Em fevereiro, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM), publicou Mensagem e Poemas Publicados em Vida. O volume, o mais recente da coleção de edições críticas de Fernando Pessoa, é o primeiro do género a incluir o único livro publicado em vida pelo seu autor. A edição é de Luiz Fagundes Duarte, que coordena a coleção de obras completas de Vitorino Nemésio publicada pela mesma editora em parceria com a açoriana Companhia das Ilhas.
Esta é a primeira vez que a Mensagem surge juntamente com os outros poemas publicados em vida por Pessoa, uma decisão tomada pelo próprio Fagundes Duarte, que admitiu não conseguir deixar de ter uma “visão holística” sobre a obra dos autores com que trabalha. “Foi assim que fiz com a recente edição crítica da poesia de Antero de Quental, e foi assim que entendi fazer com a poesia de Pessoa publicada e vida: nela, o todo é maior do que as suas partes, e é o todo, e não as partes, que deve interessar”, afirmou o professor da Universidade Nova de Lisboa numa entrevista concedida ao Observador por email.
A edição crítica da Mensagem surge 85 anos depois de o livro ter sido dado à estampa pela editora Parceria António Maria Pereira depois de ter ganho o Prémio Antero de Quental, segunda categoria, em 1934. Porquê? Para Fagundes Duarte, isto tem a ver com o “complexo português de esconder os soldados na sombra do general”. Desde que foi publicada, a Mensagem tem sido encarada “como algo de intocável, até porque existe, e encontra-se disponível, a edição preparada e revista pelo autor. E por isso se entendeu que não seria necessário fazer uma edição crítica”.
O curioso é que esta “edição preparada e revista pelo autor” não surgiu de um dia para o outro. Foi fruto de um longo trabalho literário, que ocupou Pessoa durante mais de 20 anos e só acabou perto da data da sua morte, como mostra o exemplar que o poeta tinha na sua biblioteca pessoal (hoje guardado na Casa Fernando Pessoa), repleto de alterações.
Qual é a vantagem de reunir, numa edição crítica, os poemas que Fernando Pessoa publicou em vida?
A maior parte da obra de Pessoa — que andará na ordem dos oitenta por cento ou mais – foi deixada inédita por ele; ou seja, quase tudo aquilo que hoje dele conhecemos foi publicado postumamente, ao longo de mais de oitenta anos, por diversos editores, com critérios muito diferenciados, e destinados a públicos com graus de exigência muito distanciados entre si, o que nos leva a concluir que, em muitos casos, cada texto que lemos é aquele que o editor leu (ou achou que o leitor deveria ler…) — mas que poderá não ser, bem vistas as coisas, aquilo que o autor de facto escreveu ou pretendeu escrever. Eu dou um exemplo: com muita frequência, Pessoa deixou nos seus manuscritos e datiloscritos autógrafos várias opções alternativas para o mesmo lugar do texto (sinais de pontuação, modos verbais, palavras, versos, até mesmo frases ou estrofes inteiras…), marcando-as ou não com determinados sinais codificados, deixando para mais tarde a tomada de decisão por qual delas optar. Nos casos em que publicou o texto, verificamos que, geralmente, optou pela última das opções em alternativa – mas nem sempre assim aconteceu, tendo acabado por optar por uma das outras; aqui, não temos qualquer dúvida acerca da vontade autoral, embora pudéssemos achar que, no lugar dele, a decisão poderia ou deveria ter sido outra. Porém, quando ele não publicou o texto (e essa é, como já disse, a situação mais frequente), o editor tem que tomar uma decisão, que é legítima tendo em conta os seus objetivos (o leitor tem que receber o texto limpo e acabado), mas sabendo que a decisão que tomar poderá não ser aquela que o autor teria tomado. E é o autor quem manda no seu texto, não o editor.
Temos, assim, uma enorme diferença de estatuto entre os textos que foram publicados em vida e aqueles que o não foram. Os primeiros constituem o cânone, a lição ne varietur, enquanto os outros são meras hipóteses do editor, mais bem ou menos bem (às vezes nem isso) argumentadas e justificadas. Foi por isso que, no âmbito da edição crítica, se optou por separar a poesia publicada em vida daquela que o não foi. No caso dos heterónimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, dos quais não foram publicados quaisquer livros autónomos em vida, os dois tipos de poemas (publicados em vida ou póstumos) ocorrem no mesmo volume, mas em secções diferentes; porém, no caso do ortónimo — os poemas assinados com o nome do autor físico Fernando Pessoa, ou a ele atribuíveis criticamente –, tendo em conta que foi publicado um livro em vida – a Mensagem – e que é enorme a quantidade de textos deixados inéditos, foi decidido separá-los, e assim temos um volume com a poesia publicada em vida e sete com os póstumos.
