Dos arquivos convencionou-se dizer que estão “mortos”, porém, como sabem os historiadores, os repórteres, os documentaristas e outros arqueólogos do passado, um arquivo pode ser uma fonte borbulhante de vida, porque é ao passado que todo o presente vai beber. Foi fazendo uma hábil montagem com textos do passado e reflexões do presente que o ator e encenador Luís Miguel Cintra construiu o seu Pequeno Livro Arquivo, que acaba de ser publicado pela Edições 70.
Este livro, que nada tem de pequeno — são 600 páginas — é um ato de coragem, de frontalidade e de autocrítica, coisas muito raras nos nossos dias. O fundador do teatro da Cornucópia, uma das instituições artistas mais importantes da nossa democracia, aquela que levou até às ultimas consequências a utopia de fazer do teatro uma forma de politização e emancipação dos homens e das mulheres, decidiu encerrar as portas desta companhia, em 2016, num conflito aberto com o governo e as políticas culturais.
Sete anos depois do fim da Cornucópia, Luis Miguel Cintra, de 72 anos, que luta contra a doença de Parkinson, foi viver para Vila Nova de Gaia, quase se deixou morrer de melancolia — se não tivesse quem o salvasse — e escreveu aquilo que parece ser um livro de memórias, onde, como se fosse Gretel no meio da floresta, a recolher migalhas de pão para reencontrar o caminho de casa, o ator recolhe textos que escreveu para o teatro, cartas aos atores, entrevistas, misturando tudo com reflexões sobre a vida, a passagem do tempo, o reencontro com Deus e a necessidade de colocar de lado “a imagem que tinha dado sempre de um homem com muito juízo”, mas também a recusa daqueles que o homenageavam como “mestre”. Não, as notícias da sua morte eram manifestamente exageradas e este livro é, por isso, também uma prova de vida. Luis Miguel Cintra é um corredor de fundo, que “a pulso”, escreve um livro brilhante, que instiga o pensamento, através do qual, mais como poeta do que memorialista, procura tocar “o tempo que foge”.
“Nunca olhei para o espelho para gostar de mim, mas para ver o que os outros poderiam gostar. O que aconteceu foi que comecei então a forçar-me para falar mais de mim (…) passando a recorrer a novas máscaras. Mas como gosto de sofrer, mal os outros me anunciaram o triunfo da chegada à meta, comecei a encontrar metáforas para a vida e para a morte. Passei a trocar a ideia de percurso pela imagem da vida como um tabuleiro para um difícil puzzle, cada vez com menos espaço…”, confessa numa das páginas. De facto, o Luis Miguel Cintra que encontramos neste livro é diferente do homem circunspecto, de fundo tímido, que conhecíamos do teatro e do cinema. Saindo da sua zona de conforto, ele exclama “puta de vida” e confessa o seu sentimento de derrota, a sua mágoa, mas também as suas novas fontes de esperança e pequenas alegrias breves. Ao mesmo tempo, diz que dá consigo a pensar mais na morte e afirma com ironia: “Tenho 72 anos, sou de um grupo de alto risco”.
O teatro, em especial a Cornucópia, é o coração deste livro, que não se destina apenas a ser lido por quem frequenta os palcos, mas por todos os que gostam de ler uma obra muito bem escrita, instigante para o pensamento, atrevida, atravessada pela ironia e pela melancolia e que é — sobretudo — o testemunho de uma vida humana e de um país onde o Estado “obedece claramente ao ponto de vista dos ignorantes que sempre gritaram aos artistas: ‘ cambada de induteis, de chulos, ladrões do meu dinheiro, mandriões, vão trabalhar.”
Este livro é também um retrato cru do teatro em Portugal, desde o tempo de companhias subsidiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian até à atualidade de um teatro sujeito às leis do mercado e das políticas culturais. Nesta reflexão o ator é arrasador: “Agora é tudo conceptual, que é mais barato. Lá se vai o conceito para deixar em seu lugar o que dá jeito: nada. Um rotunda preta e nenhuma decoração, nem sequer uma cadeira. E [o teatro] cada vez mais igual a si próprio. Cada vez menos uma criação uma invenção”. Onde, diz ainda, os textos clássicos são “usados como um pass-partout para qualquer parvoíce e muito instrumento de promoção (…) isto não é tornar os clássicos acessíveis, é marketing que torna os teatros em fábricas de fraudes intelectuais.” Com um saber de experiência feito Luis Miguel Cintra, dá-nos um livro que é também uma lição de literatura e de vida.
