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A embaixadora de França em Portugal recebe o Observador praticamente uma semana depois de uma moção de censura histórica ter derrubado o governo de Michel Barnier. O período é de incerteza total, com o Presidente Emmanuel Macron a garantir que apresentará um nome para novo primeiro-ministro “no espaço de 48 horas”. Hélène Farnaud-Defromont garante que não tem qualquer informação privilegiada sobre o que se passa na cabeça do Presidente: “Não posso dizer-lhe quem será o primeiro-ministro, se saberemos amanhã ou depois de amanhã. Nem quem será a pessoa”, admite durante a entrevista. “Eu não sei nada”, acaba por acrescentar com uma pequena risada.
Não é exatamente assim, é claro. Como diplomata experiente, baseia-se nas declarações públicas do Eliseu e dos restantes partidos políticos franceses para retirar uma conclusão: o próximo primeiro-ministro francês não deverá vir da União Nacional (que não foi convidada para ser ouvida por Macron), nem da França Insubmissa (partido de Jean-Luc Mélenchon que integra a Nova Frente Popular e que rejeitou participar nas consultas com o Presidente). No fundo, diz, não deverá vir “dos extremos”. O que não significa que Farnaud-Defromont não reconheça a situação difícil que França enfrenta neste momento: sem governo nem Orçamento do Estado, com uma Assembleia Nacional partida e em tensão política permanente. É um país ameaçado por aquilo que define como “engenheiros do caos”, nunca invocando o nome de Marine Le Pen — mas relembrando que “há mulheres também” nessa designação.
Apesar do diagnóstico sombrio que faz da situação nas democracias ocidentais — frisando que não é uma situação exclusiva em França —, a embaixadora francesa em Portugal continua a acreditar que o país manterá um papel de liderança fulcral na Europa. Repete e clarifica as mensagens repetidas por Macron nesta matéria: necessidade de aplicar uma estratégia conjunta para a Defesa na Europa; possibilidade de enviar tropas europeias para a Ucrânia por considerar que a “ambiguidade estratégica” ajuda na “mensagem” que se envia “a Putin”; e não colocar de parte a possibilidade de Paris vir a alargar o seu “guarda-chuva nuclear” ao resto da União Europeia.
Durante a conversa no palacete da Embaixada francesa em Portugal, Hélène Farnaud-Defromont também deixa claro que a França mantém ambições de intervir na arena internacional muito para lá do âmbito europeu, em particular no Médio Oriente, relembrando o papel francês no cessar-fogo no Líbano. Acredita que é possível conseguir o mesmo em Gaza, apesar de a região estar mergulhada “num ciclo de violência” que teme que se possa repetir agora na Síria, após a queda de Bashar al-Assad: “Sabemos que é uma região onde a desordem pode engendrar o caos. Isso aconteceu no Iraque, aconteceu na Líbia e pode acontecer na Síria. E, portanto, não devemos ser ingénuos”.
Paris, contudo, não parece disposta a abdicar dessa intervenção no plano mundial, mesmo quando isso lhe pode trazer dissabores internamente — afinal, França é o país com a maior comunidade muçulmana e a maior comunidade judaica da Europa. “Devemos tentar fazer com que a nossa política no Médio Oriente não esteja submetida a imperativos internos“, reconhece, tentando distinguir “as políticas do senhor Netanyahu” dos judeus franceses e não responsabilizando os muçulmanos franceses “pelos atentados do Hamas e do Hezbollah”. “Seria idiota reduzir o debate a isso”, afirma. Mesmo quando ele contamina tantas vezes tudo o que se passa numa França em ebulição.
Uma moção de censura histórica e uma Assembleia fragmentada. “É um pouco inédito, não é muito confortável, mas enfrentaremos isto”
Nos últimos dias tivemos a moção de censura ao primeiro-ministro Michel Barnier. Neste momento ainda não há um Orçamento de Estado para o ano que vem. E a Assembleia Nacional está muito fragmentada. A França vive um momento de instabilidade profunda, como não vivia há décadas?