Além dos poemas em português e noutras línguas publicados em revistas e noutras publicações pelo ortónimo e das traduções, este volume inclui também a Mensagem, que costuma ter edição própria. Porque é que decidiu reunir este conjunto de textos no mesmo livro?
Enquanto filólogo e editor crítico, eu tenho uma visão holística da obra dos autores com quem trabalho. Foi assim que fiz com a recente edição crítica da poesia de Antero de Quental, e foi assim que entendi fazer com a poesia de Pessoa publicada e vida: nela, o todo é maior do que as suas partes, e é o todo, e não as partes, que deve interessar. Se bem que a Mensagem seja o livro de referência de Fernando Pessoa, publicado um ano antes da sua morte, e se tenha desde logo transformado numa espécie de símbolo nacional, o facto é que não se trata de uma obra cujos poemas tenham sido escritos de acordo com um projeto global e original: 14 dos seus 44 poemas já tinham sido publicados anteriormente, com especial relevância para a parte “Mar Português” que fora publicada, com este título, em 1922 (apenas com uma diferença de fundo, a substituição do poema VI, “Ironia”, por um outro, “Os Colombos”, que no entanto têm por base a mesma ideia: em determinado momento das grandes viagens marítimas e da construção dos impérios ibéricos, os espanhóis aproveitaram-se em parte do trabalho e do saber pioneiros dos portugueses…).
Acrescente-se que um dos poemas da Mensagem –“D. Fernando, Infante de Portugal” — foi escrito em 1913, impresso para o número 3 do Orpheu em 1917 e publicado na revista Athena em 1924, sempre com o título “Gládio”, tendo sido depois recuperado e reciclado, apenas com a mudança de título e pequenas variantes de maiusculação e de pontuação, para a Mensagem. Além disso, o segundo poema da Mensagem (“Os Deuses vendem quando dão”), caso não tivesse sido publicado pelo autor neste livro, e fosse encontrado inédito no espólio, como aconteceu com centenas e centenas de outros, teria sido, justa e compreensivelmente, atribuído ao heterónimo Ricardo Reis… O que nos leva a concluir — e até tendo em conta a proximidade da publicação do livro com a morte do poeta, bem como o facto de encontrarmos, ao longo de vários anos, diversos projetos de livros da mão de Pessoa que se poderão, com maior ou menor certeza, aproximar do que viria a ser a Mensagem — que esta é, tanto pelo conteúdo como pela intermitência com que os seus sinais de vida se distribuem por vários anos, uma obra que acompanhou o poeta ao longo de quase toda a sua carreira, sendo assim uma espécie de obra de síntese que, por tudo isto, não deve ser descontextualizada nem separada da restante produção poética que Pessoa entendeu estar em condições de ser publicada… No entanto, nesta edição, ela tem o seu lugar definido e autónomo: temos primeiro os 99 poemas publicados dispersamente e que foi possível localizar (incluindo, nos respetivos lugares definidos pela cronologia da publicação, os 14 que passariam para a Mensagem, que, assim, têm dupla publicação: no contexto original, e no contexto do livro), depois os 44 da Mensagem, obviamente com a organização autógrafa, e finalmente as 34 traduções que Pessoa fez de poemas de outros poetas – que, do ponto de vista técnico e do ponto de vista poético, podem ser consideradas como obras dele: compare-se, por exemplo, a tradução de “O Corvo” de Edgar Allan Poe com o seu original em inglês (que, como acontece com os das restantes traduções, é dado em aparato).
Disse que a Mensagem é um livro que foi construído ao longo de vários anos, mas esta edição só inclui os poemas que Pessoa escolheu para a versão final, que foi publicada um ano antes da sua morte. Certamente houve muitos outros que ficaram de fora. Não seria também interessante ver o que Pessoa excluiu? Ver a Mensagem que havia antes da Mensagem, por assim dizer?
