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Lisboa, cidade das sete colinas, metrópole da luz branca que não se encontra em lugar nenhum, capital do lendário pastel de bacalhau com recheio de queijo da serra. No fundo, os lugares são aquilo que fazemos deles, as camadas que lhe vamos adicionando, as narrativas que vamos preferindo e as que deixamos morrer. Por exemplo, que é feito da livraria Portugal? Hoje em dia é um café. Da Barateira? Hoje em dia é um barbeiro-bar-petiscaria-estabelecimento de fusão. Onde pára a livraria do Diário de Notícias, ao Rossio? Cedeu aos encantos de uma feira de tecidos. E por aí fora.
É claro, surgiram novas livrarias ao longo dos últimos anos e outras tantas vão continuando, como a Ferin, a Buchholz e a Barata da Avenida de Roma, estas últimas mantendo uma relação, digamos, particular, com um dos grandes grupos editoriais portugueses. Abrem umas, fecham outras, o ciclo natural da vida, o progresso, a evolução que levou ao aparecimento dos polegares oponíveis e dos tops de não-ficção. E pronto, em honra de Jacques de La Palice este artigo poderia morrer aqui. Acontece que as últimas semanas mostraram-nos um desequilibrar da balança em termos de diversidade e representatividade neste ramo do negócio que alguns ainda arriscam classificar de especial.
Afinal de contas estamos a falar de um produto – o livro – que tem direito a um IVA de 6%, ao contrário do que acontece com bens que nada têm a ver com a cultura, como é o caso dos bilhetes para espectáculos de dança, teatro ou música. Ou seja, o livro tem um estatuto único no imaginário colectivo e costuma ser sinónimo de instrução, saber, elevação. Mas também pode ser sinónimo de terceira cavidade no estômago dos ruminantes (definição Priberam), o que significa que há livros para todos os gostos e feitios. Lugares para degustá-los, folheá-los, comprá-los, é que vão de alguma forma escasseando. Senão vejamos:
Num curto espaço de tempo, fecharam a Book House do Saldanha e a sua associada na Calçada do Combro, arruamento que está a sofrer um processo acelerado de gentrificação.
Fechou a mítica Lello da Rua do Carmo, sinal de que as mulheres bonitas, subindo o Chiado, já não o fazem para comprar o último romance do Lobo Antunes.
Foi declarada a insolvência da Bulhosa Livreiros, não há muitos anos uma referência no negócio – pela gestão de espaços de referência, como a livraria de Entrecampos, e pela qualidade da equipa de livreiros que soube manter durante muito tempo.
E, cereja amarga no topo do bolo, chegou a notícia do encerramento da Pó dos Livros, espaço que tem um papel prepoderante neste artigo. À data da entrevista com Jaime Bulhosa ainda não era conhecido este desfecho, mas nestes tempos vorazes em termos de mercado e pressão comercial, tudo pode mudar no espaço de dias. (E poucos dias depois era anunciado o fecho de uma outra livraria, desta vez em Coimbra, com o fim confirmado para 31 de Março da Miguel de Carvalho).
Conclusão: o cerco aperta e as compras de romances e derivados são feitas com cada vez maior frequência entre a FNAC, a Bertrand e a Sonae, um triângulo das Bermudas que arrisca fazer desaparecer outros players (andava mortinho para dar asas ao jargão da gestão) num passe de mágica. Já para não falar das compras online, lá fora e cá dentro, via Amazon ou Wook. Uma situação que muito provavelmente não se circunscreve a Lisboa (cidade das colinas, da luz, do pastel), mas por ter na capital e à mão de semear alguns desses players de pequena escala mas vontade de ferro, resolvi tomar o pulso ao paciente encadernado. Afinal, quem é que hoje em dia arrisca abrir uma livraria em vez de apostar as suas fichas num negócio de hambúrgueres/tuk-tuks/aluguer de carochas/pães de Deus cozinhados por pessoas pagas em espírito de equipa? Em que condições funciona um mercado cuja escala é notoriamente diminuta? Como é que se combatem as campanhas 72 Horas Chrono, os descontos em cartão e as feiras-que-não-são-feiras? Quem são os engenhosos fidalgos do momento, empenhados na temerária arte de gerir uma livraria independente?