De facto França conhece atualmente um período deveras inédito na sua História recente. É apenas a segunda vez que um governo em exercício é censurado pela Assembleia Nacional.
Não acontecia desde os anos 60…
Exato. Portanto, não é uma situação habitual para a República Francesa. Temos uma Constituição sólida, que prevê muitas situações e o Presidente [Emmanuel] Macron está, naturalmente, determinado em encontrar o mais rapidamente possível uma solução. Ontem [segunda-feira] recebeu e receberá esta tarde também todas as forças políticas presentes na Assembleia Nacional, exceto a extrema-direita, que não foi convidada, e a extrema-esquerda, que foi convidada, mas não quis responder ao convite. Veremos quais serão as conclusões deste encontro coletivo — porque Macron já recebeu cada partido político individualmente e esta é uma reunião com o conjunto das forças políticas, com exceção dos extremos.
Entendo que esta situação em França pode provocar questões, talvez até nervosismo, junto dos nossos grandes parceiros europeus, como Portugal, que têm muitas preocupações. Penso que devemos ter confiança na força das instituições francesas e na nossa tradição democrática. Pessoalmente, confio na democracia do meu país. Temos uma longa História democrática e queremos encontrar uma solução logo que seja possível. No que diz respeito ao Orçamento, no momento em que falamos França ainda não tem um para 2025, mas o governo demissionário anunciou ontem que amanhã [quarta-feira] será adotada uma Lei Especial no Conselho dos Ministros e, depois, será apresentada ao Parlamento no final desta semana.
A União Nacional já disse que faria aprovar essa lei.
Exatamente. Nenhum partido político disse que iria votar contra esta Lei Especial. Isso é importante, porque vai permitir-nos continuar a fornecer as prestações sociais, a pagar aos funcionários e a fazer a coleta de impostos. Ou seja, será a recondução do Orçamento de 2024 para 2025 e é, obviamente, uma lei transitória, porque a primeira prioridade do próximo governo, qualquer que seja, será propor um novo Orçamento ao Parlamento, para que no início de 2025 — é possível constitucionalmente, em circunstâncias especiais, adotar um novo Orçamento no início do ano — a França possa ter um Orçamento e funcionar.
Crê que vai ser possível encontrar um primeiro-ministro sem os tais extremos? No sentido em que, se for um primeiro-ministro à esquerda, como uma figura do PS, a União Nacional e os Republicanos podem não apoiar. E, se for o contrário, a Nova Frente Popular pode opor-se. É possível gerir esta matemática?
Matematicamente, a composição da Assembleia Nacional não mudou desde a moção de censura. Portanto, efetivamente, ela continua muito fragmentada — como é o caso da maioria dos parlamentos hoje na Europa. Todos os países europeus conhecem este movimento de fragmentação das forças políticas e de radicalização da paisagem política, seja com a extrema-direita ou com a extrema-esquerda. A França conhece uma evolução semelhante à da maioria de seus parceiros. Mas não temos um regime parlamentar e isso obriga os partidos políticos franceses e as nossas instituições a pensarem de forma diferente e a encontrarem uma solução inovadora, nova, para poder governar e poder adotar as reformas que continuam a ser necessárias, para responder às inquietudes dos franceses sobre questões como o poder de compra, o mundo agrícola… Uma vez mais, é uma questão de confiança. É um pouco inédito, não é muito confortável, nem para nós, nem para os nossos parceiros europeus, mas enfrentaremos isto e encontraremos uma solução. Não posso dizer-lhe quem será o primeiro-ministro, se saberemos amanhã ou depois de amanhã. Nem quem será a pessoa. Acho que ninguém sabe. Não sei se será alguém do centro-direita, do centro-esquerda… Eu não sei nada (risos).
A decisão é do Presidente.
Exato. É o Presidente quem decide e ele fará isso com base nas consultas e conversações que está a ter com todos os partidos representados, exceto com os extremos.
