A rebeldia ficou na adolescência. Hoje, Louise só pede respeito e paridade no setor. Tem 26 anos e é quem dirige a cozinha do Boubou’s, o restaurante que Alexis e Agnes Bourrat (o irmão e a cunhada) abriram em 2018, no Príncipe Real. A ascensão pode parecer precoce, mas ela está à altura, ainda que em nada se pareça com o vulto que habitualmente vemos aproximar-se da mesa sempre que pedimos para cumprimentar o chef.
Qualquer indício de fragilidade é mera aparência — na carta, tal como na gestão da sua equipa, atualmente composta por três pessoas, Louise sabe o que quer. E se em Portugal desenvolveu o foco nos ingredientes locais e no trabalho de pequenos produtos, no que diz respeito ao ambiente dentro da cozinha, aprendeu depressa com o novo posto que o melhor seria escolher mulheres para seus braços direitos. “Descobri a misoginia de uma forma diferente, precisamente porque agora era eu a mandar”, admite ao Observador.
Do seu percurso, que começou em restaurantes com estrelas Michelin (um em França e outro na Bélgica), destaca a face mais destrutiva da alta cozinha — exploração, sexismo, assédio e drogas foram os males que a fizeram afastar-se da Europa e rumar à América Latina. Quis uma revolta popular, na Nicarágua, que regressasse ao velho continente, mas desta vez para redescobrir as suas raízes.
Filha de mãe portuguesa, é em Lisboa que se tem sentido “presa” desde então, dividida entre o espaço charmoso e acolhedor deste projeto familiar, as caminhadas pela Serra de Sintra e o pequeno veleiro onde vive atualmente, no Parque das Nações. “Foi o que me salvou em 2020. Adoro chegar a casa e ter aquele céu… e sobretudo não ter vizinhos”, brinca. Não sabe até quando vai ficar, apenas que Portugal passou a ser um porto de referência.
Qual é a sua relação com Portugal? Ela começa muito antes do Boubou’s.
A minha mãe é daqui, filha de pais portugueses também. Nasceu em Lisboa, mas deixou o país em 1968 por causa da ditadura e cresceu em França. Quando éramos miúdos, vínhamos a Portugal quase todos os anos, mas ela teve sempre uma relação complicada com o país, acho que pela integração em França, que foi uma fase muito complicada. Sempre quis muito ser francesa, mas havia o nome, a língua… Nunca nos ensinou português, por isso tivemos alguma ligação com o país, mas não muita.
Na verdade, foi o meu irmão que decidiu vir para cá, há quatro anos. Estava em Londres mas, por causa do Brexit, decidiu vir embora. Queria abrir um restaurante e começar a trabalhar por conta própria. Ao fim de um ano, conseguiu. Vim dar-lhe uma ajuda e acabei por ficar e por começar a aprender português. A minha mãe tem vindo algumas vezes e até está a pensar em mudar-se para Portugal, tal como os meus avós, que também continuam a viver lá. É neste ponto que estamos: a minha mãe começa agora a reconciliar-se com o país dela e está super feliz com o facto de estarmos a aprender português. Até o meu pai está a aprender, por isso talvez o futuro vá ser mais por aqui.
Veio para ajudar o seu irmão. Tinha o plano de ficar?
Não era para ficar tanto tempo. Antes disso, viajei durante dois anos pela América Latina. Na altura, vivia e trabalhava na Nicarágua, mas houve uma revolta e o país começou a fechar completamente. Havia violência, as fronteiras estavam a fechar todas, os aeroportos. Tive de vir embora. Liguei ao meu irmão — tinha de voltar para a Europa e de arranjar um emprego, até porque não estava assim com muito dinheiro. Disse-me que viesse para Portugal. Acho que na altura estava um bocado perdida naquilo que queria fazer. Fui sempre muito livre, habituada a grandes mudanças e a viajar, mas um ano aqui nem me parecia mal. Entretanto, veio a Covid-19 e acabei por ter de ficar mais tempo.
Disse que estava um pouco perdida quanto ao que queria fazer, mas talvez também não soubesse bem onde queria estar.