Quem diz Alonso Quijano, diz Bernardino, Sónia ou Vitor
Procurei gente que tenha decidido lançar-se recentemente no terreno pantanoso das livrarias independentes, juntando ao ramalhete um veterano (chamemos-lhe assim) que mantém a funcionar (pelo menos até ao final de Março) a Pó dos Livros, desde o ano de 2007. Leia-se, desde antes da chegada em força da crise que desbaratou muitas empresas e fustigou inúmeros ramos de negócio. Fundador da Bulhosa Livreiros em 1987, Jaime Bulhosa aliava o sustento à paixão pelos livros e nunca considerou a hipótese de estar longe deles. Acontece que a dita paixão pode ser uma armadilha, sobretudo quando o cinto e as condições de mercado apertam. Razões pelas quais a Pó dos Livros até já mudou de lugar, estando ainda de portas abertas na Avenida Duque d’Ávila, depois de vários anos na Marquês de Tomar. Mas por pouco tempo. “Mudei a localização da livraria porque o negócio dos livros, pelo menos para as livrarias independentes, foi-se tornando cada vez menos sustentável. Com a crise económica e a concorrência cada vez mais feroz, por parte dos grandes grupos livreiros/editoriais e a alteração de hábitos que a internet trouxe, não nos restava outra alternativa se não tentar fazer qualquer coisa”. Só que a mudança para uma avenida com mais movimento foi apenas um paliativo.
Sónia Silva também tem andado com os livros às costas, desde que se aliou ao amigo Bruno para abrir a Distopia em Outubro de 2015. Ambos trabalharam na Barata, iniciando um percurso como livreiros que haveria de transformá-los em empresários (hipérbole minha). “Num momento em que nos vimos os dois sem trabalho devido a dificuldades nas empresas onde estávamos, e os dois quase com 40 anos, decidimos: é agora ou nunca. A alternativa seria começar quase do zero numa qualquer cadeia de livrarias onde ser livreiro parece ser cada vez menos valorizado, ou então mudar completamente de ramo”.
Desenganados em relação à ideia romântica de ter uma livraria, até porque conhecem de ginjeira as burocracias e chatices inerentes, Sónia e Bruno enfrentam a concorrência directa mas também a pressão alta do mercado imobiliário da capital. “Passados poucos meses de nos instalarmos na Rua da Escola Politécnica, tivemos de procurar outro espaço porque a loja foi vendida. Estivemos depois dentro de um daqueles palácios do Príncipe Real com diversas marcas e comerciantes, uma situação de transição porque queríamos voltar ‘à rua’. E agora estamos há um ano na Rua de São Bento”. Graças à proximidade das diversas localizações, a Distopia conseguiu manter alguns clientes e Sónia está satisfeita com o rumo actual.
O mesmo se pode dizer de Bernardino Aranda, gerente da Tigre de Papel, inaugurada em Junho de 2016. “A ideia de abrir uma livraria acompanhava-me há bastante tempo e provém sobretudo de uma vontade de intervir e promover o debate público. Na Tigre nota-se muito bem isso. Não só pela nossa oferta, mas também pela nossa programação”. Na opinião de Bernardino, a livraria pode ser um lugar de venda de livros mas também “um espaço de encontro, de conversas, de reflexão e aprendizagem”, algo que ajuda a diferenciar esta livraria da Rua de Arroios. “Vendemos livros escolares com um grande desconto, temos uma grande oferta de livros baratos em 2ª mão [cerca de 60% do acervo], gastamos muito tempo e energia a fazer uma programação muito diversificada e de grande qualidade”. Na opinião do gerente/agitador, manter a Tigre de Papel a funcionar é portanto uma espécie de acto de militância e de resistência, palavras que habitualmente não aparecem sublinhadas na terminologia do Grande Capital Editorial e Livreiro.