Antes de entrarmos na entrevista propriamente dita, um esclarecimento sobre o seu nome: há sítios onde “Luís” surge com acento, outros em que não, como é o caso do livro. Qual é a forma correta de o escrever? Como nasceu em Espanha [Madrid], a certa altura refere que o seu nome o deve a uma personagem de um toureiro…
Os meus pais foram viver para Madrid porque o meu pai queria fazer a edição da versão portuguesa da Crónica Geral de España de Afonso X, o das Cantigas de Santa Maria, orientado pelo Sábio que fizera a primeira edição: Don Ramón Menendez Pidal. Mal fez a licenciatura, o meu pai atirou-se logo a um trabalho de tanta responsabilidade… Viveram na antiga residência de estudantes em que viveram Lorca e Dalí. Chamaram-me Luis Miguel por causa do toureiro Luis Miguel Dominguin, homem lindíssimo e grande artista da arena. Mas a referência a Lorca e Dalí é outra coisa muito importante que aqui confesso, que sempre fui mais que “fiteiro”, muito convencido, aspirando a um estrelato artístico como muitos adolescentes. Mas o que que sempre fiz foi brincar às escondidas, dizer uma coisa e ao mesmo tempo desdizer-me, dizer ou sonhar o seu contrário, não sei se por timidez se para me tornar “interessante”, como se costuma dizer. Eu tinha admirado muito a ideia desenvolvida nas cartas entre Lorca e Dalí sobre a beleza da atitude física de São Sebastião atado ao poste, em total exposição, como imagem da atitude perante a vida que um artista devia ter. O caso é que continuo fiel a essa ideia que converti num nobre gosto de me mostrar tal como sou, por mais contraditório que possa parecer com a ideia de que um ator se esconde atrás de uma máscara ou de uma personagem. Errado! Ao inventar uma personagem, o ator mostra a quem souber olhar para ele a sua mais secreta maneira de ser, a sua ideia da humanidade e da vida, a sua visão ou imaginação formada a partir da sua experiência e curiosidade pela vida dos outros e que o faz imaginar com o corpo todo, “dar corpo” ao que conhece e tem alegria em mostrar.
E a grafia? É “Luis” com ou sem acento?
Insisto sempre na pinta no i. Não para pôr os pontos nos is”, coisa nem sempre útil, mas para ter oportunidade de dizer que nasci em Madrid, cidade que adoro. Pena que não tenha podido escolher a nacionalidade porque os meus pais me matricularam logo no consulado português. A primeira palavra que disse foi “calle”.
Este Pequeno Livro Arquivo, ainda que possa parecer aos incautos um livro de memórias, um “foi assim”, um “arquivo morto”, é pelo contrário, uma confrontação viva com o seu passado a partir do seu presente. Mostra que um arquivo é também uma inquietação?
Assim o disse. É verdade. Embora seja, por assim dizer, material morto.
Como chegou a esta forma literária, digna dos melhores escritores? Foi pensado, maturado, surgiu de repente como?
A pulso. Custou um bocado.
O que é que o mobilizou para escrever este “pequeno” livro de 600 páginas?
Não querer viver separado dos outros, sobretudo dos que não têm já memória do que fiz e como fiz, os mais novos. Resta saber se o vão ler… Tem razão, é muito mais do que um balanço. Mas vi-me de repente… não foi de repente, eu sei, eu é que ainda não tinha dado por isso… fui impedido de continuar a viver da mesma maneira, por razões de idade, de saúde e sobretudo numa situação nova, porque me via sem o espaço que tinha sido construído com muitas dificuldades, mas onde tinha conseguido, com outros que me acompanharam, encontrar uma maneira de viver com sentido, com esperança, com desejo, à nossa medida. Uma ilha, talvez, como o Ricardo Aibéo chamou à Cornucópia no lindo filme que fez, aceitando a mesma metáfora, que Shakespeare na Tempestade. Transportando para dentro de nós a temática das peças que escolhi, fui percorrendo todos os assuntos, mas a questão de Deus, que tinha ficado latente desde a minha juventude, começou a ganhar presença fortíssima, tanto mais que começaram a morrer não só pessoas de quem gostei muito e a minha família um a um, mas também alguns dos companheiros que tinham a mesma vontade de conseguir tornar o mundo na terra da alegria, como diz o Ruy Belo num dos poemas.