Sim, mais isso. A minha dúvida não era tanto o que queria fazer. Estou super feliz aqui — é um sítio nosso, posso cozinhar o que quero, crio o meu ambiente, escolho as pessoas com quem trabalho. É incrível, mas gosto de conhecer novos países e de acordar em sítios diferentes. Nunca deixei de ter essa vontade, por isso é que a pandemia tem tornado as coisas um pouco difíceis para mim ultimamente. Sinto-me presa.
Se não fosse a pandemia, já não estaria em Lisboa?
Não sei. Tenho um plano: passar três meses a viajar e estar por cá o resto do tempo. Ficaria triste se deixasse o Boubou’s — é o nosso sítio e adoro-o. Mas sei que, por uma questão de equilíbrio pessoal, preciso de ser capaz de fazer as duas coisas, até mesmo pela inspiração. Quando consigo tirar algum tempo para ir conhecer coisas novas, volto mais criativa, com ideias frescas e com mais gana de fazer.
A comida é assim tão indissociável das viagens?
A comida está ligada às minhas experiências, sejam elas relacionadas com a cultura de um determinado país ou com algo que comi num restaurante ou em casa de alguém. Às vezes, traz-me tantas recordações que acabo por reinventá-la e servi-la a outras pessoas. Acredito que quando alguém fica muito tempo no mesmo sítio se torna difícil ter estas experiências.
Quando e como começa esta relação com a cozinha?
A primeira memória que tenho é de estar a cozinhar com a minha mãe, a fazer baked eggs — um ovo, uma colher de sour cream, sal, um pouco de óleo de trufa e depois forno. Acho que cozinhar se tornou um hobbie logo nessa altura. Com oito anos, ficava em casa a fazer bolos sozinha, sem a ajuda de ninguém. Aos 12 anos, já preparava sushi. Com 14, fazia os meus próprios macarons. É algo bastante difícil, reservado aos pasteleiros profissionais. Lembro-me de ter passado quatro meses a fazê-los em casa, todos os dias, até saírem perfeitos. Mas tinha alguma vergonha desse passatempo, sobretudo durante a adolescência. Naquela altura, cozinhar não era visto como uma potencial carreira, era o que as pessoas iam fazer se não tivessem sucesso na escola. Enquanto os meus amigos iam ao centro comercial no fim de semana, ficava em casa a cozinhar.
Não era um passatempo muito cool para uma adolescente.
Nada. Tinha imensa vergonha, por isso era o meu segredo. Ao mesmo tempo, sempre foi algo muito importante na minha família — por alguma razão os meus irmãos também trabalham em hotelaria. Crescemos neste ambiente, onde o mais importante era a hora de jantar, ter boa comida, boa música, um bom vinho e boa gente. Isso foi sempre muito central para nós.
Mas já se via a fazer isso profissionalmente?
Na verdade, devia ser a única que não via. Toda a gente na minha família sabia que ia acabar a fazer isto profissionalmente, sem qualquer sombra de dúvida. Sou a mais nova, por isso os meus dois irmãos começaram a estudar nesta área antes de mim, embora não estivessem tão destinados a isto como eu. O meu pai ficou super feliz, ele adora comida e sempre teve o sonho de ter um restaurante. A minha mãe sempre teve uma veia mais artística e, como já tinha dois filhos em hotelaria, pedia-me para ir estudar artes e cinema, ou psicologia. Ainda tentei estudar arte, mas a certa altura pedi-lhe desculpa e disse-lhe que tinha de ir fazer outra coisa. Hoje, está muito satisfeita com a minha escolha.
Era uma rapariga rebelde?
Especialmente durante a adolescência. Quando tinha 14 anos, decidi que conseguia tomar conta de mim. Os meus pais não concordaram, claro. Saía bastante à noite — todos os dias praticamente — sem que ninguém soubesse. Mais tarde, entrei para a escola de hotelaria — era um sítio bastante rígido, usávamos uniforme, tínhamos de ter o cabelo muito bem preso atrás, sempre todos iguais. Foi outro momento difícil. Aliás, acabei por ser expulsa. Vestia o uniforme, mas sempre com um toque rock’n’roll. Era assim, não conseguia ser de outra maneira.