Já Vitor Rodrigues estranha o uso da palavra “investir” quando se fala de livrarias. “Investe-se em imobiliário, em restauração trendy, na bolsa. Após 15 anos de trabalho como livreiro assalariado, abri em 2015 a Leituria, com duas outras pessoas, provavelmente motivados por um desejo inconsciente de não enriquecermos. O desejo realizou-se”. Situada na zona de Estefânia, a Leituria procura que o leitor saia do papel de figurante, apostando na proximidade, na dimensão humana do atendimento, na oferta que se diferencia dos Grandes Grupos (terminologia de Vitor) ao dar visibilidade a pequenos e micro-editores. “É um trabalho de longo prazo”, sintetiza.
Uma coisa é certa, há mais quem acredite que as livrarias são lugares de encontro, “quase de culto, lugares sagrados nos sítios onde existem”. É o caso de Rosa Azevedo, que partilha a condução dos destinos da livraria da Sociedade Guilherme Cossoul, à Avenida Dom Carlos I, com o livreiro Duarte Pereira. Ele já estivera à frente da Snob em Guimarães, entretanto encerrada, e convenceu Rosa a ter um espaço aberto ao público em Lisboa, mesmo sem terem a certeza de que fosse uma boa ideia (assinale-se aqui a lucidez destas pessoas). Mas acabaram por avançar em Maio de 2017, em boa parte por se identificarem com a Cossoul e com a programação que lá vai acontecendo.
Mais. Há quem acredite que não existe um mercado mas sim vários mercados. É também o caso de Rosa. “O mercado não é só um. Na área da cultura, então, muito menos. O mercado não pre-existe a uma livraria, é a livraria que o encontra. Ou seja, há leitores de todos os tipos, todos diferentes”. Por isso apostaram em trabalhar com os leitores, “tentando sempre não descobrir apenas o livro ideal para cada pessoa mas o caminho de diversos livros que esse leitor podia fazer, e isso não acontecia, necessariamente, com livros novos”. Razão pela qual a livraria da Cossoul se mantém alheia às novidades editoriais, que representam a parte do leão deste negócio. “Procuramos acompanhar as pessoas, descobrir que livros lhes fazem sentido. E depois apostamos no alfarrábio porque jogamos muito com o factor surpresa, é sempre inesperado o que a livraria reserva, não são os livros já vistos noutros escaparates”.
Há de facto vários públicos e sensibilidades, mas embora a identidade própria de cada livraria possa ser parte da solução, Jaime tem dúvidas de que esse factor seja decisivo. “Já não acredito que a diferenciação seja suficiente para a sobrevivência de uma pequena livraria, a não ser que tenha uma renda baixa ou uma localização excelente ou, uma loja arquitectonicamente diferenciada como é o caso da livraria Lello no Porto”. Tendo em conta a forma como o negócio está estruturado, parece haver uma espada de Dâmocles por cima da cabeça de cada livreiro. “Também a Pó dos livros coloca seriamente a hipótese de ter que encerrar as portas, se nada se alterar neste mercado do livro”. Palavra de Jaime Bulhosa há menos de duas semanas. Entretanto, no dia 31 de Março de 2018, acontecerá mesmo a liquidação total da livraria, data em que passará a ser “um pedaço de pó na memória de poucos”.
Linces da Malcata, abutres e a famosa democracia
Mesmo olhado de relance, o tecido comercial de uma cidade como Lisboa parece cada vez mais inclinado para uma tendência de padrão único, o que fez alvitrar a hipótese de as livrarias independentes serem hoje em dia uma espécie ameaçada. Como a imprensa escrita ou a verdade desportiva. Rosa discorda. “As livrarias, como conceito, são tudo menos uma espécie ameaçada. Têm de ser lugares únicos, irrepetíveis, sem haver igual em mais lado nenhum. E depois têm de ser locais que se reinventam, se recriam, todos os dias”.
