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— Livreira. Sou livreira.
É o que Mafalda Milhões responde quando lhe perguntam qual é a sua profissão. Mas não é. Ou, pelo menos, não é “só” livreira. Mafalda é ilustradora — dos livros dela e dos livros dos outros — fundou a editora O Bichinho de Conto, até que se resolveu também a abrir uma livraria. Primeiro em Lisboa, na Fábrica da Pólvora, em Oeiras, e mais tarde na vila literária de Óbidos. Encerrou-a para obras. Reabrirá em setembro se tudo correr bem.
Adiante falaremos da utopia que foi abrir uma livraria no cimo de um monte ermo. Primeiro, o “fascínio” de Mafalda — são palavras da própria — por livros infantis. Tudo começou em Murça, de onde é nada e criada.
“Sou trasmontana. Mas não é por ser trasmontana, de uma vilazinha nos arredores de Mirandela, não é por ter sido criança nos anos oitenta, que vivia isolada dos livros. Eles sempre me habitaram”, explica. “Culpe-se” a mãe de Mafalda, que é professora. “Lembro-me dos livros do António Mota, da Alice Vieira — tão querida que é, a Alice — da Maria Alberta Menéres, que eram livros que a minha mãe lia aos alunos dela e depois nos lia a nós, os filhos. Aqueles livros eram como foguetes em mim.”
Outras histórias há que Mafalda atira de seguida: “Também me lembro de ir com os meus pais ao Porto ou a Vila Real para comprar livros. Aquilo não era só a compra pela compra. Havia a preparação da viagem, havia a viagem em si, e depois havia a escolha do livro.” Por vezes, os livros também vinham a si. “O que também me lembro é de uns senhores, todos bem-postos, carregados com umas malas negras, enormes à minha escala de garota, que me faziam lembrar a Mary Poppins. Eram vendedores de livros e iam terra a terra, escola a escola, vendê-los. E traziam de tudo. E depois, claro, havia a Biblioteca Itinerante da [Fundação Calouste] Gulbenkian e aquela carrinha onde alugava os livros da Enid Blyton e só desejava que o livreiro se esquecesse de mim para não os devolver mais”, graceja.
A “self-made woman” dos livros infantis: eis a editora, autora, ilustradora e livreira Mafalda
Mafalda não imaginava vir a ser autora de livros infantis. Ainda que os colecionasse, “quase compulsivamente”, conta, quando era adolescente, quase adulta, e não mais a criança das idas às livrarias da cidade grande ou da carrinha pequena mas atolada de histórias da Gulbenkian. Só se resolveu a fazer da edição de livros infantis uma vida na faculdade.
Entrou para um curso de Artes Gráficas, demasiado técnico, e quase quis desistir. “Sempre fui de birras. Na faculdade dizia que queria fazer um livro. E respondiam-me que não. As máquinas com que os livros se faziam estavam lá, mas não se podiam tocar. E quanto mais me diziam que não, mais eu queria.” Lá venceu um professor pelo cansaço. “Um dia propusemos a um professor fazer um livro. E, estranhamente ou não, ele aceitou. Mas fazer um livro na faculdade era uma coisa quase clandestina, quase uma maçonaria.” O livro chamou-se Perlimpimpim… Perlimpimpão. E foi feito por carolice de todos. Financiado por todos, das tintas ao papel. E mesmo o trabalho de impressão e encadernação foi de Mafalda e dos outros “carolas”. “O professor só ligava a máquina à ficha. E nós só podíamos usar a máquina entre as duas e as seis da manhã. Os seguranças lá nos deixavam entrar. Mas o professor, como está bom de ver, pisgava-se, para dormir. Ele era o facilitador, digamos assim”, recorda, gracejando.
Fizeram-se 500 exemplares do livro. E Mafalda ofereceu muitos deles, à família e aos amigos. Certo dia, resolveu-se a propor à Fnac a distribuição do livro. “Fui a uma reunião. Carregada com as maquetas do livro. E disseram-me para lhes enviar o livro finalizado, que depois logo me diziam se o queriam ou não. Confesso que achei que nem me iam responder. Mas responderam. Três dias depois ligaram-me: queriam uma encomenda de 500 exemplares. Ora, eu já não tinha os 500 exemplares, não é verdade? E tive que ir recolher os que tinha oferecido.” E nem com um exemplar Mafalda ficou para si. “Tive que o ir comprar à Fnac. Essa edição esgotou, e veio outra, outra e outra. Foi assim que começou a editora.”