Olhando para trás, acha que essa rigidez fazia sentido?
Não. A hotelaria já não é aquilo. Costumava ser uma coisa muito chique, com alguém a servir-te sempre com uma mão atrás das costas e a fazer com que te sentisses importante. Hoje, continuamos a poder fazer com que alguém se sinta importante mas de uma forma mais descontraída. E pormos a nossa personalidade no serviço ou na comida e pormos a pessoa que está a servir ao mesmo nível da que está a ser servida, para mim, é a melhor forma de proporcionar uma boa experiência a alguém. Sinto-me muito orgulhosa por não ter terminado aquele curso e adorava um dia voltar lá para dizer aos alunos mais novos que não precisam de fazer aquilo. Acredito que há momentos em que é preciso repensar tudo para poder evoluir.
Depois disso, qual foi a sua primeira experiência profissional?
Foi num restaurante de uma estrela Michelin, no Sul de França, com o Alain Ducasse, um chef de renome. Tinha 17 anos na altura. Estava a servir, mas o que queria mesmo era cozinhar. Aliás, cheguei a cozinhar, e até acho que não era má de todo. Mas era um ambiente sexista, racista e onde havia pouco respeito. Disseram-me que cozinhar ali não era trabalho para raparigas e que o melhor era continuar a servir as pessoas na sala. Sinceramente, não o encarei como algo pessoal. Achei que era uma atitude misógina, mas continuei a ter confiança no que estava a fazer.
Depois disso, tive uma experiência ainda pior. Essa sim feriu-me. Estava em Bruxelas, num restaurante com duas estrelas Michelin que me destruiu psicológica e fisicamente. Trabalhava 16 horas por dia — era a pessoa que mais trabalhava naquela cozinha e sem pausas. Além de não ser bem paga, houve assédio sexual também. Naquela altura, queria tanto mostrar que era boa a fazer aquilo que entrei nesta espiral. Um dia simplesmente não consegui terminar uma tarefa que me tinham pedido. Aí senti que tinha falhado, que não era boa o suficiente. Nesse momento, agarrei nas minhas facas e saí. Nunca mais lá voltei.
Para mim, aquela era a realidade de trabalhar numa cozinha, por isso fiquei a pensar que não era assim tão boa, que não queria continuar a ser tratada daquela maneira e que o melhor era ir fazer outra coisa qualquer. O meu irmão que trabalhava em Londres nessa altura, comprou-me um bilhete de avião e arranjou-me um emprego. Comecei a trabalhar num sítio incrível, onde posso dizer que recuperei a confiança em mim mesma.
Até então achou que uma cozinha funcionava nessa base: com abusos e preconceitos?
Em França e na Bélgica (e, ainda assim, não posso generalizar) continua a funcionar dessa forma, especialmente em restaurantes com estrelas Michelin. Há pessoas mais novas que estão a mudar um pouco a forma de trabalhar e a trazer mais respeito e paridade para dentro da cozinha, empregando mais mulheres, nomeadamente. Mas a verdade é que continua a ser assim. Há três anos voltei a trabalhar em França, apenas durante uns meses, e continuava tudo igual. Acho que é uma questão cultural também.
Em Londres encontrou um ambiente mais saudável?
Sim. Trabalhava numa espécie de brasserie francesa, com um chef que tinha vindo de Nova Iorque. Logo no primeiro dia, estavam a fazer sopa de cebola, um prato tradicional da zona de Lyon, de onde venho. Ele veio logo ter comigo e disse-me que sabia de onde era — “Prova a minha sopa e diz-me o que achas. Diz-me se está como vocês fazem”. Fiquei em choque. Ele estava mesmo a falar comigo? Fiquei lá três anos e fui promovida várias vezes. Portanto, também existem sítios assim.
Assim sendo, o que a levou a deixar Londres?
