dever-se a um “fator cultural”, “nomeadamente o existir um padrão anterior de existência desses contactos e de disponibilidade fora de horas, que acreditamos que influencia este tema”.
Maria Fernanda Campos, da ACT, defende que a “lei foi muito importante e está a fazer o seu caminho, mas demora, como todas as coisas que implicam alteração de comportamentos”.
Incumprimento ligado ao teletrabalho
As duas contraordenações levantadas pela ACT dizem respeito a incumprimento em regime de teletrabalho, que pode estar associado a maior desregulação dos horários de trabalho. “Há [no teletrabalho], em termos de saúde e segurança no trabalho, uma confusão entre aquilo que é o espaço de trabalho e não trabalho, quer em termos físicos de local de trabalho, quer em termos de barreira horária, de tempo de trabalho. Quando se está em teletrabalho é mais fácil não cumprir estes horários”, afirma Maria Fernanda Campos.
Não pagamento das despesas em teletrabalho só motivou uma contraordenação
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Desde o final de 2021 que os empregadores têm de pagar as despesas inerentes ao teletrabalho que o trabalhador possa ter. Segundo a lei, o empregador deve compensar “integralmente” todas as despesas adicionais que comprovadamente, o trabalhador suporte, como o acréscimo dos custos com energia. Esse pagamento pode ser definido através de acordo entre as partes ou com base em faturas que comprovem o acréscimo das despesas. Muitas empresas resolveram o problema passando a pagar um valor fixo aos trabalhadores para cobrir, pelo menos em parte, esse acréscimo.
Segundo Maria Fernanda Campos, inspetora-geral da ACT, a maioria das solicitações de intervenção que chegam à autoridade ligadas ao teletrabalho, e de contraordenações instauradas, referem-se ao incumprimento do direito de trabalhadores com filhos menores (até três ou oito anos, dependendo dos casos) e de famílias monoparentais terem teletrabalho. Também há “algumas” sanções relativas à igualdade de direitos e deveres e só uma contraordenação sobre o incumprimento do pagamento das despesas.
A ACT explica que não tem informação desagregada que permita contabilizar o número de pedidos de intervenção inspetiva relacionados com o “dever de abstenção de contacto”. Mas revela que, desde maio de 2023, foram recebidos através do portal 103 pedidos de intervenção inspetiva na matéria “teletrabalho”, “podendo alguns deles estar relacionados” com o dever de o empregador se abster de contactar os funcionários. Pelo menos um levou às duas contraordenações. A ACT sublinha que cabe ao denunciante escolher o tema do pedido de intervenção inspetiva que submete, o que nem sempre é feito da forma correta.
Além dos regulamentos internos e dos códigos de conduta, o dever de abstenção de contacto começa também a surgir nos contratos coletivos de trabalho. Dados enviados ao Observador pelo Centro de Relações Laborais (que todos os anos analisa os temas sobre os quais versam os contratos coletivos) revelam que, das 299 convenções publicadas em 2023, 10 versavam sobre o “direito à desconexão”: duas são convenções novas, quatro foram alvo de revisão parcial e outras quatro de revisão total. Em 2022, tinham sido oito, acima dos cinco de 2021 e outros cinco de 2020.
O relatório relativo a 2023 ainda não foi publicado, mas o de 2022 dá alguns exemplos de convenções coletivas que se debruçam sobre a questão e também estabelece uma relação entre o dever de abstenção de contacto e o teletrabalho: conclui que na maioria dos casos, a convenção regula o direito à desconexão no âmbito do teletrabalho. Por exemplo, o acordo de empresa entre o Citeforma (Centro de Formação Profissional) e o Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Serviços (Sitese) estabelece que “deve ser assegurado aos trabalhadores em teletrabalho o direito à desconexão, nomeadamente através da adequação dos meios de controlo de assiduidade e da utilização dos meios de comunicação em conciliação com os horários de trabalho”.
Segundo o Centro de Relações Laborais, “de um modo geral”, prevê-se “que a utilização de ferramentas digitais cedidas pela empresa deverá ter em consideração a necessária conciliação com o direito ao descanso do trabalhador, nomeadamente horários de trabalho, períodos de descanso entre as jornadas, de descanso semanal obrigatório, férias e dias feriados”. Noutros casos, estabelece-se que a empresa deve desenvolver “ações de formação e sensibilização de todos os trabalhadores para um uso razoável das ferramentas tecnológicas que evite o risco de fadiga”. Por vezes, também se remete o desenvolvimento do direito à desconexão “para regulamentação interna, com conhecimento dos sindicatos outorgantes”.
“De qualquer modo, os dados apontam para uma escassa representação na contratação coletiva” do dever de abstenção de contacto, conclui o Centro de Relações Laborais.
Nove Estados-membros têm “direito a desligar”
Bélgica, Croácia, Itália, França, Grécia, Luxemburgo, Portugal, Eslováquia e Espanha. São nove os países da UE que têm leis relacionadas com o “direito a desligar”, segundo uma análise do Eurofound publicada no final do ano passado com base em informação disponível até junho de 2023. Além destes nove países, a Irlanda adotou, em 2021, uma espécie de código de conduta, não vinculativo, que serve como orientação para empresas e trabalhadores. Embora não esteja vertido na lei, pode ser usado para a fundamentação de decisões pelos tribunais.
Muitas das alterações nos países aconteceram por causa da pandemia. Só a Bélgica, França, Itália e Espanha já tinham leis anteriores à Covid-19, mas na Grécia, Portugal e na Eslováquia as alterações já entraram em vigor após 2021, sobretudo à boleia da expansão do teletrabalho. A Croácia aprovou a lei em 2022 e o Luxemburgo em 2023.
Agora, o “direito à desconexão” tem sido notícia no Reino Unido, no âmbito de um pacote laboral que o novo governo trabalhista quer implementar. Mas a intenção inicial está hoje mais diluída. Segundo a imprensa britânica, a ideia de penalizar as empresas que não cumpram o direito a desligar pode, afinal, ficar-se por um código de boas práticas, semelhante ao que existe na Irlanda.
Fora da Europa, é na Austrália que o tema tem feito correr tinta. Desde final de agosto que a lei dá aos trabalhadores de empresas com 15 ou mais funcionários o direito a recusar-se a responder ou esperar por e-mails ou telefonemas dos chefes ou outros superiores. Neste caso, ao contrário do que acontece na lei portuguesa, o ónus é colocado no trabalhador: o empregador não está proibido de contactar, o trabalhador é que tem o direito de recusar responder.
Entra em vigor na Austrália lei que dá aos trabalhadores direito a desligar