Voltando à livraria. “A livraria não é uma utopia; é o pico da utopia. Mas fazia sentido”, garante Mafalda. Entristece-a ver as livrarias a desaparecer. Daquelas que Mafalda visitava religiosamente na infância, só resiste a velhinha Lello, no Porto. “Sim, entristece-me. Muito. É que com o desaparecimento deles, desaparece também a figura do livreiro. Aliás, a figura do livreiro nem existe mais. No código do CAE nós somos ‘caixeiros’. É isso que somos. Foi por isso que decidi abrir a livraria. Ou isso, ou tinha que abrir as portas de minha casa. Eu queria que os garotos sentissem pelos livros aquilo que eu sentia, aquilo que eu sinto. Que soubessem que nas livrarias os livros podem ser abertos, tocados, lidos. E que isso não estraga o livro”, explica.
Mas nem todas as crianças, mais a mais na era dos videojogos e do digital, gostam de ler. Mafalda recorda uma história que exemplifica como nenhuma outra a importância do livreiro na captação — Mafalda fala em “cativação” — de leitores com palmo e meio.
“Entra-me um garoto na livraria — isto ainda na Fábrica da Pólvora — com a mãe. Vinha pelo braço. Quase arrastado. Ele não queria entrar. E a mãe obrigou-o, a custo. O garoto fez uma birra, claro. Eu virei-me para a mãe e disse-lhe: se ele não quer, não insista. É pior. Ele tinha horror a que a mãe lhe comprasse um livro.” Mas Mafalda não desistiu logo ali do “garoto”. Antes de ele ir embora, pegou num Pinóquio que lá tinha e que ia devolver à editora. Tinha um defeito. Não tinha as páginas todas impressas. Mas Mafalda começou a lê-lo. “Li uma página, depois outra. O Gepeto estava preso na barriga da baleia. E depois, parei. Não havia mais páginas para ler. E disse-lhe: quando os garotos como tu não gostam de livros, as letras caem e a história não acaba nunca.”
A mãe perguntou logo a Mafalda quanto custava o livro. O filho estava fascinado pela história inacabada de Gepeto. Mas Mafalda recusou-se a vendê-lo. Será que a história terminou a meio como a de Pinóquio? Não. Teve um final. “Quando a livraria estava a fechar, à noitinha, bateram-me à porta. Insistentemente. Era o tal garoto que não gostava de ler. Queria o livro. Disse-lhe que não lhe ia vender aquele, porque tinha defeito. Mas ele não queria aquele; queria um Pinóquio, mas com letras. Com as letras todas. Não sei o que aconteceu a esse garoto. Mas o trabalho do livreiro também é esse: criar leitores que não o eram. O livreiro é a personagem mais importante da indústria do livro. É ele quem faz a ligação de tudo, como se tivesse uma cola especial na voz. É um instalador de paixões, de perguntas, de impossibilidades, de inquietações, de respostas”, lembra.
A livraria de Lisboa fecharia. E Mafalda queria um espaço diferente para a nova — “Aquela pedalada urbana já não era para mim.” Queria um lugar que tivesse uma árvore do tamanho da copa da livraria, um espaço que tivesse vista para o mar, para um castelo e espaço a rodes para a garotada brincar. “É assim que as crianças desenham uma livraria, não é?” Esse espaço não existia. Não no burburinho do centro da vila. Havia que partir a descobri-lo, monte acima.
“Era uma maluqueira, pensava eu. Estávamos em Óbidos, deixámos a vila, subimos, subimos, e a certa altura já só havia campo. E eu disse: chegámos até aqui, vamos ver o que há no fim da subida. E vemos uma escola primária, abandonada, muito fustigada pelo tempo. É aqui! E foi. Tinha o castelo de Óbidos, uma pinheira mansa do tamanho da copa, campo em redor e via-se o horizonte; se não era o mar, as crianças imaginá-lo-iam assim.” E imaginaram.