Havia coisas boas naquela vida, mas também havia um lado negro. Uma vez a trabalhar em Londres, trabalhas muito, fazes horários loucos e existe um grande problema de drogas. Sobretudo cocaína, speed, anfetaminas, tudo coisas que as pessoas tomam no trabalho para serem mais eficientes, precisamente por serem tantas horas e tão duras. É uma realidade muito sombria, que nem sei se existe muito aqui em Lisboa, mas que em Londres está muito presente. No meu último ano lá, entrei nisso. Tinha mudado de emprego, trabalhava mesmo muito, não era bem paga. Foi complicado. Comecei a sentir-me muito mal e a perceber que aquela atmosfera tinha deixado de ser saudável. Também tinha o coração partido, por isso era difícil para mim continuar em Londres de qualquer maneira. Estava na altura de fazer uma pausa e ir embora, por isso apanhei um avião para a Argentina, só de ida.
E porquê a América do Sul?
Porque sempre me senti muito atraída por aquele continente, sobretudo pela música. E também por saber que eram países onde poderia facilmente aprender a língua, sobretudo sendo francesa.
Tinha alguns contactos lá?
Nem por isso. A minha melhor amiga já estava na Argentina, então acabámos por viajar juntas durante alguns meses. Quando cheguei a Santiago do Chile roubaram-me tudo o que tinha, incluindo o meu passaporte, os meus cartões de crédito e todo o meu dinheiro. Ela teve de ir embora, eu tive de ficar lá nove meses, até juntar dinheiro outra vez e ter um novo passaporte. Mas comecei a trabalhar como consultora na abertura de um restaurante francês, uma oportunidade incrível. Basicamente, deram-me a chave de uma garagem mesmo pequena e disseram-me: “Abre um restaurante”. Tinha 22 anos, foi um bom desafio. Entretanto, ainda cheguei a ser deportada para a Bolívia por não ter documentos… e por aí fora. Mas continuei sempre a viajar e a voltar a França de vez em quando.
Foi um período de amadurecimento?
É sempre. E é também uma maneira de conhecermos os nossos limites. Não acho que estar tão longe de casa tenha sido o mais difícil. Para mim, foi quando me roubaram e dei por mim sem nada, e isso aconteceu-me umas cinco ou seis vezes. aliás, começou logo quando perdi o voo de Londres para Buenos Aires, senti que o mundo ia colapsar. Então na primeira vez que me roubaram as coisas, passei uma semana a chorar e a achar que ninguém me ia ajudar. A partir de uma certa altura, aprendes a reagir à situação e com a experiência percebes que consegues superar aquilo sozinho. Se continuas inteiro e saudável, vais ficar bem. Gosto desse tipo de luta, embora também houvesse uma vontade de estar mais perto da família. Os meus avós estão velhos e quis ter a possibilidade de vê-los mais. Mas lá no fundo quero é voltar.
E hoje o que faz na cozinha é um reflexo de todos os sítios por onde foi passando?
Definitivamente. Tudo é uma influência, mas não é só isso. Há pratos que, por exemplo, a minha mãe costumava cozinhar quando eu era pequena. Mas viajar é obviamente inspirador.
É por isso que a fusão é algo tão central no seu trabalho?
Talvez um pouco menos agora. Essa foi a direção que tomei no último ano, mas neste momento sinto que me foco mais nos ingredientes. Estou a começar a conhecer melhor os ingredientes portugueses e os produtores. Por isso, exploro mais o produto que tenho à minha frente e tento trabalhar a partir daí. Antes, era muito mais de pegar no prato de um país e de fundi-lo com algo de forma a que, a meu ver, resultasse bem. São abordagens diferentes e não fico agarrada só a uma.
Essa nova abordagem tem-na levado a descobrir o que de melhor se produz em Portugal?
É um trabalho diário, mas muito difícil de fazer no início. É um mundo um bocado fechado, este dos produtores, sobretudo para um estrangeiro. Por vezes, não são suficientes para todos os chefs e restaurantes, sobretudo agora que é uma grande tendência voltar aos pequenos produtores. Mas conseguimos entrar nesse círculo e é muito bom conhecer tantas pessoas apaixonadas, que falam, que dão ideias. E há tantos produtos diferentes. Tenho feito bastante foraging, ou seja, vou apanhar ervas selvagens, cogumelos e assim. Conheço várias espécies que costumava encontrar em França, mas agora estou a descobrir novas coisas em Portugal e a experimentá-las.
Onde é que costuma ir?
