Rui Tavares, talvez a cara mais conhecida do Livre e muitas vezes identificado como “fundador” do partido, não tem o cartão de militante n.º 1 — tem um número superior ao 150. Nem o próprio sabia isso: descobriu há não muito tempo, numa reunião e a título de curiosidade. Por isso, Rui Tavares insiste que, atualmente, o único poder que tem no partido é o mesmo que qualquer outro dos 40 membros da Assembleia, o órgão que esta terça-feira pôs um ponto final no conflito entre Joacine Katar Moreira e o partido. Além de não ter um só “fundador” nem um líder, o Livre também não tem um porta-voz oficial — a direção, que no partido adopta o nome de Grupo de Contacto, fala com a comunicação social através de um porta-voz para os media, escolhido para o cargo apenas pela coincidência de trabalhar profissionalmente na área da assessoria.
Esta é a primeira legislatura em que o Livre consegue sentar no hemiciclo um deputado. Joacine Katar Moreira foi eleita pelo círculo de Lisboa e muito se tem escrito sobre a relação da deputada única do partido e o Grupo de Contacto. A Assembleia do partido também se tem desdobrado em reuniões para analisar um parecer do Conselho de Jurisdição sobre o caso — e tudo isto soa estranho para quem está habituado ao funcionamento dos partidos chamados tradicionais.
O Livre comemorou em novembro o sexto aniversário do partido, mas nem essa data é fácil de explicar. O dia real de fundação do partido foi 31 de janeiro de 2014, o primeiro de dois dias do congresso fundador. Mas a 16 de novembro de 2013 o partido reunira-se no Teatro São Luiz, em Lisboa, e aprovara a declaração de princípios que ainda hoje se mantém — e é essa data que os membros e apoiantes do partido contam como o primeiro dia oficial.
Além da declaração de princípios, também a papoila foi escolhida pelos membros como o símbolo do partido. À data, Rui Tavares explicava à agência Lusa que a opção pela papoila se devia ao facto de esta ter sido “o símbolo da paz na Primeira Guerra Mundial e um símbolo de liberdade”.
Dia a dia do partido. O Congresso, a Assembleia e o Grupo de Contacto
Não há um presidente, nem há um líder — o Livre tem uma estrutura horizontal, sendo a Assembleia do partido o órgão colegial máximo entre os Congressos, que se realizam de dois em dois anos, com caráter eletivo, e extraordinariamente sempre que convocados.
O Grupo de Contacto tem 15 membros, apesar de atualmente estar a funcionar apenas com 14, porque Joacine Katar Moreira não tem participado nas reuniões e decisões do órgão. E tomar decisões num órgão tão alargado é difícil? Segundo fonte do partido, o Grupo de Contacto está em constante comunicação, através de um grupo de conversa online, que permite ir debatendo e conversando, limando alguns pontos, antes e depois de uma reunião semanal. Se for preciso tomar uma decisão rapidamente o que acontece, tendo em conta que não há uma pessoa que possa agir isoladamente? “Nunca está apenas um dos membros do Grupo de Contacto disponível, é impossível, já precisámos de ser rápidos e estamos todos à distância de um telefonema”, explicam ao Observador.
O Skype também é um instrumento importante para a direção, que, na impossibilidade de se reunir na sede do partido, faz uso dos instrumentos da tecnologia para reuniões mais urgentes. Mesmo reconhecendo que “há sempre elementos mais ativos do que outros”, a mesma fonte esclarece que habitualmente a participação nas reuniões está próxima dos 100%. As decisões são tomadas “por consenso” e reina o sentido prático quando, por exemplo, é preciso decidir apenas uma data: uma sondagem no Google Docs poupa uma reunião extraordinária apenas para essa decisão.
No final de cada reunião do Grupo de Contacto é redigida a respetiva ata e, sempre que há algum tema que a direção entende não ter capacidade para decidir (por não ter todos os dados ou considerar necessária uma discussão mais alargada no partido, por exemplo), a decisão passa para as mãos da Assembleia, o órgão colegial acima da direção sempre que não há Congressos.
O Grupo de Contacto nomeia um porta-voz dependendo da área. Pedro Rodrigues, o porta-voz para os media, explica ao Observador que, existindo no Grupo de Contacto pessoas com experiência em áreas distintas, dependerá sempre do tema o porta-voz a nomear. Ainda que seja uma nomeação meramente informal, dentro da direção.
Fonte do partido assegura ao Observador que todas as decisões são tomadas em órgão colegial. Ao que o Observador apurou, por exemplo, as longas horas de reunião da 40.ª Assembleia — que tomou a decisão sobre o conflito com Joacine Katar Moreira — deveram-se também ao facto de todos os membros da Assembleia terem tomado da palavra sobre o parecer em análise.