Não existe no espólio de Pessoa qualquer projeto de livro, com indicação dos poemas que o constituiriam, que se possa relacionar, de longe ou de perto, com a Mensagem. Aquele que mais se aproxima é o que deu origem ao conjunto “Mar Português”, que por si só teve várias formulações; numa delas, encontra-se a referência “Poemas Portugueses”, constando também, noutros contextos, referências soltas a um poema que se chamaria “Portugal”, porém sem indicação de conteúdo. Aquilo que viria a ser a Mensagem apenas se encontra no original datilografado que foi enviado para tipografia, ainda com o título Portugal, pelo que é objetivamente impossível dizer que poemas o autor excluiu — a não ser, como já disse, o poema “Ironia” da primeira versão publicada do conjunto “Mar Português”, que foi substituído por “Os Colombos”, e um dos três poemas que formam o conjunto “Tríptico” publicado, já em 1934, no jornal Mundo Português; destes — “O Infante D. Henrique”, “D. João o Segundo” e “Afonso de Albuquerque” –, apenas os dois primeiros passaram para a Mensagem, com os mesmos títulos, enquanto o terceiro foi substituído por um outro totalmente diferente, ainda que com o mesmo título. Tendo em conta que o número de O Mundo Português em que estes poemas foram publicados é de julho-agosto de 1934, e que a Mensagem foi publicada em outubro do mesmo ano, poderemos dizer que esta só adquiriu a sua forma final, tal como a conhecemos, por volta de agosto-setembro de 1934. Ou seja, Pessoa trabalhou muito e hesitou ainda mais, até ao último minuto, na elaboração deste livro.
Esta é apenas a segunda edição crítica da Mensagem. Como é que isto se explica?
A Mensagem sofre do complexo português de esconder os soldados na sombra do general. Em cada época da História escolhe-se um autor ou uma obra, que se eleva aos píncaros do generalato, e esquece-se ou menospreza-se todos os outros, os homens da infantaria… Olhamos para a Literatura Portuguesa como se ela fosse uma espécie de ponte sobre o vazio, apoiada em pilares chamados Camões, Vieira, Eça e Pessoa, como se outros não existissem. Isto acontece ou por preguiça, ou por falta de meios, ou por insegurança — mas conduz, fatalmente, a uma terrível ignorância sobre a nossa história literária: por exemplo, boa parte da obra de Camões é atribuída (quando morreu, para além d’Os Lusíadas, Camões apenas tinha publicado três poemas líricos, por sinal de fraca qualidade…), e poderá, por isso mesmo, ter sido escrita por outros, que tinham ideias e gostos semelhantes, obedeciam às mesmas regras estéticas, comungavam do mesmo espírito de época, e viviam no mesmo contexto social, cultural e histórico. Alguns dos poemas da Mensagem (“D. Afonso Henriques”, “D. Diniz”, “D. João, o Primeiro”, “D. Pedro, Regente de Portugal”, “D. João, o Segundo” e “Afonso de Albuquerque”) são reinterpretações de personalidades e dos seus papéis históricos já tratados, em certos casos salientando os mesmos traços de personalidade, nos Poemas Lusitanos do grande (e esquecido) António Ferreira, contemporâneo de Camões. Muitos poemas do Pessoa ortónimo têm muito a ver, na forma e no conteúdo, com poemas de Antero de Quental (de resto, um dos projetos não concretizados de Pessoa era a edição da poesia de Antero).
Ora, desde que foi publicada, e sobretudo desde que foi elevada a símbolo — monumento! — nacional, a crítica tem olhado para a Mensagem como algo de intocável, até porque existe, e encontra-se disponível, a edição preparada e revista pelo autor. E por isso se entendeu que não seria necessário fazer uma edição crítica. Bem… Saiu recentemente, pela Relógio d’Água, uma edição supostamente crítica (realmente não se apresenta como tal), em que o layout do livro, que na edição original é também conteúdo, é enruidado com notas explicativas, um ou outro fac-símile, descrição de testemunhos, e coisas assim, que poderiam, no máximo, ser remetidos para uma secção de aparato crítico, mas nunca junto dos textos. Ler a Mensagem assim é como comer um bife com a carcaça da vaca ao lado — para se ver bem de onde foi retirada a lasca que temos no prato. Imagine-se a sensação!