Hoje, não foi só a livraria que fechou portas — ainda que temporariamente, por força de um telhado esburacado. A editora O Bichinho de Conta também parou as máquinas. Até quando, Mafalda não sabe. Por ora vai trabalhando como ilustradora, “para pagar as contas”, e percorrendo o país como promotora de leitura nas escolas, contando histórias a crianças e ensinando os professores a contá-las também. “Parámos de editar quando achámos que não estávamos a fazer nada de novo. Não nos podemos deixar levar pela maluqueira da edição. Eu costumo dizer que tens de parar quando a coisa começa a dar lucro. O interregno serviu-nos para perceber o que podemos vir a acrescentar ao mercado. A conclusão? Não sei. Mas gostamos tanto de fazer livros infantis, que havemos de voltar, talvez este ano, talvez no próximo.”
Mafalda diz que os livros que faz não são seus, apesar de ser dona e senhora da sua editora. “Não tenho um chefe. Ninguém me diz que o livro que edito tem que ser assim ou assado, amarelo ou azul. Mas os verdadeiros chefes, os ‘grandes’ chefes, são os garotos, eles próprios. São muito honestos. Se não gostam, não gostam, ponto. Não são só pessoas em ponto pequenino, com roupas em ponto pequenino, com ideias em ponto pequenino. São tão ou mais exigentes que os adultos. E é quando contactamos com eles que percebemos que o nosso trabalho tem falhas, erros, que precisamos de evoluir. ” E por isso parou. Parou quando há cada vez mais editoras a publicar livros infantis: os grupos editorias com as suas chancelas e até editoras que só se dedicam à edição para a infância, como a de Mafalda. Há mais de meia centena de editoras a fazê-lo. E todas as semanas novos títulos dão à estampa.
A criação de um livro infantil, da ilustração ao texto, é um processo “muito egoísta”, diz Mafalda. Tem que o ser. “Claro que quando ilustro um trabalho de outro escritor, tenho que o ouvir, tenho que ceder, ou negociar se tiver essa confiança com ele. Mas quando o trabalho é meu, faço aquilo que me dá na real gana, que me dá prazer. Não adapto nada a pensar que esta ou aquela criança não vai querer ler ou não vai gostar das cores da ilustração.” O que tem que haver no livro é espaço para que cada criança, cada leitor, tenha a sua própria identidade no interior. E recorda um caso: “No livro da ‘Maruxa’, por exemplo, há um terceiro personagem que é o cão. E quase não se dá por ele no livro. O desafio é a criança criar a história daquele cão. O livro é uma descoberta. Sempre foi.”
Mas as histórias que Mafalda cria, que ilustra, não são sempre da sua imaginação, mas também da imaginação das filhas. “A maternidade muda tudo. Até as cores que passei a usar. A forma como as misturo.” Às vezes isso é consciente, uma vontade sua, às vezes é imposto — ainda que Mafalda não saiba da “imposição”. E conta: “Eu costumo dizer que sou uma mãe-canguru: ando sempre com as minhas filhas às atrás. Se estou a desenhar, eles estão lá, tenho os copos com as cores em cima do estirador, e às vezes chego a escrever em letras garrafais: não mexer aqui. Mas elas lá me trocam os lápis e o trabalho, que até vai avançado, sai todo ao contrário.”
O dia-a-dia de Mafalda, com ou sem O Bichinho de Conto, com ou sem livraria no monte ermo, continua a ter histórias a colorir o papel. Historias que hão de dar à estampa. Um dia. “Muitas das histórias que crio são histórias das minhas filhas, de observá-las. Outras vezes, quando são delas, elas intervêm também, dizem se o personagem deve ir por aqui ou ir por acolá. Às vezes as histórias convertem-se em livros, outras vezes ficam engavetadas, à espera de sair.”
A “avó” Alice que contou (e conta) histórias a três gerações de leitores com palmo e meio
A par de Manuel António Pina ou Sophia de Mello Breyner, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, a par Hans Christian Andersen, Antoine de Saint-Exupéry, Enid Blyton ou José Mauro de Vasconcelos, outro nome nos ocorre quando nos ocorre pensar em literatura para a meninice: Alice Vieira.
Alice é sobretudo intemporal. Vai todas as semanas, vários dias por semana, a escolas de norte a sul. “Os miúdos precisam disso. É diferente ler uma história ou ouvi-la de quem a escreveu, mesmo à nossa frente.” E esta é já a terceira geração de quem a escuta e lê. “As vezes os meninos têm livros muito manuseados. É da tua mãe, não é?, pergunto eu. Não é da minha avó…, respondem-me. Rio-me. No outro dia ia na rua e passou por mim um varredor. Um homem feito. E disse-me: Ai, dona Alice, li tantos livros seus na escola”, conta.