Na Assembleia têm assento 50 membros do partido, respeitando a paridade — tal como todos os órgãos e listas do partido —, que são eleitos uninominalmente no Congresso. Atualmente, de acordo com o site do partido, a Assembleia é constituída por 41 membros. Os nove em falta não foram substituídos por estar próximo o novo Congresso eletivo, explica fonte do partido ao Observador. Sendo uma eleição uninominal, qualquer membro do Livre pode candidatar-se, no Congresso, aos órgãos do partido. Os ‘observadores’, apesar de estarem inscritos nos Congressos, não podem candidatar-se a qualquer cargo (nem votar), podendo no entanto assistir aos trabalhos mediante inscrição prévia — habitualmente, o partido abre as inscrições no próprio site, uns dias antes da realização do evento.
Todos os órgãos nacionais do partido (Assembleia, Conselho de Jurisdição, Grupo de Contacto) são eleitos de dois em dois anos, havendo uma limitação de três mandatos em todos os órgãos. No final desses três anos, os membros podem candidatar-se a outro dos órgãos do partido, sendo possível passar da Assembleia para o Grupo de Contacto ou para o Conselho de Jurisdição, por exemplo.
Ao contrário do que acontece na Assembleia do partido, em que as candidaturas são uninominais, para o Grupo de Contacto e para o Conselho de Jurisdição é necessário apresentar listas. Para apresentar uma lista ao Grupo de Contacto é necessário que 75 membros do partido a subscrevam — e para o Conselho de Jurisdição é preciso recolher 55 assinaturas.
No final de janeiro haverá um novo Congresso do partido, eletivo. Ao que o Observador apurou, nas próximas semanas deverá ser estabelecido o calendário para apresentação das listas candidatas aos vários órgãos, sendo expectável que haja alterações no Grupo de Contacto — que atualmente é composto também pela deputada Joacine Katar Moreira.
O Conselho de Jurisdição e as Comissões
Todos os órgãos nacionais em funções no Livre foram eleitos no VI Congresso, em janeiro de 2018, para um mandato de dois anos que termina em janeiro de 2020, data em que se realizará novo Congresso, não estando ainda definida a data. O atual Conselho de Jurisdição é composto por 11 membros, que, de acordo com o regimento, se organizam em Plenário, Comissão de Ética e Arbitragem e Comissão de Fiscalização. Foi a Comissão de Ética e Arbitragem que ficou encarregue de emitir um parecer sobre a polémica entre a deputada e o Grupo de Contacto do partido, que ocorreu no final de novembro.
Enquanto Comissão de Ética e Arbitragem, coube aos membros do órgão apurar os factos relativos à troca de comunicados e declarações de ambas as partes (deputada e Grupo de Contacto). Uma vez redigido o parecer, este foi entregue à Assembleia do partido, que o analisou, pediu esclarecimentos às partes envolvidas e emitiu uma resolução. Não sendo o parecer vinculativo, cabe ao órgão máximo entre Congressos deliberar e decidir no sentido de aplicar sanções a qualquer uma das partes.
Ao Observador, o presidente do Conselho de Jurisdição, João Monteiro, esclarece que Joacine ou o Grupo de Contacto têm 15 dias para recorrer para o plenário do Conselho de Jurisdição (onde não estará o relator do parecer, Ricardo Sá Fernandes). Depois da decisão do plenário, caso a “insatisfação de qualquer uma das partes se mantenha” poderá recorrer ao Tribunal Constitucional. “Caberá então ao Tribunal Constitucional avaliar se a matéria está no âmbito da sua atividade ou não”, explica João Monteiro.
A lista única do Conselho de Jurisdição que foi eleita em 2018 dividiu os 11 elementos na primeira reunião ordinária do órgão. O presidente do Conselho de Jurisdição foi o primeiro a ser escolhido, seguindo-se depois a divisão de cinco elementos para a Comissão de Ética e Arbitragem (Ricardo Sá Fernandes, Leonor Caldeira, Cláudia Silva, Liliana Veríssimo — que foi depois substituída por Sara Proença — e o coordenador Bernardo Rosa Rodrigues) e os restantes cinco para a Comissão de Fiscalização (Luciana Rio Branco, Bárbara Magalhães, Paulo Monteiro, Rafael Esteves Martins — recentemente substituído por Luís Romeu— e a coordenadora Marta Furtado Santos).
Ao Observador, João Monteiro explica que as reuniões do Conselho de Jurisdição se realizam na sede do partido ou, caso necessário, através de Skype (notando que um dos elementos do órgão está em Bruxelas, onde o partido “tem uma forte presença”), com uma periodicidade trimestral. Caso haja necessidade, o órgão pode convocar uma reunião extraordinária, como aconteceu com o parecer sobre o diferendo entre o Grupo de Contacto e a deputada única do partido.
