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Madalena de Azeredo Perdigão: os cem anos da "ministra da Cultura que não existia"

Das movimentações em Coimbra aos palcos da Gulbenkian; das ambições musicais à transfiguração de uma vida pessoal em mudança: um perfil de vida e de obra no centenário de Madalena de Azeredo Perdigão.

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Há precisamente 40 anos, em 1983, a Aula Magna servia de palco a um conjunto de concertos organizados no âmbito do I Festival Internacional de Música de Lisboa, uma iniciativa do então ministro da Cultura e Coordenação Científica, Francisco Lucas Pires, que acabou por não ir além da primeira edição. Com apenas 32 anos, o músico e compositor português António Pinho Vargas participava no festival, como membro do quarteto de Rão Kyao. Para a mesma ocasião estava programado também um concerto do pianista Anthony Davis. Para o músico norte-americano foi colocado em palco um piano Steinway, ao passo que, para o grupo português, estava preparado um chamado quarto de cauda. “Quem estava a tratar dos concertos decidiu que para um músico português era suficiente um piano quarto de cauda”, recorda Pinho Vargas. A verdade é que este episódio – provinciano, mas elucidativo da época vivida – teve um outro desfecho devido à intervenção de Madalena de Azeredo Perdigão, que assumia as funções de presidência do festival. Era a primeira vez que se conheciam e Madalena, diz Pinho Vargas, nunca o tinha ouvido tocar até então.

“A Madalena Perdigão tinha sabido e impôs a substituição do piano. Falou-me disso no camarim: ‘Se estava um Steinway para o músico americano, por que razão não estaria um piano igual para o músico português?’, saliento que a decisão não tinha nada a ver comigo diretamente. Era o princípio que estava em causa. Neste episódio estava todo um programa anti provinciano, contrário ao complexo de inferioridade atávico. Muita da sua ação seguiu esse princípio admirável e nesse amplo horizonte radicará a enorme importância do seu legado”, sustenta o compositor de 71 anos. Na atitude de Madalena de Azeredo Perdigão, volta a sublinhar, estava bem presente um princípio de não tratar de forma desigual os artistas portugueses para os quais, em boa verdade, tinha aberto caminho para que pudessem, eles mesmos, progredir com as suas carreiras, em termos nacionais, mas também internacionalmente. Assumindo uma visão cosmopolita, o músico refere que, talvez ao contrário do que se esperaria, Madalena abriu-se ao mundo, enquanto outros se fecharam. E que, por isso mesmo, “a sua figura teve um impacto sem par na vida cultural portuguesa”.

Agora que se celebram os cem anos do seu nascimento (28 de abril de 1923, morreria a 5 de dezembro de 1989), importa voltar ao percurso desta vincada e sofisticada personalidade portuguesa que “durante décadas terá sido a ministra da Cultura que não existia e talvez até mais do que isso” – afirma António Pinho Vargas sem rodeios. Mas quem foi afinal Madalena de Azeredo Perdigão, figura incontornável da história da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG)? O que fez como mulher, programadora e educadora que a tornam numa das personalidades mais importantes da vida artística portuguesa da segunda metade do século XX? O seu percurso intelectual e profissional é vasto, mas pouco estudado ou até mesmo reconhecido. Esta é uma das conclusões de Élia Teixeira, autora da tese “Arte e Educação: O percurso de Madalena Perdigão e a sua relevância no panorama cultural Português”, para quem subsiste, no entanto, uma evidência: “A diversidade do trabalho que desenvolveu em prol das artes e da educação em Portugal e a intensidade com que o fez. Algo que se torna ainda mais relevante quando contraposto com a realidade portuguesa dos anos 1960-70 e com a condição social da mulher no período que antecedeu o 25 de Abril de 1974, fase em que esta figura iniciou e consolidou a sua carreira profissional”.

Yvonne Mortier Smith (viúva do pintor Francis Smith) com José de Azeredo Perdigão e Madalena Azeredo Perdigão, janeiro de 1969

Muito mais há a dizer sobre a ação interventiva de Madalena de Azeredo Perdigão, que será este mês de abril homenageada por ocasião da data em que celebraria cem anos de vida. Em Lisboa, a Fundação Calouste Gulbenkian, inaugura a 28 de abril, a exposição “Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989): vamos correr riscos”, organizada por Rui Vieira Nery (comissário) e Inês Thomas Almeida (subcomissária). A mostra apresenta uma vertente biográfica e retrospetiva, mas também uma faceta prospetiva, focando tanto as estruturas que lançou e que ainda hoje permanecem em atividade como a sua permanente atitude de abertura a novas problemáticas, modelos e metodologias de intervenção na gestão artística. Documentos inéditos, fotografias, programas de concertos, recortes de jornais, edições e partituras serão alguns dos materiais que estarão em exibição no átrio da Biblioteca de Arte e Arquivos da Fundação até dia 20 de julho.

