Índice
Índice
Manuel Cardoso nasceu em Lisboa, tem 24 anos, usa óculos, é humorista e tem uma barba farta que lhe permite ser “Fausto, o influencer de esquerda” que se dirige aos seus contemporâneos com um “bom dia, família Trotskista” no Youtube. É, também, um dos humoristas mais proeminentes e abrangentes da sua geração — e não é especialmente difícil justificar isto, basta olhar para o que tem feito nos últimos anos para notar que tem construído um dos percursos mais ecléticos da comédia em Portugal.
Com 24 anos, o rapaz que não recusa o epíteto de “Beto em Negação” de Salvador Sobral já fez duas séries de sketches humorísticos com o grupo Bumerangue (também de Pedro Teixeira da Mota, Guilherme Geirinhas e Carlos Coutinho Vilhena), disponibilizadas no Youtube. Escreve crónicas humorísticas para o portal SAPO, onde discorre sobre temas que vão do Benfica à apropriação cultural, da “violência policial em bairros de betos (disse ninguém, nunca)” à polémica em torno da ocultação de um excerto de um poema de Álvaro de Campos pela Porto Editora. Tem um programa humorístico na rádio (Antena 3) chamado “Pão Para Malucos” e foi convidado por Ricardo Araújo Pereira para ser um dos oito guionistas de “Gente Que Não Sabe Estar”, o novo programa de RAP na TVI. Ainda faz vídeos humorísticos para o Youtube, teve um podcast (“Amigo Íntimo”) que está “um bocado parado”, a sua conta de Twitter é um manancial de piadas e faz stand-up comedy com regularidade, estando prestes a começar a apresentar ao vivo o seu novo espetáculo a solo “Farsa”, que poderá ser visto já no próximo sábado (23) no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa. Depois, será apresentado em Aveiro (Avenida Café-Concerto, dia 28) e mais tarde em Coimbra (Auditório IPDJ, 4 de abril) e no Porto (Hard Club, 5 de abril).
Manuel Cardoso sabe que a internet foi decisiva para se profissionalizar como comediante nos últimos anos, mas sabe também que o Youtube e as redes sociais são um presente envenenado para os novos humoristas. Por um lado, moldam-lhes o humor colocando-lhes um formato algorítmico como colete de forças — um formato visualmente cativante, rápido, com poucos silêncios e que convida a abordar sempre temas facilmente reconhecíveis pelo público, que apelem à “partilha”. Em alguns casos, diz ele, “isso é anti-comédia” porque nem todo o humor deve ser feito assim. Por outro lado, “o imediatismo” e as redes sociais, nomeadamente o Twitter, vieram trazer uma concorrência que obriga à diferenciação: se hoje todos são potenciais humoristas e podem criar um público na internet, é preciso “estar sempre a trabalhar na diferenciação” e ter “cuidado” com o trabalho.
Farsa, o seu segundo espetáculo de stand-up a solo (o primeiro foi “1994”), será em grande parte sobre o que procura e inquieta, como jovem de 24 anos que já “não compreende bem a linguagem dos adolescentes”, que “em algumas coisas” já se sente velho e que teme tornar-se futuramente “um reacionário, uma besta com medo do progresso”. Manuel Cardoso acha que o quadro sombrio com que a sua geração é pintada é manifestamente exagerado, mas também acha que esta “só funciona por comparação”, que já “não importa se temos uma boa vida se não a mostrarmos”, que já ninguém consegue ter boas experiências — “isto aconteceu-me, gosto disto, fiz uma boa viagem, fui promovido no emprego, a minha namorada é bonita” — sem as partilhar com o mundo.
Hoje, “as coisas têm valor quando comparadas com as vidas dos outros”. O seu novo espetáculo é em parte sobre isso: “É uma farsa esta vida de fachada que somos forçados a ter e a mostrar. E é preciso alguma dose de mitomania para convencer algumas pessoas de que é relevante ouvir-me falar durante uma hora. Tenho essa consciência que isto não faz muito sentido, que há aqui uma falsidade porque uma pessoa está mais alta, tem os holofotes sobre ela, há uma música que a anuncia, quando na verdade é um gajo como os que estão lá em baixo”. Para quem for ver o espetáculo, para quem quiser ver “Gente Que Não Sabe Estar” e para quem quiser ler-lhe as crónicas ou ouvi-lo no rádio, fica só o aviso: é melhor não ir à procura de ser evangelizado. Manuel Cardoso recusa fazer “um humor mais populista, mais pregador, que pede o aplauso e não a gargalhada”. Para “fazer comícios ou política”, as suas valências não servem — estão lá outros. Ele quer é fazer rir, rindo-se também de si pelo caminho.
“A minha geração só funciona por comparação. Não importa se temos uma boa vida se não a mostrarmos”
Vês muitos “gajos de 37 anos a fazer likes em fotos de miúdas de 16”?
No Twitter por acaso vê-se bastante… O Twitter não perdoa essa creepiness [comportamento estranho] e mostra logo na timeline. É muito engraçado, o Twitter parece uma rede mais intelectualizada, de discussão, mas também tem o seu lado soft porn que depois dá azo a essas situações constrangedoras. Espero não me tornar um desses idosos… bom, 37 anos não é propriamente idoso [ri-se], mas há quem tenha essa pose. E se em algumas coisas já pareço velho com 24, aos 37 estou acabado.
Falando um bocadinho mais a sério: disseste numa entrevista recente ao Rui Unas que não eras um fã acérrimo das redes sociais e também que não ouvias podcasts com grande regularidade. Quão distante é que te sentes de um humorista padrão do século XXI?
Não me sinto muito… quando digo que não oiço muito podcasts é porque não tenho esse hábito, tenho uma capacidade de atenção baixa e portanto não sou uma pessoa que vá ouvir coisas durante uma hora e meia com atenção. Há humoristas que ouvem muito podcasts: o Pedro Teixeira da Mota, o Daniel Carapeto e a Joana Marques estão sempre a dizer que ouvem, é normal estarem a arrumar a casa e ouvir. Não tenho esse hábito, embora já tenha produzido um podcast que está um bocado parado [“Amigo Íntimo“]. Portanto não consumo muito mas gosto, simplesmente não lhes dedico muito tempo.
E quanto às redes sociais?
São mais angustiantes porque temos de ter com elas pelo menos uma relação utilitarista, para divulgação [do trabalho]. As pessoas levam-se demasiado a sério quando metem na cabeça que isto tem de ser marketing acima de tudo. O humor deve ter marketing, mas acho que não deve ser acima de tudo marketing, deve ser sobretudo frescura e originalidade. Não quer dizer que as coisas se anulem, mas se tivermos um foco na transversalidade dos conteúdos e na possível reação aos mesmos de certeza que não estamos a fazer o mais original que poderíamos fazer. As redes sociais acabam por ter essa tendência e espelham bem a competitividade que há entre conteúdos tanto no Facebook como no Youtube.
Os podcasts são um exemplo à parte, acho que é um dos meios que permitiu mais originalidade na comédia em Portugal porque não comporta a competitividade algorítmica do Facebook ou Youtube. Ali, nos podcasts, não se compete com coisas que não têm nada a ver com humor e que às vezes são mais cativantes, ou visualmente ou porque envolvem alguma polémica. O Facebook, Twitter e Instagram funcionam à base de scroll e um humorista no scroll não sobrevive. Às vezes parece-me que todo o formato da comédia é manipulado para resultar na internet e em alguns casos isso é anti-comédia. Eu e outros humoristas a fazer vídeos temos a tendência para utilizar muito a técnica de edição “jump cut”, que no fundo serve para truncar ou eliminar os silêncios para que o vídeo tenha o maior número de palavras e de conteúdos num curto espaço de tempo. O objetivo é não cansar as pessoas, temos medo — e fundamentado — que as pessoas desliguem se não virem dinâmica. Só que há muita comédia que resulta bem com silêncios, com calma, sem ser propriamente cativante visualmente, sem partir necessariamente de temas reconhecíveis pelo público. As redes sociais ajudaram muito a comédia e trouxeram público para as salas, mas acabaram por inconscientemente fazer com que as pessoas fossem na sua maioria pelo mesmo caminho. Não é que defenda que os humoristas deixem de estar nas redes sociais, defendo é que devemos fazer um esforço para o nosso conteúdo partir a montante da plataforma, não deixando que ela nos dite o que temos de fazer.
Fora do humor, qual é a tua relação com as redes sociais? Pessoal, não profissional.
O facto de ter de as usar a nível profissional fez com que deixasse de as usar a nível pessoal. Não apanhei as redes sociais no seu auge sem estar a trabalhar e nunca as utilizei muito para mais do que trabalho. Cheguei a criar uma página pessoal de Instagram, mas depois não a utilizei, porque sinto que a minha vida não é minimamente interessante nem merece que se crie uma fantasia acerca dela. As pessoas têm de estar sempre a celebrar feitos nas redes sociais. Não me querendo citar mas citando-me, escrevi um texto em que falava de como cada vez que se atinge algum objetivo tem de se ir explicar e agradecer a todas as pessoas que contribuíram para ele. Fiz um texto sobre isso, sobre conseguir mudar um sofá da sala para o escritório e estava a agradecer a todas as pessoas que disseram que não era possível, motivando-me por isso mesmo a conseguir. Há um discurso auto-celebratório com tudo e às vezes acho que as pessoas julgam que devem mesmo comunicar os seus pequenos feitos com o mundo. Às vezes podem ser mecanismos de compensação, porque hoje há uma impossibilidade de se ficar satisfeito com uma coisa por si. ‘Isto aconteceu-me, gosto disto, fiz uma boa viagem, fui promovido no emprego, a minha namorada é bonita’ — parece impossível hoje ficar contente com estas coisas e não partilhar. As coisas têm valor quando forem comparadas com as vidas dos outros.
É um traço geracional?
A geração dos meus avós tinha como principal objetivo a sobrevivência, os padrões de felicidade eram algo baseados nisso — no poupar, no precaver. Se calhar a geração dos meus pais teve como objetivo viver bem, foi a geração do crédito, da independência laboral da mulher, das férias, da boa vida e às vezes da casa de férias. Acho que a minha geração só funciona por comparação. Não importa se temos uma boa vida se não a mostrarmos — e há quem sinta que a sua vida é pior porque olha para os outros, vê o Instagram e parece que os outros têm todos momentos melhores que nós. Dificilmente alguém tem momentos piores porque isso não se mostra muito sem ser às vezes no Twitter e em blogues, de forma mais marginal.
Essa exposição algo narcisista parece resultar mais da vontade das pessoas do que do formato das redes sociais. O Instagram, por exemplo, começou como plataforma para colocar fotografias artísticas mas tornou-se quase um diário íntimo fotográfico.
É um reality show. Como é óbvio isso causa muita ansiedade, as pessoas questionam-se muito: porque é que as pessoas estão a fazer isto e eu não, porque é que está toda a gente aqui ou ali — num festival, na Golegã, na Islândia, onde for — e nós a deprimir? Isso acontece muito em relações [amorosas], haver discussões sobre o que os outros cascais estão a fazer de interessante. Se calhar estão a fazê-lo mas está a ser horrível. É uma questão ancestral, sempre aconteceu, mas hoje em dia há uma maior facilidade em fazer uma maquilhagem da vida para que ela pareça de facto atraente e merecedora de inveja. Acho que é impossível estar-se tão satisfeito quanto as pessoas parecem estar nas redes sociais.
“Há um humor mais populista e pregador que pede o aplauso e não a gargalhada”
Como é que está a ser fazer o “Gente Que Não Sabe Estar” [programa de Ricardo Araújo Pereira na TVI]? Para quem não sabe exatamente qual é o trabalho de um argumentista num programa destes, em que é que consiste?
Um guionista pode ser responsável por todo o conteúdo de um programa ou não. Neste caso somos uma equipa de oito pessoas. É um trabalho muito de bater bolas para o pinhal e é um constante pitch [apresentação rápida] de ideias para fazer um programa que é de atualidade. Por ser de atualidade não se baseia muito em ideias que vêm de trás, em que se esteja a pensar há muito tempo colocar em televisão ou num formato de comédia. Baseia-se muito em olhar para o que está a acontecer, tem algumas semelhanças com o trabalho de um jornalista: ver o que se passa e procurar. Não fazemos investigação, claro, nem vamos confirmar as coisas — bebemos do que vocês nos dão. É um trabalho posterior, de desconstrução: o que é essencial naquela notícia, o que importa, o que está a escapar num primeiro olhar mas é óbvio em relação àquilo. Tentamos ter ideias que acabem por agradar aos oito, é um trabalho bastante horizontal.
Esse trabalho de procura de casos que mereçam um tratamento humorístico não é semelhante ao que se faz para escrever crónicas?
As crónicas não são obrigatoriamente sobre questões de atualidade, portanto podem partir de uma ideia. A verdade é que o trabalho de escrita implica sobretudo um trabalho de pesquisa, a maior parte dos escritores diz isso. E todo o processo de escrita é desagradável. Penso que era um jornalista do Público — não tenho a certeza se era o José António Cerejo ou o Torcato Sepúlveda — que dizia: “Ninguém gosta de escrever, toda a gente gosta de ter escrito”. O processo de escrita é bastante fastidioso, depende muito de pesquisa e interpretação do que é essencial no que se vai tratar. Convém tentar ser mais fresco [no humor que se faz sobre alguma coisa], não ir por onde as pessoas já foram no Twitter. No humor, hoje a grande concorrência não está só em gente que também o faz [profissionalmente] como nós, também está no Twitter, no imediatismo. Este programa na TVI é semanal e é preciso ir ver ao Twitter, onde se faz muito comentário político, se a piada em que estamos a pensar já não foi feita por toda a gente.
Uma das piadas que acho que resultou foi aquela história do Carlos César [presidente do Partido Socialista]. No debate quinzenal, ele contou uma história de pessoas inventadas: o Nuno que voltou de emigração de Inglaterra e que se reformou com o seu companheiro Fernando. Do ponto de vista jornalístico aquilo pode não ter muito interesse, porque é um exercício de propaganda e não tem sentido estar a dar grande relevo, mas para nós tem muito. Temos de estar ali no computador a ver os vídeos que chegam o dia todo à procura de onde está o mel que não tem interesse jornalístico mas tem interesse humorístico.
https://www.youtube.com/watch?v=6Dg03OC016U
O Ricardo Araújo Pereira (RAP) explicou que as pessoas que trabalham para o programa foram escolhidas por serem pessoas com alguma ligação ao humor político, ao humor sobre acontecimentos mediáticos de atualidade. Esse tipo de humor é uma coisa que ele tem vindo a fazer, nos programas de televisão que tem feito e nas suas crónicas para a Visão. A atualidade noticiosa também te serve de fonte de inspiração, sobretudo para as crónicas e para tweets. Sentes-te um descendente do RAP?
O humor de atualidade como está ligado ao peso da notícia pode ter uma fama de seriedade e elevação que não se justifica. Às vezes não é mais difícil do que outro tipo de humor porque a atualidade pelo menos não é da nossa responsabilidade, vai existindo. Há ideias que já nos caem nos colo. Quando comecei a tentar escrever humor, escrevia muito sobre esses temas porque era um adolescente que não me sentia bem num corpo de adolescente e queria ser adulto. Lia muitas notícias e achava que as minhas opiniões eram relevantes, portanto escrevia muito sobre isso. Mais tarde, mais velho, senti que já não tinha idade para estar a focar-me só nisto, podia olhar à volta e tentar fazer humor sobre isso. Mas não é exatamente uma escolha.
É um reflexo do que te interessa?
Sim. Acho que há pouca gente da minha geração que se sente no café de manhã e leia todos os jornais de uma ponta à outra. Também não sou essa pessoa — mas passei muito da minha infância em redações, portanto a ideia da notícia esteve presente em mim desde cedo. Acho também que é desafiante fazer humor de atualidade em Portugal porque tem de se escavar bastante. É diferente dos Estados Unidos da América, onde há uma oferta inesgotável de material para humor, ainda mais agora que as pessoas estão politicamente muito mais ligadas à corrente porque para muita gente que acompanha este tipo de programas o mal está no poder. Em Portugal, na altura da crise um programa destes se calhar seria mais visto, embora mesmo hoje em dia tenha excelentes audiências. Não é que as pessoas estejam perfeitamente contentes hoje, neste país, há muita gente descontente — mas não há um clima de insurreição no ar, em que as pessoas precisem de ir permanentemente à procura de culpados pelo estado de coisas. Isso em parte é bom porque impede-nos de fazer um humor mais populista, mais ‘preacher’ [pregador], que pede o aplauso e não a gargalhada. Se é para fazer comícios, nenhuma das nossas valências marca a diferença — a diferença para os outros estará na capacidade para escrever piadas, se não a tivermos não estamos ali a fazer nada. Política não estamos a fazer de certeza.
“É preciso alguma mitomania para convencer as pessoas de que é relevante ouvir-me falar uma hora”
O que é que vai ser este novo espetáculo de comédia a solo, o “Farsa”? Vai ser uma súmula de piadas sobre ideias e temas que tens explorado nos últimos anos?
Há humoristas que chegam a um conceito e escrevem depois para ele e há humoristas que vão construindo material — em pseudo-clubes de comédia, bares e em pequenas datas que fazem pelo país — e depois fazem uma súmula que dá origem a um espetáculo. Este caso é mais o de uma súmula, porque acho que não me sentiria seguro em ir para um espetáculo de uma hora e dez minutos só com material novo e dependente de um único conceito que servisse de guarda-chuva. O espetáculo terá, ainda assim, uma parte dedicada ao conceito de farsa que foi feita de raiz. Não tinha definido o nome nem o conceito do solo quando comecei a escrever material mas já tinha definido o que me preocupava, quais eram as minhas ansiedades nesta fase, nesta idade, que visão do mundo queria explorar.
“Sou um embuste. Todos somos”. É uma expressão que aparece na apresentação…
Sim, queria que o Farsa tivesse uma dupla leitura. É uma farsa esta vida de fachada que somos forçados a ter e a mostrar, em que somos espartanos, temos de ser sempre fortes e inabaláveis e bem sucedidos. Por outro lado falo também de uma farsa como síndrome de impostor. É preciso ter alguma dose de mitonomia– não diria muita, ao nível de um Bruno de Carvalho –para convencer algumas pessoas de que é relevante ouvir-me falar durante uma hora. Tenho essa consciência que isto não faz muito sentido, que pôr o nome em coisas é desgastante, que há aqui uma falsidade porque uma pessoa está mais alta, tem os holofotes sobre ela, há uma música que a anuncia, quando na verdade é um gajo como os que estão lá em baixo.
Normalmente ficas nervoso nos dias antes de um solo, antes de subir a um grande palco?
Sim. Este é só o meu segundo solo, no primeiro estava muito mais nervoso, mas também tinha definido há mais tempo o que iria fazer. Tenho a mania de que o trabalho sai melhor se for feito à pressão, então para este solo deixei algumas coisas para pensar para o fim: será que quero mesmo pôr isto, será que não quero? Estou menos nervoso do que estava antes do primeiro, talvez porque estou a trabalhar em muito mais outras coisas ao mesmo tempo. Por um lado estou ansioso, mas por outro o facto de ter outras coisas para fazer no humor apazigua-me um bocado. É mais uma coisa, é um solo, não é assim… é mais importante para nós do que para as pessoas. Para as pessoas isto é um espetáculo, é um momento de entretenimento, não está em causa o nosso ego tanto quanto está a exigência das pessoas em divertir-se. Não faz sentido estar com grandes angústias por causa disto.
Na área específica do stand-up, de que humoristas gostas mais?
Gosto muito do Jim Jefferies. Ele tornou-se num comediante que fala mais de temas políticos mas o passado dele no humor negro faz com que dificilmente sucumba à evangelização em detrimento da piada. O objetivo dele é ter piada, não se tornou naquilo que alguma direita critica nos comediantes norte-americanos: serem o protótipo do comediante liberal de esquerda que tem o Trump como alvo recorrente e não consegue sair dali. Isso nota-se às vezes noutros comediantes e não só nos Estados Unidos. O Jim Jefferies não é assim, consegue fazer humor sem ter uma agenda. Ele fez uns nove solos e os primeiros eram muito à base de humor negro, com piadas muito cruas e cáusticas, às vezes muito machistas e mata-frades. Num momento inicial notava-se nele um proselitismo do ateísmo, uma vontade de convencer as pessoas de que é muito idiota ter uma religião. Depois foi-se tornando mais pessoal. Acho que quando os humoristas se tornam mais pessoais ganham outra gravitas e ele em particular é muito bom a contar histórias.
Gosto muito do Bo Burnahm, também. Tem um nível de artesanato, de compor comédia ao milímetro, à gargalhada e ao momento extremamente impressionante. Ele só fez três solos de stand-up, é muito novo, mas a ideia de ser um prodígio dá raiva. Como é que aquele indivíduo aos 19 anos compôs um solo como o “Words Words Words”, uma referência a Hamlet, que é todo um exercício literário, que tem também poemas dele e que mostra uma maturidade de escrita absolutamente inacreditável para os 19 anos que tinha quando o apresentou pela primeira vez? Ele e o Jim Jefferies serão dos que mais vou rever porque me inspiram muito. Gosto do Jimmy Carr que vem cá, gosto do Frankie Boyle, também, que vem do humor negro e tornou-se mais político nos últimos anos. Gosto de quem parte do humor negro porque tem uma lealdade à matemática da piada, à sintaxe da piada.
Jimmy Carr: “O humor não tem limites, mas se ninguém se rir de uma piada é porque é ofensiva”
A provocação é um dos fatores que entra na equação que te faz gostar de humor negro?
Tenho a certeza que quando vou ver um bom humorista de humor negro vou ser surpreendido. O [Anthony] Jeselnik, o Frankie Boyle, o Jimmy Carr, todos esses escrevem com muito cuidado. Escrever com muito cuidado é uma coisa com a qual gosto muito de me relacionar, gosto de perceber que aquele indivíduo esteve muito tempo a pensar numa frase com 16 palavras. Gosto de perceber que uma frase e um texto não são gratuitos, gosto de humoristas que tenham piadas com ângulos diferentes e que tentam não ir pelo caminho mais fácil.
É isso que marca a diferença numa altura em que qualquer pessoa sente que pode ser humorista e ter público por fazer piadas no Twitter?
Claro, mas isso é uma boa concorrência, até porque ninguém da minha geração surgiu a fazer humor na televisão. É muito mais democrático. No passado houve pessoas que tiveram a sorte de aparecer no “Levanta-te e Ri” ou escrever para o Herman. Essas pessoas foram pescadas de uma amostra muito menor do que quem surge hoje na internet, embora continue a ser necessário um certo nível de privilégio para se poder estar no humor. Isso ainda é verdade e é uma questão importante. A internet faz ainda assim com que haja mais concorrência e obriga uma pessoa a estar sempre a trabalhar na diferenciação e cuidado a partir do momento em que se profissionaliza. As pessoas podem achar que é uma vida de sonho, em muitas coisas é porque é um trabalho onde nos conseguimos divertir muito quando estamos rodeados por outras pessoas, mas é trabalho.
Quando estamos sozinhos a escrever ao computador, não nos estamos a rir das piadas que escrevemos, estamos com dúvidas, é o nosso trabalho a tempo inteiro e também não somos os melhores juízes para o avaliar. Sou contra a ideia que temos de ser uma fábrica de conteúdos, acho que isso acaba por prejudicar. Tanto é bom ter um nível de profissionalismo alto e ser workaholic como ter um pequeno lado boémio e de confiança. As duas coisas são necessários, nos podemos nem tornar robôs nem achar que temos graça sem trabalhar.
Ainda ouves e vês o Louis C.K. da mesma forma depois das acusações de ofensas sexuais de que ele foi alvo, que posteriormente admitiu serem substanciadas?
Aí há duas questões. Uma: acho que o que ele fez é bastante desagradável e tem problemas a vários níveis. Duas: não tem sentido o clima de perseguição a ponto de ele ficar proscrito de todos os sítios em que se faz comédia. Também não concordo com isso, com ele não dever voltar a trabalhar. Isso à partida não é bom e é um bocado desproporcional.
Uma das coisas que me atraía no Louis C. K. era ele conseguir ser muito inteligente com o escatológico, com o nojento, com temas como a masturbação, o sexo e a vida dele de solteiro. Era muito escatológico e falava muito dos seus próprios órgãos sexuais e da sua natureza de creep [pessoa bastante estranha]. Eu achava graça porque achava que aquilo era uma intelectualização dele e não ele próprio [risos]. Ter chegado à conclusão de que aquilo era mesmo ele faz com que uma pessoa fique um bocado de pé atrás, porque significa que o Louis C.K. é no mínimo um bocado nojento. Sentir que as piadas dele estão tão perto do que ele é afasta-me um bocadinho daquele tipo de material [humorístico], mas continuo a achar que é completamente injusto estar a ignorar a herança dele. O Louis C. K. fez com que toda a gente começasse a fazer solos com texto novo de ano a ano e o nível de stand-up dele continua a ser um dos mais altos que já houve. Sinto que ele poderia ter uma atitude mais humilde em relação àquilo [acusações de que foi alvo], não porque resolvesse grande coisa, mas porque se calhar não lhe criava mais problemas agora.
Louis C.K. confirma que se masturbava à frente das colegas. Mas está arrependido e pede desculpa
Participaste no regressado “Levanta-te e Ri” e fizeste uma piada sobre como hoje em dia nas redes sociais tudo tem de ser passível de identificação. Usaste uma hipérbole engraçada: amigas betas a dizerem “isto é tão nós” à ideia de que as pessoas respiram ou comem com os dois talheres. Isso não implica uma noção de que há uma grande parte do público que reage de maneira muito infantil e imediata às coisas?
Na verdade não tenho grandes pretensões de análise com esse bit [momento humorístico]. É relacionável para mim, que durante muito tempo fiz humor em que havia essa característica relacionável. Quando o fazia, via muitas pessoas reagiram dessa forma: “Isto é tão nós”. Achei engraçado.
Há dois tipos de conteúdo relacionável. Um deles acontece quando por exemplo se lê um livro ou um diálogo de uma personagem e se pensa ‘isto sou mesmo eu’. Aí o conteúdo ser relacionável não é algo propositado, em princípio o escritor não está a pensar: aqui o jovem de 2019 tem muito disto. Outra coisas diferente é forçar-se um conteúdo apelando àquilo que são comportamentos mais abrangentes com o qual um maior número de pessoas pode identificar-se.
Isso é uma patranha?
Lá está, eu sei [que é feito propositadamente] porque fiz isso. Acho que não há problema em divulgar as nossas maroscas e o facto de sermos impostores e de esta arte ser mentirosa. Achei giro pegar por aí porque estava um bocado farto de fazer esse tipo de humor. Então pensei: para matar um bocado isto, vou gozar comigo.
“Digo à minha mãe: quiseste dar o melhor ao teu filho e criaste um beto”
Por falar em betos e betas, sentes-te um BEN — um Beto Em Negação, como o Salvador Sobral?
[Risos] Não sei. No outro dia estava a discutir isso, o que qualifica um beto. Eu não sou um “beto de família”, mas andei sempre num colégio privado e a partir daí acho que é difícil contrariar isso, rejeitar isso. Portanto, beto em negação acho que pode ser uma boa designação. Mas não sei, isso embaraça-me um bocado. Acho que não tenho bem um estilo de vida do beto, aquela ligação com uma família alargada, o almoço de domingo, o tratar os pais por você — não tenho nada disso, sou extremamente informal nas minhas relações familiares…
Normalmente vê-se muito pelos primos….
Costumo dizer que os primos dos betos são sempre iguais a eles, mas os meus são completamente diferentes. Se calhar sou beto, mas a maior parte da minha família não é. Os meus pais terão tido mais condições económicas do que muita gente da família deles. Mesmo assim de modo algum os meus pais eram ricos, simplesmente fizeram o esforço comigo que puderam fazer. A minha mãe abomina essa palavra e não é nada beta, mas não vou estar a negar porque defendo isto e já lhe disse várias vezes o seguinte: mãe, tu não és beta,den mas eu sou, deste-me um colégio privado, nasci em Lisboa, tu trabalhas num jornal e puseste-me num colégio onde trabalham pessoas da elite, isto faz de mim um beto! A culpa foi tua, quiseste dar o melhor ao teu filho e criaste um beto. Acho que os betos são detestáveis quando assumem uma postura arrogante e condescendente perante o resto da sociedade.
Sou um privilegiado, sem dúvida. Às vezes no humor isto não é justo, aliás no humor, no jornalismo ou em qualquer área da produção cultural ou comunicação. É muito importante estar em Lisboa para ter destaque porque estas áreas são muito centradas aqui. Eu vivo em Lisboa e tive as condições para não ter de começar a trabalhar aos 18 anos noutra coisa qualquer, sou um privilegiado e muito do que posso fazer hoje deve-se às condições que me deram.
Ainda te lembras das piadas que fizeste no “Cómicos de Garagem”, um programa de humor em que participaste quando tinhas 14 anos?
O “Cómicos de Garagem” era um programa de rádio que depois aconteceu ao vivo. Nessa altura tinha a mania que era adulto, tinha piadas sobre a Angela Merkel, que era um bocado a “vilã” daquele tempo, mas não fazia sentido um puto de 14 anos falar sobre isso. Tinha coisas sobre isso, também tinha umas coisas sobre a escola e tal, mas era tudo muito fraco como é natural. Não deixou de ser uma experiência que definiu um bocado o que eu ia fazer, embora não tenha gostado. Gostei a primeira vez em que atuei, depois nas três ou quatro seguintes senti que as pessoas não me estavam a dar atenção. Era um miúdo e tinha muito medo de palco. Ainda hoje tenho, mas na altura com todas as inseguranças da puberdade… os adolescentes são muito, muito feios e portanto merecem essa insegurança [risos]. Acabei por depois só voltar a fazer stand-up passados uns três ou quatro anos. Na altura tinha um blogue, escrevia muito sobre experiências da escola mas de vez em quando tentava molhar a sopa em assuntos políticos.
Presumo que tenhas percebido antes de participar nesse programa que não gostavas só de comédia como a maior parte das pessoas da tua geração, que cresceram com o Gato Fedorento; também a querias fazer.
Sim. Sou da geração que cresceu com o Gato Fedorento. Quando eles apareceram na SIC Radical tinha 11 anos. Aquilo chegou-me porque era muito partilhado através de e-mails, é possível também que os meus pais me tenham mostrado. Lembro-me de se falar muito dos sketches mais típicos da primeira série. Para mim o Youtube em 2006 consistia em vídeos do Ronaldinho [Gaúcho] a fazer vírgulas, total 90 e Gato Fedorento. Consumia os três conteúdos com muita intensidade, mas como não consegui fazer uma vírgula decidi tentar fazer comédia.
Era absolutamente louco por Gato Fedorento e agora que trabalho com eles já cheguei à conclusão que eu sei mais [risos] sobre os guiões e os sketches do que eles próprios. Quando uma pessoa os faz, vê se ficou fixe e depois diz-lhes adeus. Há até quem não os veja, o Nicolau Breyner dizia: “Para fazer é um preço, para ver é mais caro”. Eu vi aqueles sketches dezenas e dezenas de vezes, cheguei até a ter um blogue em que transcrevia para texto [os sketches], para que se existisse outro louco como eu pudesse também decorar e ir dizer para a escola. Ali para o 6º ano comecei a gostar de escrever e acho que aprendi a escrever, a encadear frases e tal, com “A Bola” e o “Record”, muita gente da minha geração comprava aquilo. Não é que todos os jornalistas desportivos tenham um brilhantismo na escrita mas alguns têm e ainda acho que um bom texto sobre futebol é das coisas que mais prazer dá a ler. Foi por volta do 6º ano que comecei a gostar de escrever, já me pediam uma composição e tentava ir por outro lado. Somado o interesse na escrita ao fanatismo pelo Gato Fedorento, comecei a tentar expor essas coisas que ia escrevendo e acabei por criar um blogue.
Na tal entrevista com o Rui Unas, falaste de como teres abrandado o exercício do humor entre os 14 e os 18 anos deveu-se em parte à adolescência, a ser normal “ser-se parvo” nessa altura. Também fizeste a ressalva de que não eras um grande rebelde. O que é que fizeste de mais rebelde na adolescência? E como é que ocupavas a maior parte do tempo?
Eu sou, era e serei muito preguiçoso. Na adolescência estava no topo da preguiça. Estava em humanidades e peço desculpa a quem teve dificuldades em humanidades mas é muito fácil! Pelo menos em comparação, lembro-me de ver os meus colegas de ciências a penar e pensar: sim senhor, estas pessoas vão-se tornar excelentes trabalhadoras. Fui para humanidades porque gostava de escrever e porque gostava de história e de português, mas também achei que depois do 9º ano matemática já “estava bom”, não me apetecia esforçar mais o cérebro por uma coisa de que nem gostava assim tanto. Portanto, não fazia muita coisa: tínhamos poucas aulas, faltava também bastante… bebia uns copos, estava numa idade em que queria ser fixe, não queria ter um emprego. Portanto, não me foquei muito no humor.
Aos 13, 14 anos tinha uma rede social fraca, não tinha muitos amigos, tinha dois ou três. Portanto, escrevia no blogue e dedicava-me mais ao humor. Depois quando comecei a ter mais amigos senti um bocado de vergonha em continuar a escrever num blogue e fazer sketches com uma handy cam [câmara de filmar de mão] Sony, em fazer personagens e imitar o Pedro Abrunhosa de forma absolutamente incipiente. Tentava manter ali uma postura e quando queres fazer isso tens de evitar expor-te ao ridículo.
Esses vídeos ainda existem algures?
Existirão nos confins da internet. Também tenho uma conta em que todos os vídeos estão privados, nem sei bem a password. Se existem por discos e servidores? Certamente.
Houve uma altura em que os blogues tiveram algum impacto. O facto de a opinião nos blogues poder ser dada mais ou menos anonimamente e não provocar reações tão instantâneas e massivas como nas redes sociais, fomentava de alguma forma alguma independência crítica, algum desalinhamento?
Sim. Houve um boom de blogues em 2003, 2004. Acabei por chegar um pouco tardiamente, mas retroativamente fui lendo e havia ali uma ideia de elite da internet. Tanto assim era que muitas pessoas que surgiram em blogues hoje em dia são comentadores políticos — não quero estar aqui enganado, mas tenho ideia que andava nos blogues gente como o Daniel Oliveira, Pedro Marques Lopes, a Fernanda Câncio, Rui Tavares, Pedro Mexia…. houve muita gente que veio dos blogues ou ganhou notoriedade com eles. Havia um culto pelo texto longo e menos pelo soundybite que agora predomina no Facebook. Havia muito debate, até algum ataque e intriga nos blogues, que poderia ser desagradável mas evitava a ideia de câmara de eco que o Facebook proporciona através do algoritmo.
No Facebook alguém escreve uma coisa descabida e não deixa de ter 20 pessoas a dizer-lhe: muito bem, finalmente alguém diz a verdade. A Maria Vieira, por exemplo. Toda a gente no seu mundo é o dono da realidade — e ali nos blogues não, porque os comentadores perdiam bastante tempo, não expressavam opiniões de forma tão gratuita, havia ali um debate quase académico em alguns casos. Havia massa crítica. Mas, lá está, provavelmente era menos democrático, teria pelo menos uma bolha de elite importante a dominar aquele espaço. Tenho pena que se tenha perdido um bocado a ideia de cada um ter um espaço onde escrevesse coisas que as pessoas liam com tempo.
“Percebi que não me dava bem na faculdade porque era preguiçoso”
Escolheste depois tirar um curso de comunicação [na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa] com o intuito de te vires a tornar jornalista. A tua mãe que é jornalista não te dissuadiu?
Dissuadiu, dissuadiu, tanto da carreira como do próprio curso em si que ela frequentou e não acabou. No momento em que optei por isso não achava que ia ser humorista logo. O meu objetivo era entrar na faculdade que queria, que era essa [Universidade Nova de Lisboa]. Fazia pouco na escola, mas tinha um acordo com os meus pais que passava por entrar naquele curso — eles sabiam que era o que queria e não me iam deixar depois mentir, dizer que queria era outro só porque não tinha tido média para entrar. A média do curso para que fui era relativamente alta, pelo menos para o padrão das humanidades. Tinha de trabalhar um bocado para isso. A minha ideia passava por entrar, fazer a licenciatura, tentar começar a trabalhar num jornal mas mais tarde ou mais cedo virar-me para o lado mais criativo da comunicação — poderia ser trabalhar em televisão, por exemplo. O plano era esse.
Segui um bocado a ideia de entrar num curso com uma média alta porque tinha mais prestígio. É um erro, passado um ano já não importa, é preciso ter um perfil para seguir um caminho. Depois acabei por desistir. Achei que o fazia porque o curso era muito abrangente mas não me dava conhecimento específico em nenhuma área particular. Depois fui para História e percebi que não me dava bem na faculdade simplesmente porque era preguiçoso.
A dissuasão de que falava tinha a ver com dois aspetos — o facto de não ser porventura uma das profissões mais estáveis ou mais bem remuneradas de um universo inteiro de profissões e ser um dos trabalhos mais odiados e vilipendiados hoje em dia. Basta abrir uma caixa de comentários para perceber que muitas pessoas sentem até alguma repugnância por jornalistas — normalmente a credibilidade é de “jornaleiro” para baixo.
Sim, sinto que há esse ódio. Talvez quando cresci as coisas não estivessem exatamente assim. O jornalismo está numa profunda crise, é muito difícil para quem sai de uma faculdade entrar numa redação e ainda mais difícil ser bem pago. Mas a área interessava-me por algum romantismo, via-a como o exercício de um poder benévolo. A imagem que tinha do poder dos políticos, por exemplo, era diferente. Nem todos os jornalistas terão boas intenções mas acho que a maior parte tem. Também pela profissão da minha mãe, via o jornalismo um bocadinho como “o bem”, como a vontade de investigar e trazer à tona a verdade. Ser capaz de esclarecer é uma coisa que preenche bem o ego. E, por muito que as pessoas digam o contrário, é completamente necessário.
Também escrevo num meio de comunicação [crónicas humorísticas], não faço jornalismo e os comentários são de ódio. Acho que está relacionado com o meio em si, as pessoas têm com o meio uma relação amor-ódio, gostam de ler mas também de criticar. Quando tentei o jornalismo, via-a como a profissão do “bem” para a qual tinha capacidade física. Também gostava dos polícias mas não sabia correr, portanto não dava.
Quer em comunicação quer depois em História, que tipo de aluno eras, de detentor do recorde de livros alugados na biblioteca a detentor do recorde de saídas à noite e presenças em praxes?
À praxe só fui no início, mas era uma praxe muito soft. Era um miúdo muito nerdy aos 14, 15 anos, depois tive vontade de contrariar isso e na altura da faculdade saía muito à noite. Também depois comecei a fazer stand-up, criei um grupo de comédia com mais sete amigos aos 18 anos e vivia uma ideia muito boémia de comédia com a qual deixei de me identificar tanto. Trabalhava dez minutos e ficava ali no bar a beber e fazer uma vida de café. Portanto não, nessa altura não era uma pessoa nada focada ou preocupada com o futuro.
Como é que foi a conversa com a família depois de abandonares o curso de comunicação e depois o de História? “Ok, tudo muito giro e tal, mas não vou acabar isto”?
Quando saí do curso de comunicação já estava protegido porque a minha mãe achava que não era um curso bom para mim. Abandonar História… no fundo fui deixando de ir. Tive um trabalho na TVI que me ocupava das 6h às 20h e como já ganhava dinheiro acabou por servir de desculpa.
Qual era o trabalho?
Era um programa que ainda bem que já não está disponível na TVI Play. Era uma espécie de recruta militar a brincar. Foi uma parvoíce, tinha 20 anos e alinhei naquilo. Era um programa de humor mas fazia basicamente um trabalho de ator…
Fizeste também um curso de escrita com o Rui Sinel de Cordes. Penso que terás feito outro ou outros, pelo menos um curso para escrita para televisão e cinema no instituto Restart…
Também não acabei [risos].
O que é que achas desse tipo de cursos? O que é que eles te deram?
O curso do Sinel deu-me desde logo a possibilidade de conhecer pessoas que tinham os mesmos interesses do que eu — de uma forma séria, porque não era um curso de um dia, era um curso de um mês e meio, era necessária alguma vontade firme de fazer humor para estar ali. Na altura fiz o curso com o [comediante] Diogo Batáguas, fi-lo com mais sete pessoas com quem acabei por formar um grupo que era os Comedy Pack. Depois, há técnicas que se aprendem, experiências e sketches que se testam. Também ouvimos boas palestras, foram lá o Pedro Boucherie Mendes, o Filipe Homem Fonseca, o Fernando Alvim, o Salvador [Martinha], pessoas que seguia de longe e com quem podia falar, fazer perguntas. O humor naquela altura estava a mudar, começava-se a perceber como é que alguém que vinha do stand-up como o Salvador Martinha poderia ganhar destaque e público através das redes sociais. Foi bom porque me obrigou a fazer algum stand-up e no final era preciso fazer uma apresentação. Era disso que precisava e é disso que ainda preciso muito na minha vida, que me obriguem a produzir e trabalhar porque eu sozinho não faço. Já tinha feito um curso antes desse [dado pelo humorista Rui Sinel de Cordes] com a Susana Romana, que é muito boa a dar cursos do género. Já tinha feito sketches com o Nuno Costa Santos. Andava sempre à procura disso porque obrigava-me a trabalhar.
Que importância tiveram os Bumerangue [grupo de humor que formou com os humoristas Pedro Teixeira da Mota, Carlos Coutinho Vilhena e Guilherme Geirinhas]?
Muita. Foi um momento em que quis levar um bocado mais a sério a comédia, porque nós não éramos um grupo de amigos que decidiu fazer sketches. O que aconteceu foi que identificámo-nos uns com os outros como pessoas que potencialmente poderiam fazer parte de uma coisa dessas. Tinha conhecido o Carlos [Coutinho Vilhena] talvez um mês antes de criarmos os Bumerangue e lembrei-me do Pedro Teixeira de Mota, depois o Pedro lembrou-se do Geirinhas… no dia a seguir estávamos a reunir e a começar a escrever coisas. Trabalhávamos com muita organização, que era uma coisa a que não estava habituado. Houve uma junção de forças para aquilo andar, para termos sempre alguém a filmar, para que acontecesse.
Fizemos duas séries e depois acabou. É difícil manter essa organização para sempre, especialmente porque não foi um projeto que tivesse numa primeira fase encomendas que envolvessem dinheiro. Não era propriamente uma coisa rentável, embora tivéssemos feito espetáculos ao vivo. Foi importante trabalhar com pessoas diferentes e trabalhávamos bem. Aquilo misturava um bocado a linguagem de vários lados da comédia. Acabámos por ser depois um bocadinho diferentes naquilo que escrevemos pessoalmente para stand-up, mas fazíamos uma coisa agradável que dificilmente se faz sozinho: sketches. Fizemos coisas que nos causam aos quatro um bocadinho de vergonha mas também fizemos coisas giras. Era bom trabalhar em grupo. Aquilo fez-me perceber que também era bom haver um bocadinho de competitividade na comédia. O facto de chegarmos ali a cada dia com pressão para cada um de nós ter as melhores ideias fazia-nos crescer individualmente.
“Tive 100 pessoas das tunas a fazer-me um corredor”
Escreveste uma crónica recente a propósito da ocultação de parte da “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos em manuais da Porto Editora. As sugestões que imaginas que a editoria daria para um poema mais contemporâneo e polido são ótimas: “Ó trotinetes elétricas apilhadas de hipsters e influencers / e cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o — derrotam estereótipos de género através da leitura dos manuais da Porto Editora”. Fazer humor também implica uma predisposição para incomodar ou chatear alguém?
Que alvo é que vês aí, a Porto Editora? Não pensei muito nessa questão, mas a Porto Editora de certeza que não quer saber, já tinha levado “pancada”. O difícil é ir contra a corrente e pegar numa ‘vaca sagrada’ qualquer. Quando é o Ricardo Araújo Pereira que tem um alvo o chão pode tremer um bocadinho, as pessoas ouvem-no muito. Eu não tenho essa relevância para a Porto Editora ficar chateada.
As pessoas às vezes ainda levam um bocado a mal, mas mesmo assim cada vez menos. Acho que começa a haver mais sentido de humor das marcas, porque percebem que não podem evitar que as pessoas falem delas. Uma vez escrevi uma crónica sobre o IKEA, como aquilo destruía famílias, que é exatamente o contrário do que eles querem comunicar. Era uma descrição de todos os conflitos que uma pessoa vê naqueles corredores todos. Eles responderam-me a dizer que tinham achado graça, tiveram poder de encaixe e sentido de humor. Mas há alvos fáceis e alvos difíceis — e a Porto Editora era um alvo fácil. Quando sinto que estou a visar um alvo fácil tento abordar o assunto de uma forma inesperada. Às vezes faço-o, mas sei que é preguiçoso quando está toda a gente a falar mal de uma coisa eu ir lá também. A nossa opinião é só mais uma e vamos cascar porque é fácil cascar. Acho sempre que se está tudo a ir por um lado, é preciso pelo menos ir para esse lado por um outro caminho.
Mas já recebeste muito hate mail [mensagens de ódio]?
Quando uma pessoa fala de futebol recebe quase sempre. Por acaso eu e o Diogo Batáguas há uns meses fizemos uma espécie de compilação sobre a ascensão e queda do Bruno de Carvalho e isso foi recebido com pouco ódio. Porquê? Porque ele já estava proscrito! Se tivesse sido duas ou três semanas antes tínhamos recebido reações dessas. As pessoas tanto têm heróis como os matam a seguir.
Estava a lembrar-me do caso do Diogo Sena com o vídeo “Sporting That I Used to Know”….
Sim. Nesse caso as consequências foram mesmo físicas, ele foi agredido. O futebol é sempre complicado. Fora futebol, não há muitos tópicos que motivem ódio. A [humorista] Joana Marques fez um programa do “Extremamente Desagradável” dedicado aos enfermeiros e acho que levou muita ‘porrada’. No fundo essas reações acontecem quando se tem grupos menos atacados como alvos. Se os alvos forem políticos há sempre pessoas a concordar, são alvos mais fáceis. Muitas vezes nos comentários às crónicas as pessoas chamam-me jornaleiro, por exemplo, quando está ali indicado que é uma opinião, não é uma notícia [risos].
E com processos legais, já levaste?
Enquanto Bumerangue levámos uma vez uma queixa na ERC [Entidade Reguladora da Comunicação], que ganhámos. Tínhamos um sketch que se calhar hoje não dava para fazer, em 2014 ainda dava. É verdade que o texto era um bocado insensível, especialmente numa parte em específico que motivou a queixa. Aquilo era basicamente um “Alta Definição”, só que em vez de ser com uma personalidade [pública] era com um indivíduo que era o violador de Alvalade, que era interpretado por mim. Usava-se ali os truques todos do Alta Definição mas com um criminoso como entrevistado. Recebemos uma queixa por uma coisa qualquer que tínhamos dito lá que parecia apologia da violação. Não era, claro. Hoje em dia ignora-se o contexto em que as palavras são ditas. Como as palavras hoje não têm contexto, leem-se ou ouvem-se isoladas, são criticadas e os seus autores espezinhados. Ali o alvo era obviamente o absurdo do “Alta Definição”: a auto-bajulação que ali existe, o sentimento que leva as pessoas a emocionar-se a falar da sua vida num programa de televisão de domingo. O alvo obviamente não era as vítimas de violação. Recebemos a queixa e ganhámos. Quer dizer, não ganhámos nada, não obrigámos foi a SIC Radical a pagar muito dinheiro a alguém [risos].
Como é que foi o dia — dia ou noite — em que fizeste stand-up numa gala de tunas académicas?
Foi giro, foi muito no início disto tudo, para aí em 2013. Fomos convidados para atuar numa gala de tunas em Santarém, éramos três e como é óbvio fomos fazer piadas sobre tunas. E não caiu muito bem, ou as pessoas das tunas não têm muito sentido de humor ou pelo menos aquelas não tinham. Damos conta de nós e estamos num camarim com 100 pessoas das tunas a fazer-nos um corredor. Saímos logo pela porta, sentimos que era um daqueles momentos em que só havia uma coisa a fazer: “vamos embora”. E fomos. Não correu bem.
“Tenho uma personagem que é o Fausto, o influencer de esquerda”
Tens 24 anos. Sobre o que é que esperas não estar a fazer piadas daqui a 20 anos?
Espero não estar a fazer piadas em primeiro lugar. Não, não sei, estou a brincar. É-me difícil prever o futuro e posso até nem estar a fazer isto por uma razão qualquer. A verdade é que é um desafio depois de 20 anos continuarmos satisfeito com o que estamos a fazer. É uma coisa difícil, tem de ser gerida com pinças, são muitos anos num país muito pequeno.
Mas há alguns temas específicas que esperas não abordar nessa altura?
Não sei, espero não estar a fazer humor sobre adolescência ou sobre coisas que não domino. Também espero não chegar a essa idade e estar completamente alheado do que as pessoas fazem. É o meu grande medo, já hoje não compreendo bem a linguagem de adolescentes e sinto que vou ser um reacionário. Tenho este medo: espero não me tornar num reacionário. Sou progressista mas vejo muita gente que nos anos 1970 era muito radical e depois foi evoluindo para reacionário — outros ficaram a meio. O Durão Barroso, por exemplo, acho que era maoísta e hoje trabalha na Goldman Sachs. Tenho muito medo dessa evolução, tenho medo de me tornar uma besta com medo do progresso. Espero não estar fora do espírito do tempo, não estar a fazer uma coisa muito datada aos 44 anos. Espero conseguir falar para mais pessoas e ser mais abrangente e espero continuar a fazer [humor] sobre atualidade, acho que vai ser interessante fazer isso nessa altura, mas espero também experimentar outros formatos e outros tipos de conteúdos.
Era a pergunta seguinte: o que é que gostavas de fazer no humor nos próximos anos, que ainda não fizeste ou que gostavas de voltar a fazer?
Gostava de voltar a fazer sketches, é uma coisa que tenho saudades de fazer. Tenho algumas ideias para série — não sitcoms mas conteúdos que faça com calma. Sinto falta de ter um ano para escrever uma coisa. Claro que depois nunca é um ano, é um ano para não fazer nada e no último mês escrever, mas fazer algo bem pensado e com meios. Espero gravar um special [um espetáculo ao vivo de stand-up, pensado desde início com o objetivo de ser gravado e distribuído em DVD ou plataformas digitais]. Quero também arranjar uma maneira de escrever mais, não sei se num livro, talvez, mas em que não esteja tão dependente do limite de 2500 caracteres de uma crónica.
Hoje é menos recomendável a um humorista — ou a um profissional de outra área qualquer — dizer como se situa politicamente, de que clube de futebol é?
Acho que é recomendável não transportar uma agenda. Gosto de criar a dúvida, gosto de às vezes fazer coisas a bater na esquerda para que as pessoas pensem: este direitolas… mas sou tendencialmente de esquerda e não tenho problemas em assumir isso. Também há humoristas de direita. Uma vez o Rui Ramos escreveu uma crónica, por sinal no Observador, a debruçar-se sobre porque é que todos os humoristas são de esquerda. Não é verdade, se calhar os direita é que não falam tanto de política, mas há humoristas de direita.
Acho que é melhor fazer o disclaimer [aviso prévio]: eu sou do Benfica e sou de esquerda. É bom é que isso não esteja sempre presente. Pensar que não vou falar num assunto porque vai tirar votos a um partido… acho que deve acontecer exatamente o contrário. Até sinto uma maior falta de sentido de humor na esquerda, ou em alguma esquerda — ou então se calhar sou eu que sou demasiado exigente com a esquerda. Dá-me muito prazer às vezes discordar de algumas pessoas de esquerda que se levam muito a sério. A ideia do “esquerdalho” tem muito por onde pegar e faço às vezes uma personagem — em vídeo e noutras plataformas — que é o Fausto, o influencer de esquerda. Se calhar como estou mais próximo de pessoas desse espectro político, gosto de ver o ridículo aí, gosto de explorar isso.
Vamos a uma série muito rápida de perguntas parvas para terminar?
Certo.
Conheces o cantor romântico Manuel Cardoso?
Conheço, porque como é óbvio pesquiso-me e várias vezes essa pessoa partilha o mesmo espaço mediático que eu. Também há um Manuel Cardoso ciclista. E havia um assassino Manuel Cardoso.
Já assiste a violência policial em bairros de betos?
Uma vez um polícia à paisana apreendeu-me uma ganza. Foi o máximo de violência policial que sofri.
Os galhardetes atirados pelos betos que ficcionas nessa crónica são muito bons: “já leu Voltaire?”, por exemplo.
Muitas vezes os betos são muito prepotentes e muito condescendentes com a polícia. Violência policial em bairros de betos normalmente é uma violência de elite contra uma pessoa que está a trabalhar.
Presumo que não vás fazer um “risotto de cogumelos bem mediano, servido entre pão de alho congelado e petit gateau do Pingo Doce” para o jantar de amanhã [14 de fevereiro, dia de São Valentim]?
Não, não. Vou caprichar mais no Dia dos Namorados.
Cozinhas bem?
Cozinho, cozinho. Não sou mestre mas gosto de cozinhar.
Obrigado, Manuel.
Obrigado!