O problema surge quando, a juntar à concorrência directa, a economia 3.0 dita as regras e os comportamentos. “Acredito que a grande parte dos livros impressos, com excepção daqueles que as pessoas querem ler na íntegra, como romances, poesia, teatro e similares, irão no máximo, em uma ou duas gerações, deixar de ser comprados em papel ou em livrarias de rua. Parece que está ‘tudo’ na net”. O diagnóstico é de Jaime, que ilustra a tendência com o exemplo da Amazon, que já vende mais livros em formato digital do que livros impressos. Curiosamente, num mercado como o americano, assistiu-se a uma reacção de livreiros e leitores que levou ao surgimento de novas livrarias independentes, mais especializadas. Mas em Portugal dificilmente se irá passar algo do género. “Os segmentos e nichos de mercado no nosso país são tão pequenos que, presumivelmente, não permitirão um fluxo suficiente de vendas. Se não queremos ver no futuro as nossas cidades despidas de livrarias, teremos que fazer uma reflexão séria sobre se elas têm ou não uma função importante na divulgação do livro e da leitura”.
Sónia crê que têm. “As livrarias, os museus, os espaços de espectáculos e cultura são essenciais à educação, ao entretenimento, ao desenvolvimento do pensamento crítico. E isso só é possível se houver uma diversidade de oferta”. O que pode ser difícil num cenário de concentração, com a maior parte das livrarias associadas a cadeias comerciais, “onde a tendência é a de uniformizar a oferta e promover a rápida rotação dos produtos”. Ironicamente, a gerente da Distopia – baptismo que é todo um programa, pelo menos literário – não teme o que há-de vir. “Ainda há muita gente que gosta de ler e noto que as crianças pequenas ainda tiram muito prazer de um livro. É importante habituá-las desde cedo, porque se tiverem acesso elas gostam e são os leitores do futuro”.
E se a Distopia aposta na escolha criteriosa dos títulos que tem à venda, dando atenção aos fundos de catálogo mas também a alguns best-sellers que se adequam ao seu público, a Leituria aposta na batalha de todos os dias. Até porque no entender de Vitor, as livrarias são mesmo uma espécie ameaçada, e até incómoda. Tanto no pré-25 de Abril, altura “em que muitos livreiros desempenharam um papel de facultadores e intermediários na transmissão de ideias e conhecimento, sempre com grandes riscos”, como nos dias de hoje, que continuam a proporcionar perigos e ameaças de outro género.
“Há uma concentração gigantesca de grupos editoriais e/ou cadeias de venda de livros, os tais Grandes Grupos, não especificados. Não há que dar-lhes mais publicidade. Uma concentração que lhes confere uma vantagem enorme sobre os livreiros independentes”, acabando por prejudicar igualmente a variedade das publicações disponibilizadas. Num contexto como este, o desaparecimento de livrarias nunca está posto de parte. “Nenhum livreiro vive desafogado. Um livreiro trabalha arduamente, um livreiro está sempre apreensivo, mas batalha, batalha sempre. Ouve-se muito que as livrarias estão às portas da morte, mas lá vão existindo”. E porque a Zoologia é uma área do saber, logo, com ligações suficientes ao mundo do livro, Vitor encontra nela uma quase-metáfora. “Os abutres que vaticinam e salivam com a perspectiva do fim das livrarias são – quero acreditar – minoritários, face aos que sabem, ou intuem, com lucidez variável, que não é desejável que tal aconteça”.
Bernardino não tem dúvidas que a tendência é transversal, da Europa aos Estados Unidos, e que está em curso “uma concentração no mercado a todos os níveis – edição, distribuição e venda – que deixa as pequenas editoras e livrarias independentes em situação mais fragilizada, o que leva, por conseguinte, a uma maior concentração. Um ciclo vicioso prejudicial às livrarias e aos livros, mas também prejudicial à cidade e, em última análise, à própria saúde da democracia”. Caberá então aos ditos independentes marcar a diferença, apostar na proximidade, na biodiversidade literária e nas valências próprias, embora Jaime vinque a questão da utilidade das livrarias. “Se têm uma função importante na divulgação do livro e da leitura, então devem ser apoiadas. Não digo todas. Poder-se-ia criar uma espécie de selo de qualidade para aquelas que de facto desenvolvam esse trabalho, o qual, forçosamente, teria de obedecer a uma série de critérios apertados”.