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No Grande Auditório, será apresentada a peça La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ de Olivier Messien, obra que resultou de uma encomenda do Serviço de Música da Fundação, na altura dirigido por Madalena de Azeredo Perdigão, interpretada pelo Coro e Orquestra Gulbenkian, dirigida por Myung-Whun Chung, nos dias 27 e 28 de abril. Outro momento marcante da homenagem será a realização a 6 de junho de um colóquio que vai evocar a sua vida e ação, mas também os desafios atuais e futuros do seu legado. No seu decorrer será lançado o livro com uma antologia de textos de Madalena Perdigão, em que se inclui o Manifesto ACARTE, textos com a sua visão estratégica sobre a descentralização dos Festivais Gulbenkian, sobre a acessibilidade da cultura e a inclusão, entre outros documentos, que ajudarão a conhecer melhor o seu importante legado.

Uma educação sentimental: Madalena Biscaia, natural da Figueira da Foz

Será, porventura, um dado pouco adquirido para muitos habitantes da Figueira da Foz a existência atual da Praceta Doutora Maria Madalena Biscaia de Azeredo Perdigão ou, sobretudo, a quem se refere este nome (que por ali é mais reconhecida apenas como Biscaia, apelido da sua família, e não pelo nome que adquiriu aquando do seu segundo casamento, com José de Azeredo Perdigão, em 1960). Foi ali mesmo, porém, que nasceu, a 28 de abril de 1923, Maria Madalena Bagão da Silva Biscaia. A mais velha de três irmãs, filha de Lídia Maria de Jesus Bagão da Silva Biscaia e Severo da Silva Biscaia, herdou dos pais uma educação particularmente rígida, forjada entre os ideais republicanos do pai, um convicto opositor de Salazar, e o catolicismo defendido pela mãe. Dos dois adquiriu uma sensibilidade para as artes que recordaria mais tarde, numa entrevista concedida a João de Freitas Branco, em 1989, para a São Carlos: Revista: “O meu Pai era um grande amador de Teatro, colaborou e dirigiu grupos teatrais, na Figueira da Foz (…). No que respeita à música, foi a minha Mãe que me entusiasmou a aprender piano, pelo muito que considerava esta arte”.

Começa a estudar piano aos sete anos, frequenta o Instituto de Música de Coimbra, onde foi aluna do compositor Fernando Lopes Graça. Concluiu o Curso Superior de Piano no Conservatório Nacional de Lisboa em 1948, prossegue estudos de aperfeiçoamento em Paris e chega a apresentar-se em concertos com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco. Sobre este período de juventude, a musicóloga Inês Thomas Almeida explica que, já na Figueira da Foz e depois em Coimbra, Madalena mantém uma ação importante nos debates públicos sobre a cultura. “Escreve artigos para os jornais, propõem um festival de música em Coimbra… é de alguém que já tinha uma visão estratégica muito antes de chegar à fundação. Organizava atividades musicais e já representava o Círculo de Cultura Musical em Coimbra e na Figueira da Foz, era representante da juventude musical e fazia concertos para a sociedade civil”, sintetiza ao Observador.

“Manteve sempre uma ação de serviço público no domínio da cultura e aos 23 anos autopropõem-se como sócia do Conselho Nacional das Mulheres portugueses, que era uma organização feminista, presidiada pela Maria Lamas e que foi interditada no ano seguinte, em 1947”, diz-nos a musicóloga e cantora lírica Inês Thomas Almeida.

Ao mesmo tempo que mantinha uma postura interventiva como agente cultural, vê-se, porém, obrigada a abandonar uma potencial carreira profissional (alguns anos mais tarde), por uma questão nervosa que a impedi-a de mover um dedo da mão esquerda e praticar corretamente a técnica de pianista. Numa entrevista, datada de 1988, a Jorge Listopad, a própria recordava esse contratempo: “Coimbra é mais doloroso para mim por causa do piano. Foi muito desgostoso deixar de tocar. Tocar dava-me um grande prazer. Gostava mais de tocar Beethoven, mas gostaria ainda mais de Mozart, mas nunca fui capaz”.

Os anos de Coimbra

Após terminar os estudos liceais, Madalena ingressou na Faculdade de Ciências de Universidade de Coimbra, onde se licenciou com distinção em Matemática em 1944 e chegou a ser professora da disciplina, do 1.º ao 7.º ano do liceu. Nunca deixou a música de lado, mesmo com o problema que a levara a abandonar os estudos de piano. “Manteve sempre uma ação de serviço público no domínio da cultura e aos 23 anos autopropõem-se como sócia do Conselho Nacional das Mulheres portugueses, que era uma organização feminista, presidiada pela Maria Lamas e que foi interditada no ano seguinte, em 1947”, acrescenta Inês Thomas Almeida. “É lançada uma petição, em maio de 1946, publicada na Ala Feminina, assinada por 113 mulheres, ela era a quinta, que pedia a criação de uma comissão em Coimbra para que se valorizasse e aumentasse a visibilidade do trabalho feminino na organização cultural e noutras esferas da vida civil.” A rede cultural e os contactos que foi criando trouxeram-lhe, no entanto, a atenção indesejada por parte da polícia política.