Podemos dizer que os últimos anos têm sido de maior fragilidade?
Sim. Mas como continuei a gostar de viver, senti necessidade de compreender o que tinha feito. Acontece que eu tinha acompanhado a estreia de cada espectáculo de teatro que fiz durante tantos anos com a redação de conclusões a que tinha chegado através do nosso trabalho. Percebi que esses textos revelavam o que tinha descoberto, na tal atitude de São Sebastião. Não teria feito o livro se várias pessoas não me tivessem empurrado, nomeadamente o Cardeal Tolentino, que continuava a ser para mim o Tolentino meu muito amigo. Se reparar bem, o livro, depois de uma curta introdução, é composto quase exclusivamente de textos já redigidos e que se encaixam uns nos outros como as peças de um puzzle. Agora inventei uma nova tarefa: perceber a minha vida através da memória mais atenta de tudo o que sem dar por isso tinha decidido conseguir e lutado para que acontecesse. Muita coisa falhou, mas ganhei humildade para me espantar com o que nunca previ e depois aconteceu. Acredito na evolução do mundo. como responsabilidade de todos. Precisei sempre do olhar dos outros para ter vontade de existir. Pensar na morte ajuda a perceber muita coisa. Disse-me o realizador Manoel de Oliveira com mais de 100 anos, antes de morrer: só morre o corpo, a matéria, a personalidade, o Eu. O espírito abandona e junta-se ao Espírito Universal. É nessa reavaliação de tudo que vivo mais pacificado. Conheci e continuo a conhecer muita coisa boa. Começo a perceber que a morte não é necessariamente má. O sofrimento sim. Mas sem ele não haveria morte. Por isso, tenho tantas dúvidas quanto à eutanásia. O suicídio é outra coisa. Cada um é livre de querer morrer ainda mais do que lhe foi destinado. Mas peca se negar a morte. O encontro com a ideia de Deus, a Fé é para mim a descoberta da humildade e da necessidade de amar os outros. Mas chega. Chega? Cruzes canhoto. Mande-me calar, chega de lugares comuns.
A certa altura, entre as páginas e as palavras, há uma exclamação que nos comove por parecer tão alheia ao Luis Miguel Cintra: “Puta de vida”. O vernáculo, dizia Ferencsi, discípulo de Freud, é uma forma de descarregar agressividade, usando as palavras e não os atos. E aqui sentimos, percebemos, a dimensão da sua mágoa, da sua frustração. A que se deve isto? Exclama “Puta de Vida” e sentimos que o diz por todos…
Gosto muito, quando escrevo, de usar expressões comuns na boca de muita gente. Ajudam-me como forma de passar de um eu estéril a um nós, sempre identificado com os que mais lutam contra os disparates da História: os pobres e os revoltados, os que sonham com uma outra felicidade e ainda lutam por ela. Para os cristãos, coincide com o único mandamento de Deus: amar os outros, com um amor que é a resposta ao amor de Deus encarnado em Jesus para que a humanidade acredite no seu próprio mistério.
Ainda vai ao teatro?
Não. A última vez foi quando umas senhoras que estavam perto de mim me pediram para respirar mais baixo porque elas não conseguiam ouvir os atores. Respondi-lhes que não conseguia evitar porque era um problema de saúde. Resposta delas: “Mas assim não conseguimos ouvir os atores”. Não pedi desculpa e elas também não. Levantei-me e saí humilhado. O que não disse às senhoras foi que já estou também bastante surdo e conseguia ouvir sim, mas não valia a pena porque os atores não conseguiam dominar o texto, muito difícil, de facto. Ainda me apeteceu responder e disse à saída: “Talvez pudessem pedir aos atores para falar mais alto”, mas fiz mal, distraí os outros espectadores que conseguiam ouvir e que se distraíram a ouvir a conversa e ganhei fama de mal educado. Mas tenho contado o episódio por toda a parte. É uma boa fábula sobre a ética no teatro do nosso tempo. Estar sobre um palco dá direito a ser admirado e quem paga um bilhete tem direito a ser bem tratado. Isto é democracia.
Ainda se deslumbra com novos atores e encenadores?