França pode emprestar o seu guarda-chuva nuclear à Europa? “Temos um estado de espírito aberto, porque se trata de responder a ameaças”
Falou da importância dos parceiros europeus e de como há alguma preocupação face à situação. Teme que a França esteja a perder influência na Europa? Temos outras figuras, como Giorgia Meloni, a ganhar relevância no plano europeu e Ursula von der Leyen parece ter uma boa relação com ela. Já com França Von der Leyen impôs a condição de não aceitar o comissário Thierry Bréton… Sente que há uma perda de influência que se agrava com esta instabilidade política?
Espero que não. Espero que essa não seja uma evolução ao longo do tempo, que não se instale. De qualquer forma, a economia francesa continua a ser uma das duas mais importantes da União Europeia. Além disso, nós somos, obviamente, um país extremamente envolvido nas questões da segurança europeia e da Defesa. E temos meios e um dispositivo de Defesa que são consequentes, também entre os mais importantes dos países europeus. Logo isso dá-nos, a nós franceses, uma responsabilidade, obviamente. E queremos, claro, continuar a exercer essa responsabilidade. Sermos uma força que faz propostas no seio da União Europeia, sermos também uma força que procura coligações e parcerias, cooperações, para poder responder aos grandes desafios do momento — e eles são muitos e são muito, muito importantes. Conjunturalmente, é verdade que quando um país tem dificuldades — e isto também é verdade noutros países europeus, que têm dificuldades internas — isso priva o país de um pouco de energia no plano europeu ou no plano internacional. Mas acredito realmente que é conjuntural, que é passageiro, e que a França continua determinada em assumir essas responsabilidades e a ser uma força de iniciativa e de fazer propostas.
Falou na Defesa como uma grande área. Com a eleição de Donald Trump e toda a incerteza relativamente à NATO e ao seu futuro, a França pode tentar assumir a liderança nas questões da Defesa na Europa? De que forma é que pode fazer? O que é que pode propor ou está disposta a propor?
De facto, as questões de segurança e de Defesa europeia são mais do que nunca agudas e importantes, devido ao contexto na Europa e no mundo internacional. O que nós pensamos é que de uma dificuldade nasce sempre uma oportunidade positiva. E, atualmente, penso que cada vez mais e mais países europeus tomam consciência de que nós devemos, entre os europeus, acelerar o nosso processo em direção a uma autonomia estratégica. A autonomia estratégica é, ao mesmo tempo, uma autonomia de pensamento, de conceção. Como europeus, nós já fizemos esse trabalho, mas agora temos que acelerar. Começámos há alguns anos esse trabalho com a adoção da bússola estratégica, por exemplo. Mas devemos ser bem claros sobre quais são os nossos interesses em termos de segurança, quais são as ameaças que pesam sobre esses interesses e quais os meios que temos para responder, para enfrentar essas ameaças. É muito simples, mas…
É simples na teoria.
Sim, sabemos que é mais complicado. Intelectualmente é simples, mas é mais complicado na aplicação. Contudo, o que observamos é que, à medida que os eventos ocorrem, mais e mais europeus evoluem em relação a essa necessidade de sermos responsáveis coletivamente pela nossa própria segurança. Portanto, a partir daqui, é necessário encontrar os meios, incluindo financeiros. Por isso sem dúvida que temos de criar novos instrumentos de financiamento da Defesa europeia. Há várias opções possíveis: a senhora [Kaja] Kallas, por exemplo, que agora é a nova Alta-Representante para a política externa europeia, falou na ideia de um novo empréstimo para as questões de Defesa [através de uma emissão de dívida conjunta], temos as ideias dos defense-bonds… Ou seja, sabemos quais são as opções possíveis, mas é preciso colocarmo-nos de acordo para passar à aplicação e recriar uma base industrial de Defesa e segurança na Europa. Para que sejamos autónomos no plano de produção de meios de Defesa e para que possamos, novamente entre europeus e não país a país… Sei que os franceses são um pouco suspeitos de querer vender o seu armamento. Sim, é claro, temos indústrias que produzem armamento e que deixaram a sua marca. Não vou dizer, como embaixadora de França, que não quero que elas vendam. Mas essa não é a nossa principal motivação. A motivação é que devemos trabalhar no nível europeu, como fazemos para tudo o resto: no plano agrícola e de alimentação da nossa população, no plano, por exemplo, dos medicamentos… Lembremo-nos que na pandemia conseguimos, a nível europeu, certos medicamentos que não eram produzidos em solo europeu e tinham de ser importados do exterior. Portanto, temos que ter capacidade de sermos autónomos nesse plano. No plano da conceção, no plano da vontade de ação e também nos meios que se dão para responder às ameaças.