Vou sobretudo para Sintra, exploro os arredores de Lisboa. Encontro coisas muito interessantes, tenho só de me certificar de que não mato ninguém. Aliás, matar-me-ia sempre a mim primeiro.
O Boubou’s foi a sua primeira experiência a trabalhar em Portugal. Quais as suas impressões sobre o meio?
Não consigo bem ter termo de comparação porque não conheço outros lugares em Portugal. Acabámos por nunca ter aquele lado mais negro dentro da cozinha, também porque tentamos ter pessoas saudáveis a trabalhar connosco. Há coisas que não temos aqui, nomeadamente drogas — quem quiser pode fazê-lo em casa, mas não aqui. Aqui, é para estarem de cabeça fresca. Quando cheguei, senti que as pessoas eram menos habilitadas em comparação com os sítios onde trabalhei antes. Diria que é por não termos propriamente uma reputação — ninguém anda a lutar para trabalhar no Boubou’s, o que é compreensível.
E acho que, em Portugal, os salários também são tão baixos que as pessoas acabam por ser menos empenhadas e proativas. Se recebem 700 euros por mês, chegam, fazem as suas oito horas e voltam para casa. Essa parte foi um pouco difícil no início, estava habituada a trabalhar com gente muito apaixonada e comprometida. Quando estava nessa posição, se tinha de chegar mais cedo, não esperava que ninguém mo dissesse.
E descobri a misoginia de uma forma diferente, precisamente porque agora era eu a mandar. Quando abrimos, abríamos sete dias por semana, do meio-dia à meia-noite. A equipa era enorme e precisava de um sous-chef para trabalhar comigo. Tenho a dizer que tive experiências bem doidas com alguns homens que tentei contratar para o cargo. Normalmente, eram homens mais velhos e nunca correu bem, com nenhum deles. Da minha parte, ficava sempre muito feliz por ter alguém a ajudar-me e tentava não pressioná-los demasiado. Mas eles sentiam a pressão de trabalhar sob a direção de uma mulher jovem.
Tive um episódio com um rapaz que ficou durante uns quatro ou cinco dias. Tudo parecia estar a correr bem, eu estava a tentar ser simpática e entender o que é que ele queria fazer. Um dia, entrou na cozinha e disse: “Dá-me a minha faca”. Perguntei-lhe o que é que se passava e ele simplesmente recusou-se a falar comigo. Teve uma reunião com o meu irmão — disse-lhe que era um profissional, que tinha muita experiência e que, comigo à frente da cozinha, o restaurante fecharia em três meses. Também sugeriu ao meu irmão que me despedisse e que o pusesse no meu lugar. No final, ainda começou a gritar comigo. Mandei-o embora e comecei a chorar: achei que nunca ia conseguir encontrar ninguém para me ajudar. E esta é só uma das histórias. Também já levei um murro na cara. Não sei bem porquê, aparentemente sou uma grande cabra. Tem sido difícil. Já encontrei homens com quem trabalhei muito bem, mas a maioria é um problema.
Além de banir as drogas, como é que mantém um ambiente saudável dentro da sua cozinha?
Dentro da cozinha e para cozinhar, só quero mulheres. Tenho boas razões para isso, é tudo muito mais fácil de gerir. A abordagem da própria cozinha e a atenção aos detalhes é diferente. Elas entendem melhor a comida que faço. Diria que é, acima de tudo, uma questão de sensibilidade. E o mais importante para mim é o facto de nos conseguirmos entender melhor umas às outras e de, por isso, podermos estar vulneráveis. Por exemplo, todas temos o período, sentimo-nos cansadas, exaustas, tristes, zangadas. Eu digo-lhes, elas dizem-me e ninguém encara isso como algo pessoal ou como uma fraqueza. Apoiamo-nos.
Com homens na cozinha — e isto é algo que já tinha notado antes –, quando alguma de nós mostra uma fraqueza que seja, perde logo todo o crédito. Não devia ser assim, nem mesmo para os próprios homens, que sofrem toda aquela pressão para serem fortes e para não chorarem. Isso é treta. A verdadeira força está no facto aceitarmos a nossa vulnerabilidade, os momentos em que estamos tristes e cansados. Acontece a toda a gente, somos humanos. Assumir isso é o que faz de nós fortes e o que cria empatia com os outros.