A historiadora Ana Bigotte Vieira, autora do livro Uma Curadoria da Falta. O serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian 1984-1989 (a partir da sua tese de doutoramento) que, com o coreógrafo João dos Santos Martins, levou a cabo, em 2022, a exposição Dança em Coimbra?! para uma timeline a haver: genealogias da dança como prática artística em Portugal (ed. VI), realça que, como constataram na investigação que então fizeram, é possível, a partir do processo de MMAP na PIDE, “constatar que um informador chamado Inácio segue o grupo de Coimbra [em que se insere igualmente] Arquimedes da Silva Santos e João José Cochofel, grupo este que refundará a Vértice, mas que está também bastante ligado à música e às revistas de música como a Gazeta Musical e de Todas as Artes. “Pelos relatos de Inácio apercebemo-nos de um período de quase uma década, marcado também pelas contestações do MUD Juvenil”. Uma vez terminado o curso superior, é também nestes anos que adota o nome de Madalena Farinha, por casamento com João Farinha, doutorado em Matemática e primeiro Assistente da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Ambos partem para Paris, João Farinha como um dos primeiros bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian, recentemente criada (os seus estatutos foram aprovados pelo Estado Português em julho de 1956), e Madalena como bolseira do Instituto de Alta Cultura, para estudar piano na Sorbonne, com o prestigiado professor da época, Marcel Ciampi.

“Percebemos que Madalena e o seu grupo e familiares participam nas movimentações de Coimbra e há um certo cultivo cosmopolita e das artes entendido militantemente”, diz Ana Bigotte Vieira

Os anos de Coimbra, diz Ana Bigotte Vieira, dão conta de um período de “grande contestação ao regime”. “Percebemos que Madalena e o seu grupo e familiares participam destas movimentações e há um certo cultivo cosmopolita e das artes entendido militantemente”. “Olhando para o artigo ‘Festivais em Coimbra?!’ a que, aliás, a exposição ‘Dança em Coimbra?!’ deve o nome, percebemos que quando os festivais Gulbenkian percorrem o país e nomeadamente se instalam em Coimbra, no fundo cumprem o que Madalena Perdigão havia defendido já dez anos antes, antes mesmo de trabalhar na FCG”, destaca.

A chegada à Gulbenkian e o casamento com José de Azeredo Perdigão

A súbita morte de João Farinha, em setembro de 1957, força o regresso de Madalena a Portugal. Acompanhada pelo pai, desloca-se da Figueira da Foz a Lisboa, à sede provisória da FCG, na Rua de São Nicolau, para agradecer pessoalmente a José de Azeredo Perdigão, então presidente daquela instituição, a atenção e apoio prestados ao seu falecido marido. Segundo o testemunho da própria, citada por Élia Teixeira, a conversa que mantiveram terminou da seguinte forma: “O Dr. Azeredo Perdigão indicou-me, nessa altura, o remédio para o grande desgosto que acabava de sofrer (…) o recurso ao trabalho como meio de ultrapassar a dor. Disse depois o seguinte: ‘Não tenho aqui na Fundação Calouste Gulbenkian, que acaba de ser criada, lugar para uma matemática. Porém, na música, está ainda tudo por fazer e terei o maior gosto na sua colaboração’”.

Aceita o convite e muda-se para a capital portuguesa, sendo responsável pelo conjunto de atividades no âmbito musical, para as quais não havia ainda matrizes definidas ou uma noção de conjunto. Três anos depois, em 1960, casa-se com Azeredo Perdigão, no que Eduardo Lourenço chamaria de “romance dentro do romance” face ao “conto de fadas” que foi o encontro entre os dois. A verdade é que o convite para ali trabalhar seria decisivo para o futuro da fundação e do próprio percurso pessoal desta figura. É o começo de um primeiro período de grande motivação profissional, sustentado, sumariamente pela criação e direção do Serviço de Música da Fundação (1958-1974), tendo elaborado o primeiro plano de atividades do mesmo e criado instrumentos essenciais para a vida cultural portuguesa no campo da música e da educação musical.

O Grupo Gulbenkian de Bailado, em 1971, também criado por Madalena de Azeredo Perdigão

Ballet Gulbenkian

Contextualizando aquele que era o panorama artístico à época, Rui Vieria Nery explica ao Observador que, tendo em conta a sua chegada à Gulbenkian, “importa pensar no que era a vida musical portuguesa”. Nos finais da década de 1950, explica o historiador e musicólogo existiam dois tipos de iniciativas: por um lado, as organizações do Estado, com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional e, em menor grau de importância, a Orquestra do Porto; por outro lado, do ponto de vista da sociedade civil, havia instituições como a Sociedade de Concertos de Lisboa, a Junta Musical Portuguesa e o Círculo de Cultural Musical, marcadamente frágeis na sua ação. “O setor do Estado não cumpria aquilo que era a obrigação que se esperava dos poderes públicos para assegurar formações musicais estáveis, quer na formação, quer na atividade e Portugal estava completamente desligado do circuito internacional, exceto nas temporadas musicais do São Carlos e num ou noutro concerto da Orquestra Sinfónica Nacional, e não havia formação avançada”, sintetiza.

