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À esquerda, Libuse Jarcovjakova, a fotógrafa que nasceu num regime de repressão na antiga Checoslováquia. À direita, Klára Tasovská, a realizadora que pegou no extenso arquivo fotográfico e diarístico da fotógrafa e fez um filme
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À esquerda, Libuse Jarcovjakova, a fotógrafa que nasceu num regime de repressão na antiga Checoslováquia. À direita, Klára Tasovská, a realizadora que pegou no extenso arquivo fotográfico e diarístico da fotógrafa e fez um filme

À esquerda, Libuse Jarcovjakova, a fotógrafa que nasceu num regime de repressão na antiga Checoslováquia. À direita, Klára Tasovská, a realizadora que pegou no extenso arquivo fotográfico e diarístico da fotógrafa e fez um filme

Libuse fez-se fotógrafa para fugir da repressão checa e do desamparo. Klára filmou-lhe a história e a obra

"Eu Não Sou Tudo o Quero Ser" é o retrato de uma mulher e de uma obra escondidas durante demasiado tempo. Estreou-se nas salas portuguesas e falámos com ambas, a protagonista e a biógrafa.

Eu Não Sou Tudo o Quero Ser: num tempo em que se fala tanto de uma “elevação do Eu”, de superação e de como o sucesso e a realização pessoal dependem do indivíduo e das respetivas aspirações, este título que Klára Tasovská escolheu para o filme sobre a fotógrafa checa Libuse Jarcovjakova é inspirador. Porque questiona muitos conceitos, entre eles um óbvio: até que ponto nos é permitido ser o que realmente desejamos? O filme estreou-se no Festival de Berlim deste ano, passou por outros palcos internacionais e teve honras de abertura na última edição do IndieLisboa. Chega agora às salas portuguesas.

Libuse, a fotógrafa, nasceu num regime de repressão na antiga Checoslováquia. Ainda adolescente, começou a tirar fotografias, sobretudo autorretratos (muitos, mesmo muitos) que serviam de ferramenta para se situar naquele presente. Ao mesmo tempo, procurava perceber a própria identidade, quais os bloqueios que tornavam esse entendimento distante e como poderia ultrapassar tudo isso. O trabalho de Libuse só foi descoberto – verdadeiramente – e reconhecido há muito pouco tempo. Esta forma de fotografar-se acontece sem que a própria tivesse noção de que era algo que outras fotógrafas procuravam. Ou seja, há uma certa inocência no ato, mas é uma inocência carregada de companhia: as fotografias e, em paralelo, os diários eram a companhia amiga que a ajudava a encontrar respostas e, sobretudo, a saltar por cima das limitações que encontrava na sociedade. Algumas eram limitações óbvias, outras era bloqueios que surgiam pela procura de experiência — por exemplo, quase se casa e pensa que no casamento pode encontrar a resolução de vários problemas, para cedo descobrir que afinal se tratava apenas de mais um coisa que não queria na sua vida.

Klára, a realizadora, pegou no extenso arquivo fotográfico e diarístico da fotógrafa e fez um filme. Pôs Libuse a ler os diários e a contar uma história de vida através dos sítios onde viveu até chegar a Berlim, nos anos 1980, quando fica mais perto do objetivo: descobre o que quer ser, percebe que pode vencer a sociedade patriarcal e libertar-se de condicionalismos — externos e auto-impostos.

Libuse estava à frente do seu tempo. E podemos sentir isso através da forma como descreve a sua vida – as experiências, a emancipação sexual, a forma como fala do seu corpo (e da questão do aborto) e da saúde mental – e, sobretudo, por aquilo que as suas fotografias nos dizem, sejam os autorretratos como as fotografias do quotidiano, entre casa, trabalho, bares, festas. As fotografias em Praga, sobretudo as do primeiro capítulo do filme, são exímias a mostrarem o ambiente de repressão, a necessidade de libertação e a derradeira resposta no álcool. Real e emotivo, navegamos através daqueles tempos sempre conscientes de que o filme é sobre a vida de Libuse, enquanto ficamos a conhecê-la, a ela e ao trabalho que fez. Conversámos com ambas, a realizadora do filme e a fotógrafa.

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[o trailer de “Eu Não Sou Tudo o que Quero Ser”:]

Como e quando é que descobriu que havia aqui um filme, uma história para contar no cinema?
Klára Tasovská (
KT) — A ideia veio de uma produtora de televisão checa. Convidaram-me para fazer um pequeno documentário sobre a Libuse, em volta da exposição dela no festival de fotografia de Arles, que foi uma grande exposição que ela fez em 2019. Conheci-a pouco depois e fiquei cativada de imediato pela personalidade dela. Daí a conhecer o seu extenso arquivo foi um passo. Nessa altura, percebi que tinha de fazer algo maior e que tinha de ser um documentário para lá daquilo que me foi proposto. Depois, tanto eu como ela não queríamos fazer um documentário com pessoas a falar do trabalho dela, não queríamos algo cheio de “cabeças falantes”.

Libuse Jarcovjakova (LJ) — Sempre fui muito cética em relação às abordagens de documentários sobre mim. Mas com a Klára houve um clique, temos as mesmas vibrações. Senti que podia confiar nela. E abri-lhe a porta, sem filtro, sem censura. Estou muito feliz por ter tomado essa decisão.

KT — Agradava-me esta ideia de criar uma experiência imersiva à volta da vida dela, com os diários e as fotos, sem imagens minhas. O filme não deveria ser sobre a minha história e a minha visão, a história contada do ponto de vista da Libuse.

Para isso precisou de navegar pelos diários de Libuse. Como foi esse processo?
KT — Li-os todos… comecei por aí. Ela escreveu a vida inteira nesses diários. E a partir deles construí a estrutura, percebi que queria mostrar a história dela cronologicamente e dividi-la em capítulos. E quis ilustrar as palavras com fotografias delas, muitos autorretratos, mas também as fotografias que mostram o movimento na sua vida. O filme começa quando ela tem 16 anos, quando fez o primeiro autorretrato.

A quantidade de autorretratos é impressionante. O que procurava com essas fotografias?
LJ — Inicialmente, tudo começou como um ato inconsciente. No início não tinha muita noção de que estava a fazê-lo ou por que razão o estava a fazer. Mas à medida que fui tirando mais fotografias e que as fui revelando, apercebi-me que era uma necessidade que eu tinha para perceber onde estava, qual era o meu lugar no mundo. Esperava encontrar algum sentido para a vida com aqueles autorretratos. Era por isso que tirava tantos, achava que poderia ter uma resposta através deles.

Tirou mesmo muitos…
LJ — Sim, porque era um processo de pesquisa, de análise sobre a minha vida. Isso tanto acontecia com as fotos como com os diários. Com as outras fotografias que tirava procurava outra coisa, estava focada nesta ou naquela situação concreta, neste ou naquele momento e não em algo que procurasse, uma estética ou um ideal de beleza.

"Fiz sempre tudo meio-meio, entre a intuição e a consciência daquilo que estava a fazer", diz-nos Libuse Jarcovjakova

Mas tinha noção da quantidade, de que tirava mesmo muitas fotos?
LJ — Não, sobre isso só me apercebi mais tarde. E ainda tive mais consciência disso quando estava a preparar este filme. Tirava muitas, muitas mesmo, não parava. Era uma obsessão, um hábito… tornou-se a base para perceber onde estava naquele momento e qual o meu aspeto numa determinada situação.

Daí o título do filme?
KT — Percebi muito cedo que o tópico principal do filme tinha de ser ela a encontrar-se a si mesma. A luta pessoal, o “quem sou?, para onde vou?”. Por vezes foi difícil ligar as ideias do diário e encontrar a foto certa, eu e o montador [Alexander Kashcheev] passámos quase dois anos na sala de montagem à procura das ligações que fariam maior sentido. Por vezes, há uma sensação de salto entre as fotos, de um movimento maior, porque não queríamos que a coisa parecesse um slideshow, de foto atrás de foto. Tentámos dar uma outra vida àquelas imagens, quisemos tornar mais vívido o quotidiano da Libuse.

A dado momento, diz que percebeu pouco depois de se casar pela primeira vez que o seu então marido não lhe podia dar a vida que queria. E o que era isso que queria da vida naquele momento?
LJ
— Algo mais simples do que se possa pensar… só queria sair de casa dos meus pais, não queria viver mais com eles, mas era difícil encontrar casa naquela altura. Não tinha uma boa relação com o meu pai. Estava à espera de começar a vida adulta, mas não foi possível fazê-lo com o meu marido, porque ele era muito dependente da mãe. Por isso, acabava por acontecer mais ou menos o que acontecia na minha casa.

Não se sentia livre, independente?
LJ — Aquela situação serviu para eu perceber que tinha de encontrar o meu próprio caminho para a independência, face aos meus pais e face ao meu marido. Mas levei alguns anos a consegui-lo, só quando me mudei para Berlim nos anos 80 é que comecei a viver a minha própria vida.

Essa procura pela independência é a razão para se sentir tão frustrada quando percebe que a universidade é exatamente o oposto do que procurava?
LJ — Durante anos o meu objetivo era ir para a universidade e foi-me sendo negado, era algo impossível. Tentei inúmeras vezes. Quando finalmente cheguei lá, senti-me a viver num país estrangeiro. Os meus colegas eram muito mais novos, o sistema de ensino era muito rígido. Passava a minha vida em bares. Mas foram estes passos que deram sentido à minha vida, porque tirava muitas fotos dessa minha vivência boémia.