Eu disse que me deslumbrava? Quando? Está a fazer troça de mim… avise-me quando descobrir um espetáculo desses que eu tentarei encontrar um lugar para deficientes com earphones e binóculos e irei em cadeira de rodas nos elevadores a que as salas são obrigadas para serem licenciadas ou amparado por algum gentil empregado de sala com contratação pontual legalizada, talvez brasileiro, quem sabe, ou ucraniana, se for mulher, que ficaram os homens a morrer na guerra, ver a luz dos novos candeeiros.
É provável que nas últimas décadas ninguém tenha feito ao teatro português uma crítica tão factual e contundente. Como chegamos ao que o Luis Miguel descreve? Porque é que se recusou a aceitar e bateu com a porta?
Ainda não vi ninguém definir o estado das coisas. Não bati com a porta. Só quando ela já estava fechada é que o chamado público deu por isso, que eu tinha desaparecido. O Presidente da República até se tinha deslocado ao teatro para se certificar que era mentira ou bluff compreensível. Já ninguém acredita em nada e eu só não aceitei a única coisa que nos ofereceram: a licença para fazer mais milagres, mais omeletes sem ovos. Já não tinha força para tanto. Mas percebo a pergunta. Aceitamos todos viver de máscara. Teatro para quê?
O gesto mais radical do teatro em Portugal foi o fim da Cornucópia?
Pois, mas eu não saí. Tive de matar a empresa. Foi pior. Mas é melhor perguntar ao Nietzsche ou ao diabo. Nunca fiz contas dessas. Sou cristão, gosto da generosidade.
Hoje, seis anos depois, como se sente em relação a essa decisão? Sente que valeu a pena ou, pelo contrário, foi inútil?
Alto aí, mas que grande confusão. Eu não pude decidir. Nada. Naquelas circunstâncias, não havia outra solução possível. Eu é que deixei cair a Cornucópia? Quem a deixou cair foi o Ministério da Cultura e a Câmara Municipal, que não julgaram valer a pena dar-nos, para não nos deixar morrer, os poucos euros a mais do que como subsídio iríamos receber. Estávamos no limite das nossas forças para continuar a fazer com dois tostões uma programação digna de Teatro Nacional. E expusemos longamente o problema ao Ministro e à Câmara Municipal.
Nestes últimos anos deixou a Cornucópia, deixou Lisboa, lida com uma doença crónica, mas recusa-se “a morrer de melancolia”. O que tem feito para não ser o velho ou um “morto pré-póstumo”?
Porque é que me queriam ver morto? Achei estranho que me aplaudissem tanto depois de extinta a Cornucópia. Mas pensei que eram saudades.
Porque é que a Cornucópia não pôde sobreviver à saída de Luis Miguel Cintra? Ou, a pergunta que muitos fazem: porque é que a companhia não foi entregue a outra pessoa e teve de acabar?
Acha que continuava a ser Cornucópia? Eu não saí. A Cornucópia era uma empresa com dois sócios: nos primeiros anos, eu e o Jorge Silva Melo, e depois durante décadas eu e a Cristina Reis. Se eu saísse ou a Cristina saísse, não havia Cornucópia. Ainda propusemos aos colaboradores mais antigos organizarem-se e gerirem-se a si próprios, usando o que tínhamos juntado ao longo dos anos e fazendo espetáculos mais baratos, mas não quiseram correr esse risco sem nós e eu e a Cristina não tínhamos mais força para continuar a fazer milagres. E os mais novos saíram logo dessa reunião, não queriam ser herdeiros.
Durante mais de quatro décadas a Cornucópia foi a materialização das mais radicais utopias de Abril: criar, educar, fomentar um Espaço Público feito de gente com pensamento crítico, capazes de entender e questionar a realidade de que são produto e produtores…
Não conseguimos isso tudo, mas vistas bem as coisas, felizmente. Assim temos razões para continuar a lutar, que é a mais interessante maneira de viver.
Um dos textos que incluiu neste livro foi o que escreveu sobre o convite do Teatro S. Luiz, em 2014, para a Cornucópia integrar as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril e que expressa todas as suas preocupações quanto ao rumo do teatro português.