Na falta das “pré-condições” que assegurassem uma “verdadeira modernidade musical”, que já era “um dado adquirido noutros países da Europa”, Madalena percebeu que era preciso apostar na formação. “Desde logo pelas bolsas de estudo, não só para alunos nas escolas de música do país, como para aperfeiçoamento no estrangeiro; em segundo lugar, a modernização da iniciação musical – até aí parada no tempo, com estudos baseados no solfejo antigo – e lança uma série de cursos de formação musical; apoia a constituição dos conservatórios de Braga e de Aveiro, cuja criação e custos é apoiada pela fundação, para alargar a rede de escolas”, sumariza. Nesta década, chegava-se também à chamada Primavera Marcelista e, segundo Vieira Nery, Madalena irá beneficiar daquilo que o ministro da Educação Veiga Simão estava a tentar fazer em termos de reforma do ensino, “que mobilizava toda uma quantidade de gente mais nova, na sua maioria afeta à oposição democrática”. Noutro aspeto, salienta o musicólogo, está a entrada de Portugal no circuito musical internacional – na Association Européenne des Festivals de Musique –, que se dá com o Festival Gulbenkian de Música, que Madalena de Azeredo Perdigão passa a assumir como programadora, desde a segunda edição, em 1958, sendo promovida a Diretora do Serviço de Música de Fundação Calouste Gulbenkian, a partir de 1 de janeiro de 1960. “No fundo, colocou Portugal na CEE da música, muito antes da integração europeia”, realça.

Da orquestra ao ballet

A partir desse momento, é Madalena Perdigão que passa a assumir um papel preponderante nas atividades musicais da fundação, nomeadamente nas encomendas que faz a vários compositores ao longo da década, entre eles Iannis Xenakis ou Olivier Messiaen, mas também a artistas portugueses. À medida que se construía no tempo, o festival ganhava destaque pelo seu carácter descentralizador, passando por diversas cidades portugueses e pelos arquipélagos – tonando-os populares e não elitistas (com uma política de bilheteira inédita, com preços bastante acessíveis e um desconto de 50% para estudantes). “Vistas as coisas, ou a fundação pagava a construção de uma estrutura de produção profissional para as sociedades já existentes ou criava do zero, mantendo o total controlo”, completa Vieira Nery. É assim que começam a passar por Portugal alguns dos maiores músicos mundiais – alterando a própria missão da Gulbenkian, uma vez que é a própria fundação a produzir concertos e festivais, algo que no entender do musicólogo é diferente de uma instituição que apenas financia projetos exteriores. É daí que surge igualmente a necessidade de se criar uma estrutura própria, algo que se materializa com a criação da Orquestra Gulbenkian, em 1962, inicialmente constituída apenas por 12 instrumentistas de arco e um cravista, assumindo o nome de Orquestra de Câmara Gulbenkian.

O início dos anos 70 revelaram um período de alguma tensão e críticas face às suas decisões. Do princípio da década até à efervescência do período da Revolução de Abril e o processo que se seguiu, surgiram controvérsias à volta do Serviço de Música, tendo por base críticas ao elitismo dos festivais, à política de encomendas exteriores, em virtude das estruturas já existentes no país e à presença de artistas estrangeiros na programação por comparação com os portugueses.

Num relatório do presidente da Fundação José de Azeredo Perdigão, salienta-se a sua missão com o “intuito de dotar a vida musical portuguesa de um conjunto instrumental autónomo, que pudesse contribuir, de maneira efetiva e regular, para a difusão da cultura musical, principalmente entre os jovens e em certos meios da província menos preparados para este género de realizações artísticas”. (in II Relatório do Presidente: 1 de janeiro de 1960 / 31 de dezembro de 1962). Seguiu-se a criação do Coro Gulbenkian, em 1964, e do Grupo Gulbenkian de Bailado, mais tarde Ballet Gulbenkian (1975). “Havia também a ideia de se criar um Grupo Experimental de Ópera, que ela teria querido integrar, mas que não chegou a ter um agrupamento permanente”. Entre outros projetos idealizados, havia também a hipótese de se criar uma academia de música, realça Vieira Nery, o que não deixa de evidenciar um vasto campo de premissas que sustentavam o seu trabalho. Cria, no entanto, uma comissão de etnomusicologia para patrocinar a investigação no domínio da história da música, o que vai facilitar o contacto com o estrangeiro e permitir a gravação musical por parte de editoras como a Philips ou a Deutsche Grammophon.