Quando penso nas experiências que tive naquelas cozinhas mais difíceis, não me arrependo, porque me fizeram ficar mais forte e, ao mesmo tempo, porque me fizeram ver como é que não se deve tratar as pessoas. Nem acho que seja preciso tratar os outros assim para fazer algo resultar, de todo. Neste momento temos muito menos pessoas na equipa, demos-lhes salários melhores. Há entusiasmo, há dedicação e estão motivados. Se às vezes não estão tão bem, entendemos e estamos aqui para eles. Funciona bem assim. Éramos 13, agora somos quatro.
O ambiente dentro das cozinhas está a mudar de alguma forma?
Acho que sim, especialmente em restaurantes de pessoas mais novas. Os millennials têm uma abordagem diferente à comida, ao serviço, ao ambiente — é tudo mais descontraído e mais caseiro. E isso reflete-se na forma como tratam a equipa também. Neste momento, se queres fazer comida de qualidade e ter um serviço de qualidade, tens de ter pessoas apaixonadas, dedicadas e que ponham tanto amor no trabalho como tu.
Mas a violência e a coação ainda hoje são apresentadas como fazendo parte do ambiente de uma cozinha, nomeadamente em programas de televisão.
Por haver muita competição também. Mas diria que isso acontece sobretudo em cozinhas com estrelas Michelin como a do chef Ljubomir, lugares por onde as pessoas precisam de passar quando têm uma determinada ambição. Existe aí porque entram com aquele desejo de serem reconhecidas, melhores do que o colega do lado, de brilharem. Se tivesse uma equipa maior talvez fosse assim também, não sei. Acho que um pouco de competição pode ser saudável, mas é preciso ter cuidado.
O que é que hoje lhe dá mais prazer fazer dentro da cozinha?
Adoro aquela dança durante o serviço — toda a gente na cozinha sabe o que tem de fazer e, como já trabalhamos juntos há algum tempo, ninguém tem de falar. Depois, é todo o ambiente. Adoro música, por isso tem de haver sempre. Gosto de ver a casa cheia, música a tocar, as pessoas felizes e a equipa também.
Coleciona algumas tatuagens. Existe uma história que queira contar?
Tenho left e right escrito nas mãos, mas ao contrário. Basicamente, sempre confundi a direita com a esquerda. A minha mãe tem a mesma dificuldade, tal como os meus irmãos. Não sabemos porquê. Nunca consegui tirar a carta por causa disso — demoro muito tempo a pensar. Já esta ideia há muito tempo: tatuar direita e esquerda nas mãos e resolver o problema.
No Peru, quando ia finalmente fazer as tatuagens no terraço com um artista, depois de ter bebido umas cervejas, uma rapariga alemã passou por mim e disse-me que tatuar ao contrário, que isso sim seria mesmo divertido. Eu fiquei tipo: “Que ideia incrível”. É a minha tatuagem favorita, mas agora é ainda pior. Quando alguém me pede indicações na rua, começo a olhar para as mãos e o nível stress aumenta. Às vezes percebo que mandei as pessoas para a direção errada e que elas se vão perder.
Qual o prato que melhor a define neste momento?
O ceviche de batata doce. Para sempre en mi corazón. Já tem muito tempo, mas reflete o espírito daquilo que faço. É uma fusão cultural, tem um sabor forte — adoro acidez, para mim é das melhores coisas. É bonito mas quando provas é uma explosão. Não quero que a comida seja aborrecida, quero que seja saborosa.
Além disso, é vegano e isso é algo que tenho focado cada vez mais. Pessoalmente, não como muita carne ou peixe. Se como, tento escolher ou ser eu própria a pescar ou a matar (também acontece às vezes). Mas é bom mostrar que a comida vegana e vegetariana pode ser tão ou mais interessante do que a tradicional. Aliás, exige cem vezes mais criatividade. Mas de volta ao ceviche: é do Peru, um país que adoro, e ainda tem um pouco de Ásia. Nunca vi este prato em lado nenhum.