O mercado, esse Falstaff com, vá, cerca de três cabeças
Já o referi anteriormente, o triângulo FNAC-Bertrand-Sonae desempenha um papel de relevo cada vez maior no negócio dos livros. Seja pelo claudicar de outros espaços, seja pelo músculo que mostram na hora de negociar. E vender. Campanhas sucessivas, descontos e promoções a gosto, margens impensáveis para um pequeno livreiro “oferecidas” pelos editores e distribuidores, condições de funcionamento e de quota de mercado que lhes oferecem um poder inegável.
“É um poder tirânico, na verdade”, assegura Rosa. Resultado: menor diversidade da oferta, desaparecimento dos fundos de catálogo que se mantêm por escoar nos armazéns dos editores, a que se junta, na opinião de Sónia, o “desprestigiar dos livros que são pouco mais do que ‘batatas’, tratados como qualquer outro produto à venda nesses locais”. Bernardino ajuda a tirar o retrato à concentração que, no seu entender, seca tudo à volta. “Fecharam locais identitários da cidade, lugares que faziam cidade e, já agora, também, pequenos negócios que geravam pequenos rendimentos, que tinham uma grande importância para as famílias que dependiam deles. Muito maior importância do que para o accionista da Sonae ou da FNAC”.
A alta rotação das novidades e a tipificação mais ou menos artificial daquilo que tem condições para representar vendas interessantes (o thriller nórdico, a auto-ajuda disfarçada de romance, o manual para o bom entendedor dos intestinos) poderá estar a levar a um estrangulamento não apenas comercial como intelectual. Jaime acredita que há uma diminuição na edição de livros com ideias novas e que se está a dificultar o aparecimento de novos autores, num panorama de aumento sistemático do preço do livro. “Basicamente, cada vez mais a oferta se tornará menos ecléctica, plana e mais cara”. Bernardino concorda. “Não há lugar para livros estranhos, intelectualmente inovadores, ou experimentais, de pequenas tiragens. Se a circulação de ideias associadas ao objecto-livro está cada vez mais na mão daqueles que se dedicam a maximizar a rentabilidade ‘do negócio’ e a eliminar a concorrência, então o debate de ideias, que é essencial para que uma democracia funcione, torna-se cada vez mais difícil”.
Vitor também responsabiliza os players graúdos pela subida de preços que, em última análise, prejudica livreiros e leitores. “Os editores sabem à partida que lhes vão ser impostos descontos brutais pelos Grandes Grupos, pelo que um livro que dantes custava 13€, pois o desconto para o livreiro variava entre os 30 e os 40%, agora custa 18€, para o editor poder suportar descontos da ordem dos 50% ou mais aos Grandes Grupos”. E porque é de mercado puro e duro de que se fala (esqueça a literatura, o sublime e a arte, caro leitor), há um escocês que tem de ser chamado à colação. “Um dos grandes golpes nas livrarias verificou-se quando os livros passaram a vender-se em supermercados, bombas de gasolina, estações de correios. O livreiro deixou de vender o bestseller que lhe assegurava liquidez. Diversas livrarias fecharam. A variedade da oferta diminuiu, as tiragens idem. A mão do mercado só pode funcionar com intervenientes independentes uns dos outros. Adam Smith dixit”. Vitor, gerente da Leituria, também.
Mas nem só de mãos invisíveis vive um negócio que tem tendência para afunilar, eventualmente sacrificando a diversidade do ecossistema. Existe o problema da qualidade da concorrência, que ao nível do livro parece estar dispensada de uma Autoridade que zele pela sua saúde. “É ultrajante o desrespeito total pela lei da concorrência, principalmente os descontos praticados em livros com menos de dezoito meses de edição, nas grandes cadeias e Feiras do Livro de Lisboa e do Porto. Isso só acontece porque infelizmente a fiscalização é pouca. Estas cadeias e feiras prejudicam gravemente as livrarias independentes”.
Na opinião de Jaime, as feiras provocam quedas abruptas nas vendas das livrarias, o que as obriga a recorrer ao crédito bancário, “com juros altíssimos”, para fazerem face às despesas correntes. E dificilmente as livrarias independentes conseguem competir com a política de preços baixos praticada pelos grandes grupos de retalho e até pelas editoras. “A concorrência é completamente desleal e por vezes até ilegal. Por outro lado, também é verdade que existe uma desmedida pressão sobre as editoras, principalmente sobre as independentes, no sentido de as obrigar a esmagar as suas margens comerciais”. Tudo isto faz com que, muitas vezes, os pequenos livreiros encontrem nas grandes cadeias melhores margens comerciais do que aquelas que podem conseguir comprando directamente aos editores. “Esta é, lamentavelmente, a lei do mercado”.