“O que é interessante ver no seu percurso é que se trata de um puzzle em que as peças se vão encaixando todas e quando chegamos a 1974, já com a revolução, percebemos que a estrutura está montada”, realça Rui Vieira Nery. “O único revés neste percurso inicial é que em 1970, o conselho de administração decidiu extinguir o festival porque o custo tinha subido exponencialmente, associado também à perda de rendimentos de petróleo da fundação, que irá culminar em 1973, mas que já se sentia sobretudo nos países árabes, em especial no Iraque, onde o fundador tinha apostado décadas antes”. Facto que não deixaria de lamentar, em entrevista, datada de 1989: “Lutei quanto pude pela continuação dos Festivais Gulbenkian de Música, que, entretanto, me tinham conquistado completamente e que achava constituírem um acontecimento de grande importância para a vida cultural do País, com uma adesão de público espantosa. (…) verificou-se de facto um coro de acusações e lamentações públicas que ainda hoje muitas vezes encontram eco”. Mesmo perante esse contratempo, o trabalho estava consolidado e Madalena de Azeredo Perdigão tornara-se decisiva para delinear a intervenção da fundação na área da música e, posteriormente, no conjunto das áreas das artes do espetáculo.

Reformista pela educação e pela arte

O início dos anos 70 revelaram um período de alguma tensão e críticas face às suas decisões. Do princípio da década até à efervescência do período da Revolução de Abril e o processo que se seguiu, surgiram controvérsias à volta do Serviço de Música, tendo por base críticas ao elitismo dos festivais, à política de encomendas exteriores, em virtude das estruturas já existentes no país e à presença de artistas estrangeiros na programação por comparação com os portugueses. Ao Observador, a escritora Yvette Centeno diz que, em muitas ocasiões, em especial neste período, Madalena Perdigão, que tinha sido sua explicadora de Matemática, em Coimbra, “se viu ‘saneada’ por aqueles que antes, enquanto o marido tinha um poder maior, certamente a elogiavam à maneira portuguesa, de hipocrisia e inveja.” Em setembro de 1974, depois do 25 de Abril e de ter sido alvo de acusações de autoritarismo e elitismo, Madalena Perdigão apresentou a sua demissão da FCG, local onde só voltaria em 1984, para dirigir o Serviço ACARTE.

O Coro Gulbenkian, dirigido por Olga Violante, que ocupou o cargo desde a formação (1964) até à sua morte (em 1969)

Pinto Alves

Antes disso, em 1970, é nomeada por Veiga Simão, então Ministro da Educação, para presidir a uma Comissão de Reforma do Conservatório Nacional. Esta Comissão reformulou o ensino do teatro e da música, criou uma Escola de Dança, uma Escola Superior de Cinema e, de forma pioneira, fundou a Escola-Piloto de Formação de Professores de Educação pela Arte, que se manteve operacional durante 10 anos. O período seria de interregno no que respeita às intervenções como programadora, mas no qual desenvolveu um importante um trabalho de relevo no campo da educação artística, tendo sido convidada pelo Ministro da Educação, Mário Sottomaior Cardia, para dirigir o Gabinete de Coordenação do Ensino Artístico do Ministério da Educação, entre 1978 e 1984. Aqui, constituiu e presidiu uma comissão especializada para redigir o Plano Nacional de Educação Artística, com o qual se pretendia a integração da educação pela arte no sistema educativo português.

Foi nesta década que conheceu a docente Maria Emília Brederode Santos, a quem Madalena Perdigão pediu uma avaliação da Escola Superior de Educação pela Arte (ESEA). “Já a conhecia pela sua intervenção na Gulbenkian e pela reforma que tinha levado a cabo na educação”, relembra ao Observador. Descrevendo-a como “uma mulher corajosa e objetiva”, Maria Emília Brederode Santos explica que Madalena Perdigão lhe pede, nessa altura, para realizar uma avaliação pedagógica da escola que tinha criado, num momento em que este já se encontrava suspensa – “ela no fundo queria perceber de que forma é que aquele projeto podia continuar”.

Tanto na reforma do sistema educativo, como na ESEA, estavam presentes os ideais da educação pela arte enquanto forma de desenvolver a personalidade e uma mais fácil integração sociocultural dos indivíduos. “Era uma mulher de vanguarda e pôs isso em prática tanto na Gulbenkian, como também na criação desta escola onde se integravam as diversas artes. Sempre defendeu uma forma de interdisciplinaridade que, no contexto português, era particularmente inovadora”, acrescenta a antiga presidente do Conselho Nacional de Educação. Durante dez anos de existência, diz Brederode Santos, a escola formou professores e alunos, ainda que fosse – como escreve na sua avaliação – “atacada por outros (…) por pregar e praticar a subversão e a transgressão, sem lugar nem funções no sistema educativo português”.

O regresso à casa mãe

O período fora da Gulbenkian marca, por um lado, os anos mais ligados à esfera política nacional de Madalena de Azeredo Perdigão. Entre 1977 e 1983, fez parte da Direção da Associação Portuguesa de Educação Musical (APEM), onde organizou os Encontros de Musicologia, cursos, seminários, congressos e outras iniciativas. A partir de 1983, pertenceu à Presidência da Direção do Conselho Português da Música, de cuja criação foi uma grande impulsionadora e preside a comissão organizadora do I Festival Internacional de Música de Lisboa. “A sua chegada à APEM deve-se ao facto de toda a educação musical contemporânea em Portugal ter sido uma iniciativa dela e fazia sentido que ali estivesse, embora fosse um cargo abaixo do estatuto que já tinha”, realça Rui Vieira Nery.