Klára, da vivência que tem com Libuse, consegue perceber se ela tem consciência do realismo das suas fotos?
KT — Ela tem os diários escritos e os fotográficos. Penso que as fotografias destes momentos ordinários foram cruciais, porque contam a história de como o normal se torna no extraordinário. A forma dela mostrar o dia-a-dia, desde os seus 16 anos até agora, é algo que, do meu ponto de vista, é muito humano.

As suas fotografias, hoje são vistas como arte. Sente que naquela altura, quando era uma jovem adulta, fotografava com uma consciência artística?
LJ — Vou colocar as coisas destas forma: agora que olho para o meu arquivo e vejo a retrospetiva sobre a minha carreira na Galeria Nacional de Praga, reparo que há fotos que tirei quando tinha 16 ou 17 anos que são comparáveis a fotografias que tirei muito mais tarde. Por isso, acho que não mudei muito. Fiz sempre tudo meio-meio, entre a intuição e a consciência daquilo que estava a fazer.

Há pouco falou sobre como usava os autorretratos para perceber onde estava no mundo. Quanto tempo demorava a revelar as fotografias?
LJ — Muito pouco tempo… eu própria revelava. Onde quer que estivesse, conseguia sempre encontrar um sítio onde existia uma câmara escura, nem que fosse algo muito primitivo. Acontecia tudo no espaço de uma semana, no máximo. Era algo que fazia constantemente e naquela altura era mais simples, mais barato, especialmente para as fotos a preto-e-branco. Mas era um processo contínuo…

Libuse (à esquerda) estava à frente do seu tempo. E percebemos isso através da forma como Klára (à direita) descreve a sua vida – as experiências, a emancipação sexual, a forma como fala do seu corpo

Ainda escreve os diários?
LJ — Sim, mas são coisas que expõem uma certa falta de concentração. É uma consequência das tecnologias modernas, agora tiro muitos pequenos apontamentos, são mais tweets do que textos. Mas continuo a manter isso como uma atividade regular. E continuo a tirar fotografias todos os dias, ainda de forma analógica. Contudo, ultimamente revelo as fotografias num laboratório, o que demora mais tempo. Mas estou em vias de voltar a ser eu mesmo a revelar os negativos.

A fotografia digital entrou na sua vida?
LJ — Sim, um pouco… mas tiro mais com o meu telemóvel. Ainda assim, não gosto muito do digital…

KT — Penso que há algumas fotografias tuas, ali por volta dos 2010, que são digitais.

LJ — Sim, houve ali um período… mas estou feliz por o ter abandonado.

Klára, o que queria que transparecesse da vida da Libuse para a quem vê o filme?
KT — É uma história de luta pela liberdade. De uma forma única, muito pessoal, é uma história sobre emancipação, sobre ultrapassar os limites. Ela vivia num regime muito restrito e teve de aprender a encontrar estas ilhas de liberdade e procurar viver outras vidas, que não aquelas que eram permitidas. Por isso, acho tão importantes as fotografias do quotidiano, seja da vida nos bares, nas fábricas e, claro, as fotografias em volta do aborto, que era algo que não era permitido então.

LJ — Falam de uma grande restrição política.

KT — E o aborto hoje ainda é uma questão, não tanto na República Checa, mas na Polónia, por exemplo. E foi inspirador perceber o quão contemporânea a vida dela foi. Decisões que ela tomou, de não ter filhos, etc., dúvidas e angústias com as quais pessoas da minha idade também se debatem. E com o filme consigo trazer esses temas para a contemporaneidade e comunicar com a audiência e inspirá-las. Por vezes, até vejo o filme como um espécie de história coming of age, porque ela está sempre à espera de algo na sua vida. Isso tem muito de inspirador: com 68 anos, ela continua a ser a mesma pessoa, aquela miúda de 16 anos.

Como é experienciar este reconhecimento neste momento na sua vida?
LJ — Tive uma sorte tremenda em conhecer as pessoas com quem trabalho agora, são quase todos grandes amigos. E gosto de poder ser um exemplo para outros, sobretudo para uma geração mais nova, para que percebam que por vezes é necessário esperar para encontrar uma solução. Vivi parte da minha vida a sentir que as portas estavam fechadas, a receber “nãos” e a acreditar que sem entrar em certos lugares não haveria futuro. E, de repente, mesmo tarde, as portas abrem-se e há uma esperança. O filme espelha isso e isso deixa-me muito feliz. Apesar de tudo, apesar de ter perdido alguma da minha privacidade e algum tempo, continuo a ser a mesma pessoa. Provavelmente o meu ego agora é maior, mas espero que não cresça demasiado. Espero que um dia as coisas voltem a ser mais calmas.

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