Sónia concorda que a concorrência é tudo menos leal neste negócio. “São campanhas atrás de campanhas, às vezes sem grande atenção à lei do preço fixo, com as quais obviamente não conseguimos concorrer. Mas também não queremos. Tentamos não pensar nessas cadeias como o demónio e não nos consumimos a pensar como lhes vamos ‘roubar’ clientes”. Até porque não está provado que o Diabo exista e, mesmo invocado amiúde, sobretudo na arena política, tem resistido a dar o ar da sua graça. “Se as pessoas vierem à Distopia e encontrarem o que procuram ou se descobrirem algo que não conheciam e que as vai surpreender, achamos que é isso que tem de fazer a diferença”. Desde que se consiga manter a porta aberta, claro.
Na opinião de Bernardino, existem práticas restritivas de concorrência (situações em que o mesmo grupo edita e detém a distribuidora e os pontos de venda ao cliente final, por exemplo), bem como “práticas de claro abuso de poder dominante e até casos de venda com prejuízo, numa estratégia dirigida à eliminação de concorrentes”. Vitor devolve a pergunta relativa à competição desleal. “Quando um Grande Grupo faz descontos de 50% ao cliente final, e um livreiro tem 30 ou 35% de desconto nesse mesmo livro, o que chamar a isso?”.
Crónica de uma dívida anunciada
Fruto das condições ferozes de mercado ou da falta de competência na área da gestão, existe uma percepção relativamente firmada em relação ao desempenho e à capacidade de honrar compromissos por parte das livrarias independentes. Em suma, e para atalhar caminho, a pergunta é: os livreiros são maus pagadores? “É evidente e inegável que as livrarias independentes são más pagadoras, não porque queiram, mas porque não conseguem sempre honrar os compromissos nas datas acordadas, fruto do que já foi dito anteriormente acerca da concorrência desleal”.
Quem o diz é Jaime, que tem experiência na gestão de livrarias há mais de trinta anos e que se recusa a imputar responsabilidades em exclusivo aos pequenos livreiros. “Parece-me mais consequência de um mercado desequilibrado para o qual as editoras também contribuíram”. Jaime acredita que algumas casas editoriais têm tomado consciência dos erros cometidos no passado,“no meu caso, honra seja feita ao grupo Leya e alguns pequenos editores”, porém teme que já seja um pouco tarde para as livrarias independentes. Pelo menos, no caso da Pó dos Livros, é assunto (tristemente) arrumado.
A questão é familiar a Bernardino. “Também conheço essas histórias e associo-as às dificuldades com que os livreiros se debatem hoje em dia. Uma grande editora corta imediatamente as entregas e pode mesmo accionar garantias bancárias a uma pequena livraria que se atrase a pagar uma factura”. Assinala que a Tigre de Papel optou desde o início por privilegiar as pequenas editoras, as editoras independentes e as edições de autor, relacionando a opção com o conceito fundador da livraria. “Temos orgulho em nunca falhar nos pagamentos. Fazemos apuramentos mensais e somos nós que contactamos a editora a informar da venda e a pedir a reposição”.
No caso da Distopia, Sónia considera ter uma boa relação com os editores, “mas também é preciso dizer que muitas editoras, sobretudo as grandes, oferecem piores condições às livrarias independentes. É um pouco um ciclo vicioso: temos margens inferiores, vendemos menos porque não conseguimos fazer os descontos das ‘grandes’, temos mais dificuldade em sobreviver. É um exercício de (des)equilíbrio”. Um exercício que Vitor conhece de trás para a frente, depois de tantos anos a trabalhar com livros. “Nem sempre é fácil a um livreiro cumprir, e de modo geral os editores são compreensivos. Mas também pode suceder, sobretudo com os Grandes Grupos, o livreiro ser ameaçado de cortes de fornecimento por um atraso de dias no pagamento de 30€, quando já pagou milhares ao longo de anos. Aconteceu. Acontece”. No entanto, reforça que a maior parte dos editores é tolerante, “não apenas por bondade, mas porque sabe que uma dependência absoluta dos Grandes Grupos os deixa em maus lençóis”.