Mas porque é que as crianças continuam a ler livros que foram escritos há mais de três décadas? “Não sei. Às vezes pergunto-lhes: Olha lá, qual é o interesse para ti de no ‘Rosa, Minha Irmã Rosa’ se colarem cromos como brincadeira de criança? Não há lá jogos de computador, não há nada. E respondem-me: Ah, pois, mas eu também gosto de cromos e gosto da história dela. Sabe? As crianças não mudaram nada. O que mudaram foram os adereços. Tudo o mais, os ciúmes, as zangas, as tristezas e alegrias, está tudo tal e qual como naquele livro de 1979. São crianças”, explica.
Por vezes, Alice sugere, nas escolas, livros ainda mais longínquos no tempo. Sobretudo às raparigas. “Às vezes sugiro que leiam livros do Érico Veríssimo. Sobretudo a ‘Clarissa’. Foi o meu escritor da minha juventude. E ele já morreu em 1975, veja lá. Sabe o que as miúdas me dizem? Esta sou eu, a Clarissa sou eu. E eu digo-lhes que aquele livro foi escrito em 1939. Não acreditam”, graceja.
* Poema escolhido por Alice Vieira para o Observador a propósito do Dia Internacional do Livro Infantil Não esqueças conselhos Não abras a porta Não fales a estranhos Não ouças a bruxa Não lhe aceites prendas Não morras assim Cospe a maçã e espera por mim! "Rimas Perfeitas, Imperfeitas e Mais-que-Perfeitas", Texto Editores (2009)
TELEGRAMA DO PRÍNCIPE PARA A BRANCA DE NEVE *
Alice é jornalista desde sempre. E trabalhou nos três “Diários”: o de Lisboa, o Popular e o de Notícias. A “culpa” de ser escritora de livros para infância é também do jornalismo. Mas não pelas razões mais óbvias, as do prazer pela escrita. Não. “Eu comecei a escrever para crianças por causa dos meus filhos. Eles deviam ter uns 9 ou 10 anos. E queixavam-se muito, como são filhos de dois jornalistas, que eu nunca estava em casa. E que nunca escrevia para eles, só para o jornal. Escrevi o ‘Rosa, Minha Irmã Rosa’ para que não me maçassem mais.”
Estávamos em 1979. Um ano que mudou a literatura infantil em Portugal. “Houve um tempo em que um escritor que escrevesse para crianças não era um escritor como os outros. Claro que não é mais assim. Há uma nova geração de escritores a escrever para as crianças: o Afonso Cruz, a Mafalda Milhões, o David Machado, a Carla Maia de Almeida, a Isabel Minhós Martins, tantos. Quando eu era criança – ui, foi há tanto tempo! – havia a Ana de Castro Osório, adaptações de lendas gregas e pouco mais. A literatura infantil só começou realmente a surgir a partir do Ano Internacional da Criança, em 1979. A Gulbenkian organizava encontros a partir daí. Os escritores começaram a ir às escolas contactar com os seus leitores a partir daí”, recorda Alice Vieira.
Hoje como em 1979, e mais de meia centena de livros para a infância depois, Alice continua a ter um método na sua escrita: não ter método. E sobretudo a não escrever para crianças como se elas fossem crianças. E explica: “Naquele livro [Rosa, Minha Irmã Rosa] como hoje, e a menos que seja um livro com uma base histórica para contar, nunca sei por onde começo nem onde quero terminar. Escrevo. Eu tenho esse problema, sabe? Escrevo muito, muito. E confesso que não tenho nem nunca tive muito trabalho a depurar a linguagem nestes livros. Só a depuro no sentido da qualidade. E não porque as crianças vão ou não vão entender. Elas entendem sempre.”
E recorda um exemplo atual e outro seu, da infância: “Quando era miúda, gostava de lengalengas. E não entendia nada daquilo. O que devemos é escrever com as palavras de todos os dias. Tem que nos soar bem. Depois há, claro, a questão geográfica. Se escrevo autocarro no livro, as crianças em Trás-os-Montes — que dizem carreira – não vão entender. Mas isso é a riqueza da língua. Nos livros sobre reis falava-se em charolas. Eu sabia lá o que eram charolas”, termina Alice, numa gargalhada.
A gargalha mais meiga da literatura infantil. Como só as avós têm. Como só a “avó” Alice tem.