Isto não é necessariamente uma boa notícia, porque isso quer dizer que as ameaças estão a crescer e isso nunca é uma boa notícia para as nossas populações e para os nossos Estados e governos, mas ainda penso que a Europa da Defesa está a atravessar uma nova etapa e a ideia é fazer isso com a NATO, é claro. Não é uma questão de substituir a Europa da Defesa pela Organização do Tratado do Atlântico do Norte, que é realmente a base da segurança coletiva euro-atlântica desde 1949. Não estamos com a ideia de passar de um sistema para o outro, temos que trabalhar juntos, a ideia é que os países europeus que estão na NATO trabalhem em conjunto um pilar europeu de Defesa. E, por outro lado, que esses mesmos países europeus se dotem de capacidade de conceção, mas também de intervenção ao nível da União Europeia.
Falando em meios, a França é o único país da União Europeia que é uma potência nuclear. Essa é uma das opções que França está disposta a alargar à União, ou mantém-se uma prioridade nacional?
A dissuasão nuclear, como sabe, é um assunto… Só há uma pessoa em França que pode falar sobre isso, o Presidente da República. Nenhuma outra pessoa está autorizada. Mas, efetivamente, o Presidente Macron, por várias vezes nos últimos anos, disse que nós, franceses, sobre este tema, temos um estado de espírito aberto, porque se trata de responder a ameaças. Atuais, evidentemente.
O apoio total a Zelensky se quiser negociar e se quiser continuar a lutar. Com tropas europeias no terreno? “Não devemos excluir nenhuma opção”
A ameaça de que falamos é a Rússia?
Claro, é evidente. Com um Presidente russo que regularmente agita a ameaça nuclear… É extremamente irresponsável da parte de um país dotado de armas nucleares, porque um país desses tem precisamente uma responsabilidade muito particular, muito eminente, e não se brinca [com isso]. Nem sequer no plano da linguagem. É algo que os franceses, tal como os americanos e os britânicos, querem proibir a priori. Por isso apelamos obviamente à Rússia a que se mostre mais responsável nesse domínio também, a propósito de uma eventual ameaça nuclear. De qualquer forma, é necessário no contexto geopolítico e geostratégico que se instalou há alguns anos, em particular desde a agressão da Ucrânia pela Rússia, vermos bem que estamos numa situação em que devemos repensar o conjunto do nosso conceito estratégico. Nós fizemos isso em França, nós fizemos isso a nível europeu, nós fizemos isso entre aliados da NATO, e tudo isso deve ser coerente, compatível e devemos estar efetivamente prontos a defender-nos.
E continuar, sobretudo, a defender os ucranianos. Porque o combate que eles fazem é um combate por eles próprios, pela sua população, pela sua integridade territorial e física, mas é um combate mais amplo, é um combate que nos interessa. Eles defendem valores que são, para nós, fundamentais — os da construção europeia e da Aliança. E por isso é necessário, e é o que a França decidiu fazer, continuar a apoiá-los até o fim. Sem intervir, deixando todas as opções abertas. Os ucranianos é que decidirão em que momento e de que forma desejam passar para um processo de reestabelecimento da paz. Nós não podemos, mesmo sendo parceiros aliados, impor o momento e o caminho. Eles é que pagaram o preço em sangue, que o pagam há quase três anos, e, por isso, são os mais aptos a dizer em que momento podemos passar para um processo de paz. O nosso trabalho como aliados da Ucrânia é o de os ajudar a partir para o momento das negociações numa posição de força. Sou uma diplomata a falar e é claro que, em algum momento, o diálogo deve chegar, para se falar de paz no conflito. Mas sabemos que é muito diferente quando abordamos uma discussão de paz a partir de uma posição de força ou de uma posição de fraqueza. Não tem nada a ver. O nosso trabalho, a nossa missão, é ajudar os ucranianos a estarem numa posição de força no momento em que o decidam [fazer].