Em termos de fixação de texto, que é uma das missões do editor crítico quando confrontado com obras cujas tradições incluem erros e variantes apócrifas que é necessário corrigir ou eliminar, e assim reconstituir a lição original, não seria necessário fazer uma edição crítica da Mensagem: a lição ne varietur dos poemas é conhecida e publicada pelo próprio autor, em certos casos alterada e confirmada por ele no seu exemplar de trabalho que se encontra na biblioteca da Casa Fernando Pessoa. Mas, como já vimos, a Mensagem não caiu do céu aos trambolhões, não é coisa de um suposto “dia triunfal” (como Pessoa, ficcionando à sua maneira, quis fazer crer que acontecera com o conjunto “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro, ficção esta que Ivo Castro já desmontou), e não saiu da cabeça do seu autor como Palas Atena da de Zeus, já perfeita e adulta. Pelo contrário, há uma complexa história genética do processo que culminou no livro, começando pelo próprio título (que só no original de tipografia passou de Portugal para Mensagem), há poemas que já tinham tido vida anterior própria e que foram reavaliados e reciclados para funcionarem no novo contexto, e por isso é dever do filólogo dar conta de tudo isso, o que só pode acontecer numa edição crítica, onde se disponibiliza o texto limpo (com a ortografia original, que em Pessoa, em certos casos, tem conteúdo poético), e, em secção à parte, todos os dados que são importantes para que o leitor tenha uma noção documentada do processo de construção do livro. Mas isto, na verdade, dá muito trabalho…
Uma das novidades desta edição é a inclusão, no corpus do Pessoa ortónimo publicado em vida, do poema “Névoa”, cuja única versão que se conhece foi publicada no Diário dos Açores em 1930. Acha possível que existam outros poemas de Pessoa que foram dados a conhecer em jornais ou outras publicações e cuja existência se desconhece?
Sim, é sempre possível, mas pouco provável: Pessoa já foi de tal maneira esquadrinhado que qualquer texto assinado por ele, publicado em qualquer algures, dificilmente passaria despercebido. Mas o facto é que este poema, em concreto, tinha permanecido esquecido, até que o Vasco Rosa, quase por acaso, o encontrou… O mesmo aconteceu com algumas das traduções aqui incluídas e que tinham passado despercebidas a Arnaldo Saraiva no seu livro Fernando Pessoa Poeta-Tradutor de Poetas. Por isso, devemos ser cuidadosos e admitir, sempre, que o corpus pessoano, mesmo o publicado em vida, pode não estar fechado.
Em que contexto é que essas traduções foram agora identificadas?
Por princípio, numa obra desta natureza, todas as referências bibliográficas são verificadas; e quando se trata de textos recolhidos em outras obras, procede-se sempre a um confronto com a versão original, para evitar a transmissão de erros. Foi assim que procedi, por critério, com as transcrições feitas por Arnaldo Saraiva a partir de uma espécie de enciclopédia em 24 grossos volumes, a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, muito conhecida nos inícios do século XX, de que é difícil encontrar a coleção completa; em Lisboa não consegui. Mas consegui encontrar uma na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo, e folheei todos os volumes, num total de alguns milhares de páginas. Foi assim que verifiquei não só as transcrições de Arnaldo Saraiva — todas elas de resto corretíssimas –, como encontrei outras traduções feitas por Pessoa e que lhe tinham escapado; toda essa informação se encontra no aparato da minha edição. Digamos que o contexto foi o que é de esperar num trabalho destes: o da investigação.
Existe a ideia de que Pessoa publicou pouco porque tinha dificuldades em levar um projeto até ao fim. Isto foi contestado por Pedro Sepúlveda e Jorge Uribe, que defenderam em O Plano Editorial de Fernando Pessoa que a forma como o poeta divulgou o seu trabalho foi planeada. Qual é a sua opinião relativamente a esta questão? Na introdução defendeu que Pessoa era “um rapaz planeado”.
Sim, foi planeada. Temos é que distinguir as coisas. Uma, são os poemas publicados por Pessoa em livro (a Mensagem e os 35 Sonnets) ou, isolados ou em conjuntos dotados de título e de consistência interna, em revistas de referência — como o Orpheu, a Athena, a Revista Contemporânea, ou a Presença, entre outras; aí, sim, houve planeamento, avaliação de oportunidade, e, digamos, um pensamento estratégico. Outra, são os poemas que ficaram inéditos ou inacabados, e que dificilmente — impossivelmente mesmo — se poderá fazer caber em qualquer projeto autógrafo: são tantos, diferentes, alternativos, intrincados, lacunares, convergentes e desconvergentes os projetos de reunião e publicação de poemas, heterónimos incluídos (e para falar apenas da poesia), que Pessoa desenhou ao longo da vida, para mais muitos deles referindo poemas que na realidade nunca foram escritos, que tentar fazer crer que é possível reconstituí-los e dotá-los com os respetivos conteúdos é, no mínimo, burlar o leitor e induzi-lo em logro. Mas não foi isso que o Pedro Sepúlveda e o Jorge Uribe disseram; o que eu acho que eles queriam dizer, e bem, é que Pessoa estava a ser seguro, honesto e planeado a cada projeto que elaborava… Até lhe ocorrer fazer outro. Porque, nele, o definitivo era sempre provisório. A história da Mensagem dá boa conta disso.