O Papa Francisco fez esta manhã uma longa intervenção, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, no Centro Cultural de Belém perante as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático. Na sala, repleta, estavam presentes o primeiro-ministro, vários membros do Governo, de autarquias e do clero. O Observador transcreve na íntegra, com base na tradução oficial do Vaticano, a intervenção do Papa Francisco, que falou em italiano — ainda que com algumas citações em português.
“Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro. Distintos membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Ilustres Autoridades, representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço no Senhor Presidente o acolhimento e as amáveis palavras que me dirigiu. Estou feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal: torna-se de certo modo, a capital do mundo. Isto condiz bem com o seu caráter multiétnico e multicultural (penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas provenientes de mais de sessenta países) e revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes.
Não muito longe deste lugar, no Cabo da Roca, está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: “Aqui… onde a terra se acaba e o mar começa” (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, canto III, 20). Durante séculos, acreditou-se que lá estivessem os confins do mundo. E em certo sentido é verdade, porque este país confina com o oceano, que delimita os continentes. E, do oceano, Lisboa conserva o abraço e o perfume. Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: “Lisboa tem cheiro de flores de mar” (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972). Muito mais do que um elemento paisagístico, o mar é um apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português, podendo uma vossa poetisa celebrá-lo como: “mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” (S. de Mello Breyner Andresen, Mar sonoro) e outro poeta rezava assim: “Deus do mar dai-nos mais ondas, Deus da terra dai-nos mais mar” (D. Faria, o país de Deus). À vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo. Nesta linha, gostaria também eu de partilhar convosco algumas reflexões, deixando-me levar pela imagem do oceano.
Segundo a mitologia clássica, Oceano é filho do céu (Urano): a sua vastidão leva os mortais a olharem para cima elevando-se para o infinito. Ao mesmo tempo, porém, Oceano é filho da terra (Gea) que abraça, convidando assim a envolver de ternura todo o mundo habitado. Com efeito, o oceano não liga apenas povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto. As grandes questões hoje, como sabemos, são globais e já muitas vezes tivemos de fazer experiência da ineficácia da nossa resposta às mesmas, precisamente porque o mundo, diante de problemas comuns, se mantém dividido ou pelo menos não suficientemente unido, incapaz de enfrentar juntos aquilo que nos põe em crise a todos. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios.
Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Em 2007, foi assinado aqui o homónimo Tratado de reforma da União Europeia. Nele se lê que “a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos” (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1.4/2.1): mas vai mais longe afirmando que, “nas suas relações com o resto do mundo (…), contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos” (art. 1.4/2.5). Não se trata apenas de palavras, mas de marcos miliários no caminhos da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade. Este é o espirito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental.
Segundo uma etimologia, que é objeto de discussão, o nome Europa derivaria duma palavra que indica a direção do ocidente. O certo é que Lisboa constitui a capital mais ocidental da Europa continental, lembrando a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer sobretudo com os países de outros continentes irmanados pela mesma língua. Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o “velho continente”, um impulso de abertura universal. Na verdade, o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterraneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo e inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais tortas da realidade.
No oceano da história, estamos a navegar nem momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? E ainda, alargando o campo: Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social. Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas, sem comer atrás de teorias e colonizações ideológicas.
Com a sua imensa vastidão de água o oceano recorda as origens da vida. No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?
Mas Lisboa, abraçada pelo oceano, oferece-nos motivos para esperar. Há uma maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora. Quero agradecer o grande trabalho e generoso empenho empreendidos por Portugal para acolher um evento tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança, pois — como se diz por aqui — “ao lado dos jovens, não se envelhece”. Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos. Reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro. Vêm à mente algumas palavras ousadas de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso (…); o que é necessário é criar” (Navegar é preciso). Trabalhemos, pois, com criatividade para construirmos juntos! Imagino três estaleiros de construção esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade.
O ambiente. Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundeza, sobe à superfície torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?
O futuro é o segundo estaleiro de obras. E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma triste fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. A boa política pode fazer muito neste sentido, pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos. É chamada a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos. A isto mesmo faz apelo o sentimento da saudade portuguesa, que exprime nostalgia, desejo dum bem ausente, que só renasce em contacto com as próprias raízes. Neste sentido, é importante a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa história, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social.
O último estaleiro de esperança é o da fraternidade, que nós cristãos, aprendemos do Senhor Jesus Cristo. Em muitas partes de Portugal, está ainda muito vivo o sentido de vizinhança e solidariedade. Contudo, no contexto geral duma globalização que nos aproxima mas não aos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado. Com efeito, como observou Saramago, “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto” (Todos os nomes, 1997). Como é bom voltar a descobrir-nos irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de visão! Também aqui servem de exemplo os jovens que nos levam, com o seu grito de paz ânsia de vida, a derrubar as rígidas divisórias de pertença erguidas em nome de opiniões e crenças diversas. Soube de muitas jovens que cultivam, aqui, o desejo de se fazerem próximo dos outros; penso na iniciativa “Missão País”, que leva milhares de jovens a viver no espírito do Evangelho experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas, sobretudo nas aldeias do interior, indo ao encontro de muitos idosos sozinhos. Quero agradecer e encorajar a tantos que na sociedade portuguesa se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes. Sintamo-nos chamados todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnifico país. Deus abençoe Portugal!”