“Num período de mais reformas na educação, bem como na cultura, surge a ideia de se criar este I Festival Internacional de Música de Lisboa, uma vez que desde o fim dos festivais da Gulbenkian não tinha voltado a existir em Portugal um evento desta dimensão”, sintetiza Inês Thomas Almeida. Quando cai o Governo da Aliança Democrática (AD), em 1983, tudo volta a mudar – nomeadamente pelo período de crise e de “enormes restrições orçamentais” que se vivia. Nesse contexto, o sucessor de Lucas Pires, o Ministro António Coimbra Martins propõe que o festival passe a bienal. “A Madalena disse que isso quebrava a continuidade e sai, num momento que coincide com a decisão de José Azeredo Perdigão para construir o Centro de Arte Moderna (CAM).” Do investimento e necessidade de poder expor a coleção de arte moderna que a fundação já possuía, acrescia a necessidade deste novo centro ter um serviço educativo. “Cada vez mais se punha a questão sobre quando é que a Madalena voltava à fundação”, explica Rui Vieira Nery. Assim foi.

“Havia uma massa crítica estável, mas havia ventos de modernidade que sopravam noutras direções”. A sensibilidade era – explicam os dois musicólogos responsáveis pela mostra que lhe será dedicada – uma chave para entender o que fazia falta ao país e questionar o status quo de modernidade “que a mesma tinha ajudado a criar”.

“Não podia voltar para o Serviço de Música, que estava a ser dirigido e bem pelo Luís Pereira Leal, mas de repente surgia uma outra oportunidade, com este centro. A verdade é que de forma salomónica, resolveram autonomizar esse serviço, o que permitiu criar o Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte (ACARTE). Foi anunciado e é assim que se dá o regresso a casa”, conta Rui Vieira Nery ao Observador. É o início de uma nova fase, temporalmente enquadrada entre 1984 e 1989, ano da sua morte, onde a sua ação e inovação se alargaram às artes performativas e a projetos multidisciplinares, numa busca pelo desenvolvimento da criatividade no adulto e na criança, tendo por referência a educação pela arte e para a arte. Desse período importa ressalvar, diz, a criação do Centro Artístico Infantil (CAI) e a realização de três edições dos Encontros ACARTE – Novo Teatro/Dança da Europa, realizadas em setembro de 1987, 1988 e 1989, que foram os eventos de maior mediatismo e reconhecimento levados a cabo por este serviço.

O ACARTE como manifesto para o futuro

Na visão de Rui Vieira Nery este período é somente uma continuidade “em linha” com aquilo que Madalena Perdigão já tinha feito: “Em 1983, tudo aquilo que ela tinha querido fazer a partir de 1958 estava feito. Tinha conseguido, de uma forma ou de outra, criar as infraestruturas que precisava, o sistema educativo que precisava e isso estava a andar sobre rodas”. Era um período em que o contexto artístico, sobretudo no campo musical, mudara e muito por força da sua ação. “Havia uma massa crítica estável, mas havia ventos de modernidade que sopravam noutras direções.” A sensibilidade era – explicam os dois musicólogos responsáveis pela mostra que lhe será dedicada – uma chave para entender o que fazia falta ao país e questionar o status quo de modernidade “que a mesma tinha ajudado a criar”.

A criação deste serviço corresponde assim à fase final de um longo percurso onde arte, expressão, educação e formação integral aparecem interrelacionados, constituindo a matéria de que se faria uma sociedade melhor, mais justa e mais pacífica. A este respeito, elucida Ana Bigotte Vieira, importa ler o segundo ponto do programa do ACARTE que diz:

“EM QUE ACREDITAMOS
Que a Arte é essencial à Vida.
Que a Arte é uma forma imperativa da Educação.
Que é fonte do progresso individual e social.
Que é factor de aproximação entre os homens e de Paz.
Que todos devem ter acesso à Arte, nas suas múltiplas formas.”

“Vemos como a Madalena de Azeredo Perdigão é uma boa leitora do seu tempo”, realça a historiadora, e para o contexto da época, a noção de termos um centro de arte moderna, apenas em 1983, “surge tarde e em contraciclo”. Muitos conceitos em torno da museologia tinham evoluído. Já não se queria um museu, mas sim um centro, como acontece por exemplo, em França, com o Centro Pompidou [inaugurado em 1977]. A partir de todos estas problemáticas, e olhando para a própria arquitetura do ACARTE, é possível perceber como não se trata de algo pensado como museu. “Para lá da coleção que devia estar exposta, tudo o resto devia estar vivo e a verdade é que há todo um caminho na educação e na formação que já foi feito até esse momento. Quando regressa ao ACARTE a reforma que havia tentado fazer no ensino artístico não tinha chegado a ser implementada, mas tinha um excelente conhecimento do que haveria a fazer”, sustenta a historiadora.

“O que vamos ser”, “Em que acreditamos”, “O que não vamos ser nem fazer” e “O que pretendemos fazer” — no Teatro, na Dança, no Cinema, na Música, na Literatura, nas Artes Plásticas e na Arquitetura, e ainda no Vídeo, Fotografia, Mímica, Circo, Marionetas. Vem referido no programa do ACARTE de forma simultaneamente concreta e detalhada e aberta. O que permite ao programa funcionar como um manifesto. Nas palavras proferidas na conferência de imprensa de apresentação do Serviço explica-se, então, que o ACARTE se pensava como  podendo contribuir “para o desenvolvimento da criatividade, para o progresso da educação pela arte e para o incremento da criação artística em Portugal”.

Durante as três edições dos Encontros ACARTE, passaram pela FCG alguns dos artistas europeus mais inovadores. Destes artistas podem destacar-se Pina Bausch e o Tanztheater Wuppertal

Entre as muitas premissas que sustentavam a atividade corrente do ACARTE estava, precisamente, o CAI, que, com a criação do CAM, decidiu abrir um pavilhão para atividades lúdicas infantis. Este centro, que trabalhava em colaboração com o Serviço de Educação da Fundação e era dirigido pela pedagoga Natália Pais, incluía ateliers de expressão dramática, musical, plástica e literária, animação de leituras, workshops de jardinagem, arranjos florais, máscaras, fotografia e marionetas, cursos para animadores, uma Ludoteca, visitas guiadas e exposições temáticas, onde as crianças podiam aprender brincando. Para além desse projeto pioneiro, Madalena Perdigão conseguiu captar para a fundação novos públicos, nomeadamente as camadas mais jovens, que começaram a aderir às novas atividades do CAM, como os Concertos à Hora do Almoço, o Jazz em Agosto, os Encontros ACARTE – Novo Teatro/Dança da Europa, as bandas de música e dança no Anfiteatro ao Ar Livre, diversos projetos multidisciplinares, performances, espetáculos de marionetas, cinema para crianças e apresentações de vídeos.

Ao Observador, Rui Neves, diretor artístico do festival Jazz em Agosto – que tinha conhecido Madalena durante o I Festival Internacional de Música de Lisboa – explica que, uma vez mais, houve intuito de testar algo que na cidade de Lisboa parecia apenas miragem. “Ao criar o Jazz em Agosto queria sobretudo testar se havia público em Lisboa no verão, apresentando com entrada livre, no anfiteatro ao ar livre, quatro grupos portugueses propostos pelo Hot Clube de Portugal, os mais importantes na altura: a cantora Maria João, os pianistas António Pinho Vargas e Mário Laginha, o Sexteto de Jazz de Lisboa. A adesão massiva de público foi decisiva para uma eventual continuidade. Foi, então, que, mais uma vez, a Dra. Madalena Perdigão me chamou para levar a efeito um festival internacional mais ambicioso em 1985 onde se apresentaram a Sun Ra Arkestra, Terje Rypdal e o Quinteto de Dave Holland com o jovem saxofonista estreante Steve Coleman, os nomes mais sonantes.”

António Pinho Vargas sublinha como foi enriquecedor poder assistir ao que o ACARTE proporcionou na cidade e não só. “Naquele pequeno gabinete, com aquela sua visão do mundo das artes como universo vasto, rico e complexo, conseguiu em poucos anos que o ACARTE e a sua programação se tivessem tornado o expoente máximo da atividade cultural em Lisboa.”

Novamente, diz Rui Neves, os novos horizontes estéticos foram também alargados pela compreensão que Madalena Perdigão tinha de modernidade, que lhe pediu para se manter a seu lado como consultor de jazz. “Foi-me sempre proporcionada a melhor comunhão de ordem estética no campo do que é vital programar-se, aperfeiçoando processos de comunicação mediática. Fez-me compreender o seu espírito livre e descobridor, o seu lado visionário e o seu poder, também. Dois factos deste período são cabais exemplos: um concerto extra da Sun Ra Arkestra exigido pelo público em 1985 e a presença do projeto harmolódico de Ornette Coleman em 1988 quando foi preciso aumentar o orçamento do festival.  Hoje, cem anos depois do nascimento de Madalena Perdigão o resultado da sua obra é evidente: as temporadas de Música da Fundação Gulbenkian, a sua orquestra e coro, e o festival Jazz em Agosto que fundou e que continua fiel ao seu lema ‘Vamos correr riscos’”.

Um lema para colocar Portugal na “hora da Europa”

Não receava correr riscos: é isso que deixa claro no manifesto que espelha o programa do ACARTE e que, em certa medida, se expande nos Encontros que vai desenvolver a partir de 1987. De espírito festivo e experimental, estes encontros traduzem-se em momentos intensos do melhor que a sua programação de artes performativas podia oferecer, entre cruzamentos nacionais e internacionais. António Pinto Ribeiro refere mesmo, no livro Fundação Calouste Gulbenkian. Cinquenta Anos 1956-2006. Volume I que os mesmos se assumiram “como um projeto político de integração na diversidade artística europeia”. Abordando a integração do ACARTE no contexto europeu, a própria Madalena Perdigão afirmou: “O desejo desta iniciativa é elevar os níveis europeus através da confrontação e diálogo entre as várias companhias de teatro e bailado dos países da CEE e da Europa de Leste. Não se limita a apresentar obras do circuito internacional, como os outros países, mas tenta promover companhias pouco conhecidas em Portugal, assim como as que se encontram ainda em fase experimental”.

Durante as três edições dos Encontros ACARTE, passaram pela FCG alguns dos artistas europeus mais inovadores nas áreas da dança e do teatro, muitos deles vindo pela primeira vez a Portugal. Destes artistas podem destacar-se Pina Bausch e o Tanztheater Wuppertal, Anne Teresa Keersmaeker, Dana Reitz ou o encenador polaco Tadeusz Kantor e a sua Companhia Teater-Cricot. Dá também grande destaque a jovens criadores portugueses, do teatro à dança. Perante este carácter internacionalista dos Encontros ACARTE, Lisboa passa a ser lugar de paragem obrigatória nos circuitos de atuação. Em entrevista à RTP, em 1989, naquela que seria a última edição por si testemunhada, explica que “a sua esperança é que por meio da informação que damos ao publico português ele se sinta à hora da Europa”.

Numa apresentação que fez durante um colóquio sobre ensino artístico

Carlos Coelho da Silva

Os Encontros ACARTE de 1989 foram os últimos sob a direção de Madalena Perdigão, que delegou a continuidade e direção do serviço a José Sasportes, deixando a programação delineada para os três anos seguintes e legando uma atividade precursora no panorama cultural e educativo português. Morreu no dia 5 de dezembro, aos 66 anos, vítima de cancro. Trabalhou na FCG até ao seu último dia de vida. Sobre este dia, o escritor e crítico Jorge Listopad escreveria mais tarde que “por sinal, preparada para a morte, trabalhando até ao último dia e sabendo que ia morrer, só não sabia que ia coincidir com Mozart no dia da sua morte”.

No seu testemunho ao Observador, António Pinho Vargas sublinha como foi enriquecedor poder assistir ao que o ACARTE proporcionou na cidade e não só. “Naquele pequeno gabinete, com aquela sua visão do mundo das artes como universo vasto, rico e complexo, conseguiu em poucos anos que o ACARTE e a sua programação se tivessem tornado o expoente máximo da atividade cultural em Lisboa.” A mesma repercussão do seu percurso é lembrada por Yvette Centeno, que não esquece o seu papel dinamizador, “mulher de grande inteligência”. “Procurei sempre, respeitando a memória, para mim perpétua, da minha querida e generosa explicadora de matemática em Coimbra, e apoiante da divulgação do saber universitário em Lisboa, seguir o seu exemplo de dedicação e amor à cultura e às artes”, sublinha.

No legado que agora lhe é reconhecido, voltamos às palavras de José-Augusto França, quando abordou a relevância da obra de Madalena Perdigão, num texto datado de 1994: “O que esta [a prática cultural portuguesa] ficou devendo a Madalena de Azeredo Perdigão só continuando a sua obra, de uma ou de outra maneira, pode ser pago.” Olhando para esse mesmo legado, Rui Vieira Nery e Inês Thomas Almeida realçam como “nada do que foi feito por ela teria sido possível sem a grande relação de confiança que conseguia estabelecer com as pessoas”. Mesmo apontado a lápis, o compromisso era um elemento essencial e sagrado para uma “mulher que foi sempre prática e pragmática nas suas decisões”.

Capaz de formar públicos e de valorizar o papel da mulher na cultura, Ana Bigotte Vieira lamenta que o trabalho e a ação de Madalena Perdigão “não sejam devidamente reconhecidos, estudados e valorizados. Que não se olhe para ela com o alcance imenso que realmente teve”. “Há dez anos, quando entrevistei cerca de 30 diferentes pessoas sobre a sua ação no ACARTE, fiquei chocada quando alguém (um homem, naturalmente) a referiu como apenas ‘uma secretária’ ou ‘a mulher do Presidente da Fundação’, o que não é – absolutamente – verdade. O seu trabalho é de um rigor, um alcance e um valor imenso. A sociedade portuguesa é profundamente misógina e no período em que Madalena Perdigão viveu havia uma elite intelectual e política maioritariamente feita de homens, mas é por isso que também é urgente fazer à sua ação uma leitura de género e de classe, para que não se menosprezem,  aliás se valorizem e compreendam, figuras como esta, entendendo-as no seu contexto.”

É preciso lembrá-la – afirma Rui Vieira Nery – e olhar para o impacto que teve na vida cultural portuguesa. “Temos de colocar a Madalena Perdigão no lugar que lhe é devido, como grande arquiteta da vida artística portuguesa, da música às artes performativas, uma vez que muito do que se vive hoje ainda decorre daquilo que ela fez em vida. Ninguém teve um papel tão grande e por isso é que importa recordá-lo.”

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