O que diz a declaração de princípios: “O nosso lugar é no meio da esquerda”
A declaração de princípios do partido defende que o Livre tem por objetivo “criar uma maioria progressista capaz de criar uma alternativa política em Portugal e na Europa”. E uma alternativa política à esquerda: “o nosso lugar é no meio da esquerda”, “entre o PS e o Bloco de Esquerda”, esclarece fonte do partido ao Observador.
E é “no meio da esquerda” que a deputada Joacine Katar Moreira encontrou lugar no hemiciclo. Está sentada ao lado dos deputados da CDU (PCP/PEV) e dos deputados do Partido Socialista, bem à esquerda no ângulo de visão do Governo. Ao Observador, fontes do Livre recordam ainda que foram “o primeiro partido que assumiu a convergência à esquerda, quando o PCP e o Bloco de Esquerda ainda posicionavam o PS no centro-direita”.
É também na declaração que se encontram expressos os princípios do partido: universalismo, liberdade, igualdade, solidariedade, socialismo, ecologia, europeísmo. “Decidimos fundar um partido político assente nos quatro pilares das liberdades e direitos cívicos; da igualdade e da justiça social; do aprofundamento da democracia em Portugal e da construção de uma democracia europeia; e da ecologia, sustentabilidade e respeito pelo meio ambiente”.
Para defender o programa que apresentou às eleições e que tem como prioridade a justiça social e a justiça ambiental, nesta legislatura o partido optou por estar presente na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, na Comissão de Assuntos Europeus e na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação.
O Livre tem por objetivo “libertar Portugal da dependência financeira e do subdesenvolvimento económico e social”, traçando um modelo de desenvolvimento que “assente na valorização das pessoas, do conhecimento e do território”, objetivos esses que deverão ser cumpridos “através de um profundo processo de democratização e de maior inclusão dos cidadãos na ação e representação política”. “É essa declaração de princípios que devíamos ler todos os dias, para não fugir do caminho certo”, frisou ao Observador fonte do partido nos dias entre o início da Assembleia e a divulgação da resolução.
As primárias e o resultado eleitoral
Ao que o Observador apurou, o Livre tem cerca de mil membros e apoiantes. Apresentou às eleições listas em todos os círculos, tendo as primárias do círculo de Lisboa, Porto e Setúbal sido realizadas em simultâneo com as primárias das eleições europeias, em março.
Rui Tavares venceu enquanto cabeça de lista para as Europeias, com Joacine Katar Moreira a ficar em segundo lugar (o candidato a eurodeputado não conseguiu, no entanto, ser eleito no sufrágio de maio). Já nas listas de Lisboa para as legislativas, Joacine Katar Moreira conquistou o apoio dos membros e apoiantes do partido e fez campanha pelo partido enquanto cabeça de lista por Lisboa, o que lhe garantiu um mandato de quatro anos na Assembleia da República.
O processo de primárias abertas simplificado: pic.twitter.com/D89EZOQ1TL
— LIVRE (@LIVREpt) June 5, 2015
O Livre distingue-se dos restantes partidos principalmente pelas primárias que realiza para a constituição das listas a eleições. Qualquer pessoa, desde que se identifique com o partido e subscreva a carta de princípios, pode candidatar-se ou votar no candidato em que se reveja. Para ser candidato, é necessário receber “10 avais” favoráveis dos membros e apoiantes do partido. O Livre disponibiliza um relatório detalhado, por círculo, de todas as pessoas que apresentaram candidaturas e a respetiva “avalização” atribuída, antes da seleção final dos candidatos, que foram a eleição a 28 de junho.
São as listas que resultam destas eleições primárias que são depois entregues pelo partido no Tribunal Constitucional para validação por cada comarca. No caso das eleições legislativas, foi a própria cabeça de lista e agora deputada por Lisboa, Joacine Katar Moreira, quem entregou as listas no Palácio da Justiça, acompanhada pelo mandatário Rui Tavares.
Foi também Rui Tavares quem acompanhou Joacine Katar Moreira na receção no Palácio de Belém, no quadro dos contactos do Presidente da República com os partidos com assento parlamentar. Ao Observador, fontes do partido esclarecem que essa presença aconteceu na qualidade de mandatário da campanha, já que a audiência com Marcelo Rebelo de Sousa “marcava o final da campanha” e, quando mais tarde o Livre se reuniu com António Costa, Rui Tavares participou “apenas por cortesia”, estando presente na primeira parte das reuniões com o Partido Socialista.
Fontes do partido reconhecem que associar Rui Tavares enquanto fundador do partido “sempre foi um risco”, inclusivamente “reconhecido e notado pelo próprio”, mas que conferia ao partido “um selo de credibilidade”, até porque foi ele o primeiro candidato do partido a umas eleições, no caso as eleições europeias de 2014.