O Presidente Zelensky sugeriu esta proposta de parte da Ucrânia tornar-se um Estado-membro da NATO, possivelmente da União Europeia também. A França acolhe bem essa ideia e irá defender essa proposta da Ucrânia se eles quiserem avançar?
Sim, mas, uma vez mais, Zelensky é que tem que decidir. Nós podemos ter, e é o que fez o Presidente Macron há alguns dias — encontrando-se com o presidente Zelensky e o Presidente-eleito americano, Donald Trump, para a reabertura de Notre-Dame de Paris —, um papel de facilitador, de mediador. E isso faz parte da tradição diplomática francesa. Mas, de novo: o momento e a forma como as partes lidarão quando partirmos para a discussão de uma solução para a paz, cabe primeiro ao Presidente Zelensky decidir.
Tendo em conta que poderá haver resistência de outros países, como os Estados Unidos, mas também por exemplo a Turquia, França poderá tentar pelo menos que a Europa esteja unida nessa defesa do interesse ucraniano de entrar na NATO?
Sim. É fundamental que a Europa permaneça solidária, permaneça unida. Temos argumentos para isso, e sim, percebemos que pode ser o nosso papel, como franceses, de ajudar nessa união. O que observo é que, sobre a questão ucraniana, sobre a ajuda prestada à Ucrânia no seio do Conselho Europeu… Sabemos que há pequenas nuances de análise por parte de certos países-membros, mas nunca houve oposição de um Estado-membro, por exemplo, a uma nova tranche de sanções, ou ao crescimento da ajuda militar fornecida pelos Estados europeus à Ucrânia. Ou seja, pode haver nuances de apreciação, mas, no final, há uma unidade sobre este assunto
Mas o Presidente Macron chegou a sugerir o envio de soldados para a Ucrânia e muito poucos países parecem ter apreciado essa ideia…
Sim, é verdade. A França continua a pensar que não devemos excluir nenhuma opção. É um conceito, é uma abordagem de ambiguidade estratégica que nos parece necessária para a mensagem que enviamos a Putin.
“A questão da reconhecimento do Estado palestino não é de todo tabu”. Mas depende “do timing”
Olhando agora um pouco para o Médio Oriente. A França tem também abordado este tema, defende há muitos anos uma solução de dois Estados [no conflito israelo-palestiniano]. Poderá adotar uma posição, como outros países europeus já fizeram, de reconhecimento do Estado palestiniano?
A questão da reconhecimento do Estado palestino não é de todo tabu. Pelo contrário, a França é favorável. A questão é quando, em que momento. Para que seja verdadeiramente um argumento no processo para a paz. É uma questão de timing. Em termos de princípio continua a parecer-nos evidente, apesar desta situação terrível que dura na região há mais de um ano, que no final a solução deve ser a de que haja dois Estados: um Estado israelita que esteja em paz, é claro, e que tenha segurança; e um Estado palestiniano que esteja também protegido pela comunidade internacional e cujas fronteiras sejam obviamente as fronteiras reconhecidas pelas diferentes resoluções das Nações Unidas. Portanto, a solução dos dois Estados é um bom objetivo. Mas quando é que será útil, numa dinâmica de discussão, de negociação, fazer isto? Neste momento, é difícil de dizer. Para além disso, acho que nós temos interesse em fazê-lo de forma coordenada entre os europeus. Esse ato de reconhecimento será ainda mais forte se tiver o maior número possível de Estados, principalmente europeus, a reconhecerem juntos, ao mesmo tempo, um Estado palestiniano. Atualmente, todas essas condições não estão reunidas, mesmo todos nós esperando que isso venha o mais rapidamente possível.