No caso da livraria da Cossoul, Rosa garante que tem uma relação boa com os editores, na sua esmagadora maioria. “É um trabalho contínuo de confiança e entre-ajuda. Nós pagamos sempre, às vezes com algum atraso que justificamos aos editores como conseguimos”. Seja como for, e recuperando La Palice, citado há uns milhares de caracteres, não se pode generalizar porque os negócios dependem das pessoas e há pessoas de todos os tipos em todos os lados. “Não tenho ideia de que as pequenas livrarias sejam piores pagadoras do que as grandes… Depende dos casos”, remata Rosa.
Que fazer, como perguntava o Lenine num livro atirado para o fundo de catálogo?
Apesar de todos gostarmos de ser bem tratados, de nos sentirmos únicos, de aqui e ali cedermos à tentação de trocar cromos literários ou similares com terceiros; apesar de sermos todos pela diversidade e pela protecção da fauna e flora e das lojas com história – a encerrada Lello na Rua do Carmo era uma delas – o factor preço conta. E os pontos acumulados idem. Porque razão é que eu hei-de ir a uma livraria independente para comprar um best-seller, um cartapácio, um opúsculo?
Rosa acha que “faz parte do nosso dever enquanto clientes e cidadãos cuidar do comércio tradicional, alimentando e acarinhando as relações pessoais, afastando-nos de uma lógica mercantilista da arte e da cultura, alimentando as redes humanas que sempre pertenceram à literatura e aos livros”. Isso é tudo muito bonito, mas e um desconto em cartão bem chorudo não substitui esse acarinhar na perfeição, isentando-me de pesos na consciência? Bernardino carrega na tónica da responsabilidade social. “Eu acho que temos de perceber que as nossas opções de consumo têm impactos directos e indirectos nas nossas vidas. Se me preocupam as alterações climáticas, então não devo passar a vida a comprar fruta que é produzida do outro lado do mundo e transportada de avião. Se não quero que o meu bairro seja um imenso dormitório, então devo comprar no comércio de rua. E além disso, o comércio de rua tem sempre a vantagem da proximidade, do aconselhamento, da facilidade na troca, etc.”.
Nesta luta pela fidelização, a Distopia assumiu uma postura pragmática. “Nós optámos por criar um cartão de cliente que também dá desconto aos clientes habituais”, embora confiem na selecção de livros que têm disponível – para lá da oferta musical em vinil e cd, com destaque para o jazz e a world music – e no conforto que os habitués percepcionam na livraria. “A maioria dos nossos clientes são pessoas que voltam, porque não tentamos impingir-lhes nada, porque os deixamos ver os livros à vontade e ajudamos quando precisam. E depois começamos a conhecer os gostos das pessoas e já lhes aconselhamos livros que achamos que vão gostar. É essa proximidade que também faz a diferença”.
Vitor volta a agarrar a deixa da responsabilidade pessoal e social. “Há pessoas que optam por evitar a falácia dos descontos, pois sabem que quando compram nas pequenas livrarias estão a assegurar um futuro melhor, a todos os níveis. Quem compra cenouras de produção biológica sabe por que o faz. Com livros e livrarias passa-se algo semelhante. Parece diferente, mas não é”. Além disso, Vitor está convencido de que há leitores que querem voltar a ser tratados como pessoas, e não como um número ou um segmento de mercado. “Querem poder ir a um local sem ser para comprar algo. Nesse dia pode apetecer-lhes apenas conversar um pouco. Passear. Ver algo diferente. Serem surpreendidas. Enfim, trata-se do mesmo de sempre. Relações entre seres humanos”. Embora saibamos que, sobretudo nessas, é quase sempre preciso dar um desconto.
[Entre a recolha dos depoimentos e a composição final deste texto, caiu mais uma livraria em Lisboa. E você, caro leitor, onde é que vai comprar o próximo livro?]
Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante