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No dia do funeral, Manuel Ferreira foi recordado como alguém que “deu a vida pelo bem-estar das pessoas”. O engenheiro de 27 anos morreu a 4 de julho, na sequência de uma explosão de um contentor da Omnidea, a empresa que era o seu trabalho “de sonho” e que se dedica à investigação aeroespacial, no campus da Faculdade de Ciências e Tecnologia, na Caparica. No momento do violento acidente, Manuel — um jogador de râguebi que gostava de fazer “coisas impossíveis” — estava a ajudar a criar um “combustível espacial novo”, revela ao Observador o vice-presidente da empresa. Ao seu lado estava um colega de equipa, que sobreviveu — os estilhaços passaram-lhe cinco centímetros ao lado. A explosão, semelhante “a uma granada”, espalhou metal por uma área de quase 200 metros. As investigações estão agora a decorrer: a Omnidea pediu uma auditoria e contratou uma perícia externa internacional, a NOVA FCT pediu uma auditoria de segurança ao edifício e o Ministério Público tem uma investigação a decorrer.
Naquela tarde de 4 de julho, era muito o calor na Faculdade de Ciências e Tecnologias (FCT) da Universidade Nova de Lisboa. Mas era no exterior, num terreno baldio, que Manuel Ferreira e o seu colega de equipa, Luís Natário, estavam prestes a iniciar mais uma experiência. A Omnidea existe há quase 20 anos e tem uma longa ligação com o Instituto Superior Técnico — já que a maioria dos funcionários se formaram nesta casa da Universidade de Lisboa —, mas foi na FCT que a empresa encontrou um local para se fixar. Primeiro, num laboratório e, atualmente, num edifício que pertencia à empresa YDreams.
Máscara de gás e dupla verificação: como tudo foi preparado
“No dia do incidente estávamos a desenvolver um combustível espacial novo”, à semelhança do que tinha sido feito nos dias anteriores, revela Sérgio Oliveira, vice-presidente da Omnidea. E continua: “Consistia em levar mais à frente um projeto anterior que tínhamos desenvolvido com a Agência Espacial Europeia e que deu resultados iniciais promissores.”
“Tipicamente, os combustíveis dos foguetões são horríveis”, como é o caso da hidrazina. “Duas gotas na roupa e em 40 segundos o corpo começa a entrar em falência de órgãos. Em dois minutos, se não for assistido, a pessoa morre. Além de uma lógica nefasta para o meio ambiente, estes combustíveis são muito perigosos”. Por isso mesmo, a Agência Espacial Europeia incentivou a que fossem criados “combustíveis sustentáveis” — e era nisso que Manuel Ferreira trabalhava.
O contentor que acabou por explodir situava-se “a 40 metros do edifício” onde a Omnidea opera, longe do laboratório, mas “perto o suficiente para levar e trazer coisas”, descreve o vice-presidente da empresa.
E explica como tudo se passou: “A equipa de testes monta tudo o que tem a montar dentro do contentor. Normalmente, é uma estrutura com tubos e uma bancada, e estão ligados a um motor de foguete. Aquele que estávamos a testar tem 15 por 15 centímetros; é pequeno, quase uma carteira. Esse motor é depois alimentado por ‘tubinhos’ normalmente ligados a garrafas de gás: naquele caso, uma de oxigénio e outra com o tal combustível“. As equipas de testes são compostas por duas a três pessoas, numa “lógica de cross-checking em que um monta e o outro verifica.” No teste em questão, a equipa era composta por Manuel Ferreira e Luís Natário.
Passada esta etapa, “avisa-se toda a gente que se vai proceder ao teste”, uma prática que a empresa encara com seriedade, por ser parte do protocolo de segurança, mas que por vezes achavam cómica, partilha. “Normalmente, apareciam [no edifício] com um fato branco, vestidos de astronauta, com a máscara de gás com respiradores na cabeça. Vinham dizer que iam decorrer testes e avisar para ninguém sair pelas portas a nascente e não se assustarem com o barulho.”
A Omnidea sublinha que todos os passos de segurança foram cumpridos, garantia que vai ao encontro do que José Paulo Santos, subdiretor para o Conselho Diretivo da NOVA FCT, constatou logo no dia do incidente: “Os princípios de segurança estavam a ser seguidos.” Mas esclarece também que o protocolo de segurança seguido dentro das instalações das empresas é independente da instituição de ensino.
Com a detonação, pedaços de metal espalharam-se por 200 metros
Os engenheiros estavam na rua, “do lado de fora do contentor”. Um tinha a missão de “ligar e desligar tudo” e o outro de “controlar os gazes”, descreve Sérgio Oliveira.
Luís Natário ficou com a missão de “controlar o computador que tem o protocolo do teste”. Este programa “vai abrir e fechar as válvulas para garantir que o motor funciona como desejado, por exemplo, para garantir que acende apenas durante cinco segundos”. “O Luís tinha o computador à frente, a ver tudo correr, e tem com ele um kill switch“, ou seja, um botão de emergência que pararia a experiência mal fosse pressionado, continua.
Manuel Ferreira, por seu lado, tinha a tarefa de fazer o outro controlo da ignição. “A ignição é feita com uma vela elétrica parecida à dos carros. E o engenheiro tem um interruptor analógico na mão, vermelho, que serve para ligar e desligar. Este interruptor funciona fora do circuito do computador”.
Faz-se depois uma contagem “como se vê nos filmes”, diz. Primeiro, o engenheiro de 27 anos teria de contar regressivamente: “Cinco, quatro, três, dois um.” E, depois, “conforme a duração do teste, conta para cima [a partir de um] em alto para todos saberem onde vão, embora haja um cronómetro”, descreve o vice-presidente ao Observador sobre como a experiência decorreu naquele dia 4 de julho.
Foi durante este processo, por volta das 13 horas, que se ouviu um “grande estrondo”, relataram ao Observador testemunhas pouco tempo depois do incidente. Manuel foi “cuspido para a estrada” e ficou deitado no chão, ainda com sinais de vida, mas pouco tempo depois, ainda antes da chegada do INEM e mesmo com manobras de reanimação, acabou por morrer.
O tanque com o qual trabalhavam estilhaçou-se e tudo se espalhou num espaço de 200 metros. “Continuamos a encontrar pedacinhos de metal cravados na fachada do edifício, temos um contentor [do lixo] furado como uma peneira e até estilhaços na mesa do piquenique onde comíamos”, relata Sérgio Oliveira.
“Dos 30 detritos que furaram o contentor [da experiência], um apanha o Manuel”, mas o colega que está ao seu lado sobrevive — por acaso. “O Luís ficou com dois buracos ao lado da cadeira onde estava sentado, a cerca de 5 centímetros”, descreve o vice-presidente. Não sofreu mazelas físicas, mas está a ser acompanhado a nível psicológico, completa o engenheiro António Ribeiro, que foi orientador de Manuel Ferreira na tese de mestrado e acompanhou o processo de entrada e integração de Manuel na empresa.
Houve um terceiro funcionário a ser afetado pela explosão do dia 4 de julho. Tal como o Observador adiantara, terá sido um funcionário que ficou em choque e precisou de cuidados médicos. Segundo Sérgio Oliveira, tratou-se de Tiago Pardal, o CEO da empresa, que assistia à experiência no interior do laboratório.
O engenheiro júnior mais promovido no último ano e meio
Manuel Ferreira tinha-se juntado à empresa há cerca de três anos, quase ao mesmo tempo que o atual vice-presidente. “Era, numa fase inicial, um outsider para a nossa equipa de foguetes, porque ele fazia uma tese numa área estranha: amoníaco usado para produção elétrica aplicada a um projeto marítimo“, recorda Sérgio Oliveira. “Era um tema engraçado”, lembra o orientador e engenheiro mecânico, António Ribeiro.
Foi em 2015 que Manuel entrou no Instituto Superior Técnico pela primeira vez, para estudar Engenharia Mecânica. Daí à Omnidea foi um saltinho: “Ele procurava uma tese [de mestrado]. E como pertencia a um grupo de amigos onde havia gente que eu orientava, veio ter comigo”, conta ao Observador António Ribeiro. E foi assim que tudo começou: “A tese foi arquitetada com a Omnidea, o Manuel aceitou a ideia e depois disso entrou ‘a sério’ na empresa.”
Rapidamente o jovem assumiu projetos mais relevantes: “O Manuel veio para a minha equipa para ficar com as coisas impossíveis. Já nos ríamos! Todos os projetos que ninguém queria, ele dizia: ‘Deixem estar que nós tratamos’. Era um engenheiro todo-o-terreno e diria até que foi o engenheiro júnior que mais promovemos no último ano e meio.”
O seu orientador de Mestrado, António Ribeiro, considerava-o “são por dentro e por fora”. “A sua maneira de estar, sem maldade, e a sua bondade tornavam-no uma pessoa junto de quem era bom estar. Sentíamos frescura ao pé dele.”
Opinião semelhante tem Kane Hancy, que durante quase uma década partilhou o campo de râguebi com Manuel Ferreira. “Quando cheguei a Portugal, em 2012, treinei o Manuel no Técnico. Ele era muito novo. Vi-o crescer: passar de adolescente a homem. Vi tudo aquilo que ele conseguiu alcançar. Ele era bom, dentro e fora do campo.”
Para o neozelandês, Manuel Ferreira era “alguém em quem podias confiar dentro do campo, sempre focado no que queríamos atingir e pronto para dar tudo. Era inteligente em campo, também. Fora do campo tinha qualidades semelhantes, punha os outros em primeiro e tornava qualquer momento bom.”
Segundo Hancy, Manuel teve “uns anos duros” quando se viu obrigado a conciliar a prática do râguebi no Técnico com a vida de estudante na mesma instituição e, ainda, com o trabalho. “Isto mostra o tipo de homem que ele era e como se conseguia adaptar a tudo, estabelecendo prioridades.”
Detonação poderá ter sido 10 a 20 vezes superior à pressão dentro do reservatório
Para criar um novo combustível, a Omnidea “comprou um reservatório de pressão e confiou que estava bem feito; ainda assim, puseram-no num contentor marítimo”, conta o professor de engenharia do IST e antigo orientador de Manuel, António Ribeiro. O vice-presidente da Omnidea sai em defesa da empresa a quem fizeram a compra: “O tanque é de uma entidade certificada internacional que só faz componentes para linhas de pressão. É como se tivéssemos comprado o tanque da Mercedes. Algo de estranho se passou, mas [o caminho para a explicação] não é pela construção.”
Segundo os relatos feitos ao professor António Ribeiro, a detonação foi tão forte que “o contentor parecia um queijo suíço no fim“. Mais: “A violência do incidente indica que foi uma detonação [e não uma explosão]. Tudo o que estava no reservatório expandiu-se ao mesmo tempo.”
Um reservatório de pressão “é um cilindro tipicamente de aço, eventualmente constituído por outras camadas, e é dimensionado para suportar uma pressão, provavelmente, neste caso, entre uma e duas vezes superior ao que é preciso” por uma questão de segurança. Quando há uma detonação, esta “pode ser 10 ou 20 vezes superior à pressão que estava lá dentro”. “É o equivalente a uma granada. E neste caso não era uma granada qualquer“, com “destroços a atravessar a parede do contentor”.
Sérgio Oliveira acrescenta ainda que Omnidea — que atualmente gere, de forma temporária, devido aos acontecimentos de 4 de julho — equipa “os tanques com um burst disk [disco de rutura, em português] que controla a pressão“. “Se subir demais, o disco abre e alivia a pressão automaticamente. Serve para precaver aumentos repentinos de pressão e abre num sítio específico, é expectável. Mas isto foi uma detonação: encontrámos o disco destruído”, recorda.
O que explica o rebentamento?
Questionado sobre a diferença entre detonação e explosão, o orientador da tese de Manuel Ferreira sintetiza: “Quando uma carga com pólvora explode, por exemplo, dá-se uma combustão muito rápida. Quando a dinamite explode é detonação. A diferença? Se puser dinamite numa arma, rebento com a arma porque a nitroglicerina arde toda ao mesmo tempo. Na pólvora é progressivo e dá tempo à bala para sair.”
A NOVA FCT disse estar informada do uso de gases no campus por parte da empresa, mas assegura que “não há— e isto são apenas hipóteses — indícios de que [o incidente] tenha sido na sequência de um derrame, uma fuga”, diz António Ribeiro. “O fluído em questão estava dentro do contentor fechado. Se fosse uma fuga de gás, haveria primeiro um incêndio”, pelo que possivelmente Manuel teria conseguido reagir, afirma o especialista.
Para o professor, “podem ter acontecido dois tipos de coisas”. Em primeiro lugar, “do longo percurso desde a mina onde foram extraídos os minérios [usados] até onde se deu a explosão, participaram centenas de engenheiros, operários especializados e não especializados, e transportes… Alguém pode ter cometido um erro crítico” na forma como manobrou estes minérios. “Há validações” da forma como o processo é feito, mas “até isso está sujeito a falhas”, lembra.
A segunda hipótese do engenheiro do IST é que, “mesmo que ninguém tenha cometido um erro, pode ter sido o tal caso num milhão, em que o material tinha defeito ou houve um acontecimento espúrio que ninguém esperava”.
Além disto, o engenheiro mecânico explica que “todos os materiais estão sujeitos a fadiga”. Ou seja: “Quando um material é sujeito a esforços cíclicos (como carregar e descarregar), há este fenómeno em que, para a mesma carga, ao fim de uns ciclos há uma falha; como se estivesse cansado.” Atualmente já é possível prever quantos ciclos poderão ser executados até se atingir esta fadiga, mas ainda assim existe uma margem de erro.
Sublinhando várias vezes que a engenharia “é um campo naturalmente perigoso” e que “não há segurança perfeita” em nenhum cálculo, o professor António Ribeiro afirma: “Não prestamos culto à Deusa do Azar e da Sorte. Temos consciência de que há sempre margem de erro.”
“Dificilmente se saberá” o que aconteceu, diz António Ribeiro. E Sérgio Oliveira concorda: “Gostava imenso que chegássemos a uma conclusão, nem que fosse óbvia, de A+B dá C. Mas tenho dúvidas de que cheguemos aí”, até porque os níveis de inovação que pretendiam atingir ainda não estão devidamente desenvolvidos na literatura.
Omnidea contratou perícia externa. MP abriu inquérito
No dia do incidente foi tornado público que a PJ tinha o caso em mãos. Ao Observador, a Polícia Judiciária detalhou que foram recolhidos materiais e vestígios do local, que vão agora ser analisados nas instalações do Laboratório de Polícia Científica, em Lisboa.
“Não sei o que a PJ levou. No auto só sabemos que levaram o computador de controlo e as câmaras go-pro (porque todos os testes são filmados em câmara lenta para depois analisarmos). Se quisessem químicos [específicos] podiam ter pedido e dávamos. Mas o que estava a ser testado não levaram de certeza porque está espalhado por uma área de quase 200 metros”, detalha o vice-presidente da Omnidea.
A empresa da área espacial já está a tentar entender o que aconteceu e suspendeu todos os projetos relacionados com Manuel Ferreira — pelo menos até setembro, com o objetivo de deixar as investigações correr até lá e de forma a que a empresa se reestabeleça. Face ao incidente, a Agência Espacial Europeia pediu à Omnidea que partilhasse depois a conclusão da investigação, em nome do progresso científico.
Foi pedida “uma auditoria independente para saber se houve algum incumprimento, ou seja o que for”. “Estamos a colaborar com as autoridades com o necessário”, diz, até porque já está a decorrer um inquérito do Ministério Público. Foi ainda contratada uma “perícia externa internacional” para ter uma “abordagem independente” a tudo o que se passou naquele dia.
Mas houve “imensa dificuldade em encontrar especialistas internacionais” para conduzir a auditoria, confessa Sérgio Oliveira. “Há pouquíssima gente no momento que tenha explorado isto”, diz o vice-presidente da empresa. A lista foi eventualmente reduzida a cinco pessoas e, dessas, foi selecionado um americano.
Além disto, a NOVA FCT — apesar de a empresa operar de forma independente — disse em resposta ao Observador que “solicitou uma auditoria de segurança ao edifício, por uma entidade externa”, recusando detalhar de que empresa se trata, apesar das várias insistências.
Manuel trabalhava na sua empresa de “sonho”
Manuel Ferreira trabalhava na sua empresa “de sonho”. “Desenvolvia o projeto, fazia os cálculos e as experiências. Era a empresa em que ele escolheu trabalhar”, lembra António Ribeiro. O mesmo recordaram a namorada e amigos próximos quando visitaram as instalações da Omnidea depois do acidente. “Os amigos disseram-nos que gostava tanto disto que quando chegava a casa ninguém o podia ouvir. Dizia o que tinha feito e o que ia experimentar. A companheira disse que a única situação pela qual se atrasava para um jantar era uma experiência nova”, relata Sérgio Oliveira.
A Omnidea atua a dois níveis atualmente. “É especialista na área de propulsão — elétrica ou química —, mas não mexemos na nuclear. E usamos tecnologia inicialmente desenvolvida para o espaço para outras áreas, como energia verde”, detalha o vice-presidente. “Desenvolvemos coisas novas, literalmente, e temos muitos projetos a decorrer”, diz. Alguns destes são divulgados no site da empresa, como o projeto SSALut.
Neste projeto, fala-se “de determinados tipos de revestimentos e do processo de fabrico”, diz António Ribeiro. “Reservatórios de combustível, tanques de oxigénio ou até balões estratosféricos têm um revestimento; um invólucro, que normalmente tem várias camadas para proteger o interior. Existem muitos detritos no espaço a passear e é necessário uma proteção forte” — e a Omnidea quis contribuir para essa evolução.
Já o projeto SADLE (Sistemas de Atuação e Direcionamento para Lançadores Espaciais), por exemplo, diz respeito ao controlo de “qualquer coisa que ande no espaço, seja um satélite ou um vaivém”, detalha António Ribeiro. Nenhum destes corpos “se conduz com um volante, é controlado”: “No espaço não há nada fixo, por isso são precisos sistemas de reação: disparo um bocadinho de gás e, por reação, o corpo vai para o outro lado. Para isso é preciso um sistema que faça essa ejeção de gás e algo que provoque esse sopro”. Tudo isto era o “sonho” de Manuel Ferreira.