A França continua, como sabe, a exigir a cessação imediata das hostilidades, a libertação de todos os reféns israelitas sobre os quais ainda não temos notícias, e a continuação do fornecimento de uma ajuda humanitária em massa. Para isso, exigimos aos israelitas que deixem a ajuda humanitária entrar em Gaza, em particular, para se poder, obviamente, ajudar as populações. O balanço é terrível. Passaram 13 meses desde os massacres terroristas do 7 de Outubro de 2023, e vemos bem que hoje é toda a região que está mergulhada num ciclo de violência. É violência contra violência contra violência. E isso não pode durar, a violência pura nunca permitiu alcançar qualquer objetivo. É destruição: destruição de pessoas, de população, do futuro dessas populações e a destruição física e material. Absolutamente terrível. Portanto, esse ciclo de violência tem de parar. E, para isso, os primeiros que o podem fazer são os beligerantes. Daí que continuemos a exigir um cessar-fogo absoluto. Conseguimos, mesmo que não seja perfeito, um cessar-fogo no Líbano, com o acordo do 26 de novembro.
França esteve envolvida. Acha que também pode vir a estar numa solução semelhante para Gaza?
De facto gostaríamos de obter também um cessar-fogo em Gaza. Agora temos a situação na Síria também… Toda a região continua a mexer-se muito, muito fortemente. Obviamente que a queda de Bashar al-Assad é uma boa notícia. A queda de um ditador é sempre uma boa notícia…
Mas e depois?
Exato. O que vai acontecer? A coligação de grupos rebeldes que tomou o poder em Damasco, os novos mestres de Damasco, não são conhecidos por serem grandes democratas. Nós identificámos entre os grupos que derramaram o regime de Assad jihadistas franceses, bem conhecidos.
Isso preocupa particularmente Paris?
É um enorme tema de preocupação. Temos de ficar muito vigilantes sobre a forma como a situação vai se desenvolver agora, nos dias, semanas, meses que vêm. Nós, como em todos os países europeus, estaremos atentos a que os direitos humanos, incluindo em particular os direitos das mulheres, sejam respeitados e que [haja] o respeito por todas as minorias que se encontram em Síria — os cristãos, os curdos do Nordeste…. Não se trata de substituir um regime ditatorial por outro. Essa não é a perspetiva que queremos. No entanto, a França, que conhece bem essa região, que tem uma História com essa região, está disponível para ajudar e facilitar a instalação de um processo de paz e de um processo de restauração de um Estado onde todos os direitos das pessoas sejam respeitados. Por isso, vamos seguir as coisas muito de perto. Uma vez mais, alegramo-nos com a queda de Bashar al-Assad. Que, por outro lado, é também um sinal de um enfraquecimento do Irão, o que é positivo, e de um enfraquecimento da Rússia, que não foi capaz de apoiar o seu cúmplice, o seu proxy — o que é positivo também. Mas sabemos que é uma região onde a desordem pode engendrar o caos. Isso aconteceu no Iraque, aconteceu na Líbia e pode acontecer na Síria. E, portanto, não devemos ser ingénuos, devemos estar atentos e ajudar, efetivamente, as forças que realmente querem permitir à população síria renovar-se com um período de calma e um caminho para uma democracia.
E quando Macron abandonar o Eliseu? “Há políticos honestos, decididos a evitar o caos”
França é um país que tem uma enorme comunidade de origem árabe e a maior comunidade judaica da Europa. Qualquer ação no Médio Oriente pode ter repercussões dentro de França, porque são comunidades que acabam por se expressar sobre esses temas e temos ataques antissemitas e antimuçulmanos muitas vezes. A política interna pode condicionar a ação de França no Médio Oriente?
É verdade que França é o país da Europa que tem a maior comunidade muçulmana e, além disso, os judeus franceses são, efetivamente, muitos também. Infelizmente, assistimos desde o 7 de outubro de 2023 a uma ressurgência de atos antissemitas terríveis, que não víamos em França há décadas e que pensávamos [ser] impossível que regressassem. Além disso, há também uma estigmatização de uma parte da comunidade muçulmana. É verdade que tudo o que acontece no Médio Oriente — e isso não é novo, é historicamente verdade — tem uma ressonância no meio da sociedade francesa. É necessário, obviamente, condenar e sancionar muito severamente todos os atos e discursos antissemitas. A mesma coisa se há atos e discursos antimuçulmanos. E devemos tentar fazer com que a nossa política no Médio Oriente não esteja submetida a imperativos internos. Queremos fazer a distinção: podemos não concordar com a política feita pelo senhor Netanyahu, por exemplo, mas não vamos estigmatizar os judeus de França. Isso não tem nada a ver, queremos distinguir completamente as coisas. Da mesma maneira, os muçulmanos, que são a segunda comunidade religiosa a seguir aos católicos em França, não são individualmente ou coletivamente responsáveis pelos atentados do Hamas ou do Hezbollah. Seria completamente idiota reduzir o debate a isso. Por isso, devemos evitá-lo.
Mas não há partidos em França, quer a União Nacional quer a França Insubmissa, que têm explorado essa perspetiva?
Sim, certos partidos políticos em França talvez joguem essa cartada, tem razão. Mas isso é o que chamo de estratégia do caos. Os engenheiros do caos são, infelizmente, muitos — e muitas, porque há mulheres também — e cada vez mais, em todas as nossas democracias ocidentais. Não devemos cair nas armadilhas deles. Devemos descodificar as tentativas de instrumentalização de um lado e do outro. E devemos tentar manter a cabeça fria, ter uma ideia clara dos nossos valores, do que queremos para o nosso país e para a Europa, da forma como queremos interagir com o resto do mundo. E tentar não nos deixar apagar por esses falsos debates, a radicalização, a ausência de nuances, a ausência de memória, a ausência de sentido histórico, que faz com que coloquemos tudo misturado, para que se faça barulho e para que isso crie divisões suplementares dentro das nossas sociedades.
Há, além disso, ingerências estrangeiras — em particular russas e chinesas — que jogam com esta divisão nas nossas sociedades. Vemos o que aconteceu na Roménia recentemente. Devemos ter consciência, não devemos minimizar, mas não devemos deixar que isso seja a única forma de pensar em nossas sociedades e populações. É muito difícil, porque é preciso tomar conta de muita coisa ao mesmo tempo, mas não acho que seja impossível. Não considero que as pessoas sejam idiotas, que acreditam em tudo o que lhes contam e em tudo o que leem nas redes sociais. Isso não é verdade. Isto também faz parte de uma estratégia do caos: dizer às pessoas ‘Vocês têm toda a liberdade de expressão, vocês podem dizer tudo o que quiserem’ e, ao mesmo tempo, vê-las como pessoas incapazes de terem espírito crítico e de serem capazes de distinguir o falso do verdadeiro. É preciso responsabilizar as pessoas, é necessário ajudar os nossos jovens a fazerem a sua parte, distinguir as fake news, não caírem em círculos radicalizados. E isso é totalmente possível.
É o papel dos media sérios e tradicionais, da escola, das famílias e, claro, dos políticos, que fazem a distinção entre um discurso de raiva, de estigmatização, de confusão, e um discurso que seja de convicções. Podemos tê-las e devemos tê-las, podemos discordar, mas expressar isso com respeito e argumentando, sobretudo. Com factos. E quando há fake news, devemos desmontá-las. E quando há tentativas de ingerência estrangeira, devemos mostrá-las ao público. Não devemos não falar sobre isso. Devemos dizer ‘Vejam, isto aconteceu, houve uma tentativa de ingerência em massa’. Temos que denunciá-lo publicamente, para consciencializar toda a gente do perigo. As forças que crescem por radicalizarem o seu discurso, por misturarem e esquecerem a História, são forças do caos. Sem dúvida vamos ter que lidar com isso. Todas as nossas sociedades, durante alguns anos, talvez algumas décadas — espero que não, porque eu gostaria de ver o fim deste período muito confuso… Mas, no entanto, temos armas e ferramentas para combater este tipo de tentação e acho que, no final, ganharemos. Contudo, é verdade que, atualmente, este é um período muito complicado, principalmente para os jovens europeus ou os jovens americanos, que recebem tudo isto em massa. E a vida deles é muito mais complicada do que a das gerações anteriores. ‘Onde está a verdade?’, ‘Onde está a falsidade?’, ‘Quem é o mentiroso?’, ‘Isto é uma conspiração?’ Exigimos-lhes que sejam extremamente inteligentes para conseguirem precisamente distinguir as coisas.
O facto de o Presidente Macron ter escolhido para seu primeiro-ministro a seguir às eleições Michel Barnier — que não pertencia nem à Nova Frente Popular, nem à União Nacional — não pode contribuir para este distanciamento dos eleitores? Barnier pertence aos Republicanos, que não tiveram um resultado muito expressivo. Isso será corrigido agora?
Não posso dizer-lhe como as coisas vão se passar. Sinceramente, tenho esperança de que a razão ganhe. A razão e o sentido de interesse comum, de maneira a que possamos encontrar um caminho para mais estabilidade, mais calma e mais pacificação também. Mas é difícil garantir que isso acontecerá assim. Em qualquer dos casos, todas as personalidades responsáveis na França de hoje em dia procuram, justamente, encontrar esse caminho da razão. Se somos tantos a querer uma coisa, havemos de lá chegar! Mas é verdade que vivemos, dentro das nossas sociedades, tal como no plano internacional, uma fase de grande confusão. A que se somam transições, que não são necessariamente negativas, como a transição energética e as questões do clima. São positivas, mas as transições são sempre perturbadoras, são sempre desestabilizadoras. O antigo equilíbrio já não existe, isso é claro, mas ainda não encontrámos um novo equilíbrio. Estamos neste intervalo, os desafios são muito fortes e acredito que não nos devemos deixar impressionar, nem devemos ter medo. É preciso ter confiança coletiva, porque o medo é sempre mau, é sempre um péssimo conselheiro que leva a fazer coisas erradas, a dizer coisas erradas. Portanto, é necessário um esforço individual, de cada pessoa, cada cidadão, cada cidadã. E de, forma coletiva, manter, mais uma vez, a cabeça fria e ver bem quais são os objetivos em que nos queremos fixar. É necessário continuar a lutar contra a desregulação climática, é necessário continuar a defender os direitos humanos e a democracia, porque é o melhor sistema, à exclusão de todos os outros. Uma ditadura, um regime autoritário, pode trazer uma ilusão de estabilidade, mas a História mostra que na verdade não é assim. A História não vai nesse sentido.
E, além disso, temos de ter a capacidade de continuar a defender convicções, seja a igualdade entre as mulheres e os homens, seja a inclusão social, mas sem nos deixarmos impressionar. Devemos tentar abstrair-nos de todo esse barulho e fúria, principalmente dos redes sociais e dos movimentos políticos radicalizados, que jogam esta estratégia do caos, de maneira a manter um foco. E acho que, no final — gosto de ser otimista, tenho de ser otimista —, vamos derrotá-los. Entretanto haverá danos, isso é certo, e teremos que reconstruir, sem dúvida. Tenho muita confiança na nossa juventude, que tem muitas dificuldades, incluindo no plano económico e social, mas que tem uma chama interior, principalmente sobre estas questões de grandes equilíbrios como o planeta, as mulheres e os homens… E que fazem com que, no final, seja isso a vencer.
E tem esperança que o centro sobreviva quando Emmanuel Macron terminar o seu mandato, em 2027?
Vamos ver. Isso faz parte das coisas que aí vêm. Mas, de qualquer forma, há homens e mulheres políticos que são extremamente honestos, que têm convicções verdadeiras, de rigor, de razão. Em França, como em Portugal, como em todo o mundo. E que estão decididos a evitar o caos.