O diretor do Teatro Municipal de São Luiz [à data era José Luís Ferreira] é que me propôs fazer um espetáculo sobre o 25 de Abril. Fiquei ao princípio muito chocado com a encomenda. Tocava-me fundo demais. Parecia-me que vestir a pele de uma solução de programação politicamente correta, a evocação de um assunto que foi fundamental na minha vida e que sinto como grande derrota, passar a ser a resposta a uma encomenda, parecia-me traição, sobretudo num teatro que fica na rua António Maria Cardoso, onde era a sede da PIDE e onde na tarde desse dia 25 de abril eu estava e ouvi os tiros que mataram as únicas pessoas que morreram… parecia-me uma coisa dolorosa. Só depois inventei com armas metafóricas como o teatro pode fazer; um espetáculo que dava que pensar sobre o assunto com a ajuda de um texto da Grécia Antiga, o Íon de Eurípides que fechávamos com toda a gente a chorar ouvindo um poema de Sophia e uma canção de Zeca Afonso diante de um pendão vermelho e verde.
“Sinto no meu quotidiano, como no das outras pessoas, uma opressão violentíssima pelos donos do dinheiro, que, sem darem a cara, tornam a nossa vida insuportável e a nossa arte desinteressante, de tão normalizada”, escreve a propósito da encenação de Hamlet, em 2015. De então para cá, e apesar de termos, há já uns anos, um governo de esquerda, as coisas melhoraram ou pioraram, na sua opinião?
O governo faz teatro? Eles não são capazes de melhorar ou piorar o teatro. Podiam sim melhorar a formação e dar condições de trabalho ao teatro que os artistas fazem. É evidente que têm de escolher quais dos artistas são de interesse público. E aí é que está o problema. Não fazem, ou não querem ou não sabem fazer. Fazem regulamentos, apesar de vários políticos de todos os partidos terem sido espectadores fieis da Cornucópia. A Constituição não lhes diz como, e não o fazem com critérios artísticos. Não sabem. Nunca devem ter pensado nisso antes. Não lhes interessa. Interessa desde há muito construir um modelo ou um sistema de modelos para facilitar os problemas de programação das suas salas e ser mais fácil a burocracia. Só se interessam por negócios ou carreira políticas. Viram só coisas fracas e é provável que não tenham nunca ido ao teatro. Apesar de o pai de António Costa ter sido dramaturgo. Talvez alguns tivessem visto o grupo da sua terra e ainda bem. Para eles, são todos bons ou maus, tanto faz. A coisa tende a piorar. O capitalismo esqueceu-se de viver senão para o dinheiro e o estatuto. E nós vamos lá dentro. Esquerda ou direita, que é isso?
Trabalhou com alguns do melhores cineastas europeus, entre eles João César Monteiro e Manoel de Oliveira. Contracenou com atores como Jeanne Moreau, John Malkovich, Michel Piccoli. O que é que o cinema lhe deu e lhe dá?
Depende. Muitas vezes prazer, quando tive a alegria de participar em filmes muito bons para os quais é preciso reinventar-se de cada vez. Nunca me deu muito dinheiro, ao contrário do que se pensa. Tentei não entrar no mercado. Conheci muita gente interessante.
A poesia, nas suas mais diversas formas, é algo que marca a sua vida e o seu trabalho. Deu voz a muita poesia, lendo, encenando poetas; Camões, Ruy Belo, Sophia, Pasolini, Lorca… Pode falar-nos um pouco sobre a importância da poesia na sua vida e no seu trabalho?
A poesia é uma arte essencial no combate contra o já conhecido e uma forma de comunicar com os outros reinventando a linguagem. Ensinou-me portanto a pensar de outras maneiras novas.
Apesar do desencanto, reconhece que “há ilhas” onde ainda se pode viver. Quais são as suas ilhas?
Não tenho muitas casas como a Nicole Kidman. Mas tenho uma pequenina diante do Porto.
Terminado este livro, na sua essência, interminável, para onde vai o Luis Miguel Cintra montar o “puzzle” da vida? Foi viver para Gaia, algum dia pensa em voltar a Lisboa?
Posso escolher entre o céu ou o inferno? Pergunte ao Caronte. Nada costumo considerar como definitivo, como deve calcular. Por enquanto, estou ora no Porto, ora em Lisboa.
Como ultrapassa diariamente a vida com uma doença fisicamente incapacitante, mas com a mente e a memória de um homem sem idade?
Com um medicamento que me foi receitado. Se a fábrica falir, estou frito.