Manuel Valls, primeiro-ministro francês, vem a Lisboa mostrar à Europa que o seu país vai cumprir o compromisso de manter o défice público abaixo dos 3% num prazo de dois anos, assim como levar a cabo as reformas necessárias para atingir essa meta. No entanto, as batalhas mais difíceis do socialista travam-se na arena política francesa. Por um lado, é uma das figuras políticas que tece críticas mais duras à Frente Nacional e mais se opõe ao regresso de Sarkozy, por outro, o seu posicionamento ideológico é contestado dentro do seu próprio partido, onde é visto como um homem de direita.
Em janeiro deste ano, uma sondagem da televisão RTL mostrava que o primeiro-ministro francês era o único candidato do Partido Socialista que passaria à segunda volta das presidenciais e, nesse caso, ganharia a Marine Le Pen por 60%-40%. Essa é a mesma percentagem de franceses que, após a derrota nas eleições departamentais de 22 e 29 de março, apoia a manutenção do primeiro-ministro em funções, embora a popularidade do governante tenha sofrido gravemente neste período eleitoral.
Mesmo assim, e ao contrário do que aconteceu há um ano, quando Jean-Marc Ayrault se demitiu do cargo de primeiro-ministro de França depois de o Partido Socialista ter sofrido uma grande derrota nas eleições municipais, Manuel Valls, que até 2014 foi ministro do Interior e então sucedeu a Ayrault, disse antes das eleições que ia continuar a missão que lhe foi confiada pelo Presidente da República, ou seja, “reformar o país”.
Para isso, apresentou já esta semana um plano que visa estimular o investimento no país, recorrendo a medidas fiscais que vão beneficiar o setor industrial, o congelamento das portagens nas autoestradas francesas, a simplificação da carreira contributiva dos franceses e ainda reformas no mercado de trabalho que visam diminuir o desemprego e combater a precariedade – as medidas concretas serão apresentadas no dia 22 de abril. Esta será uma das últimas peças das várias reformas que Manuel Valls, juntamente com o ministro da Economia, Emmanuel Macron, está a aplicar em França, tornando-o a cara mais visível da austeridade no país e das reformas estruturais que são fulcrais para que França cumpra a meta dos 3% do défice contida no Pacto Orçamental.
Até 2017, o país quer reduzir 50 mil milhões de euros de despesa pública, assim como pretende facilitar o ambiente empresarial, simplificando os processos burocráticos e diminuindo algumas taxas fiscais. Um dos passos mais decisivos neste processo foi a aprovação por decreto governamental da Lei Macron no início do ano, que visa aumentar a competitividade do tecido empresarial francês, permitindo privatizações, maior flexibilidade nos despedimentos, liberalização do acesso a certas profissões ligadas à justiça e ainda a possibilidade de alargar os horários de atendimento dos espaços comerciais. No entanto, estas medidas não estão a ser bem recebidas pela ala mais à esquerda do PS que contesta a posição liberal e a austeridade imposta, alegando que o programa atualmente seguido por Hollande difere do que apresentou aos franceses e ao partido quando foi eleito em 2012.
Mas, para os mercados, estas reformas ainda não são suficientes. A OCDE avisou no início de abril que o crescimento em França em 2015 vai ficar pouco acima de 1 % e que, no próximo ano, deve situar-se em 1,6%, instando o Governo francês a avançar com “um plano ambicioso e credível de reformas estruturais”, especialmente no mercado de trabalho. Macron prometeu avançar com um segundo pacote de medidas já no verão. Antes de Lisboa, Valls já esteve em Berlim e a próxima paragem para angariar confiança nas reformas do Governo francês é a Irlanda.
O combate dentro e fora do partido
Ao contrário das principais figuras do PS francês, Manuel Valls não tem como ideal político François Miterrand, mas sim governantes como Tony Blair ou Bill Clinton, e, ao contrário também da ala mais à esquerda do seu partido, Valls reconhece que o mundo financeiro “é uma necessidade” para o país. As afirmações do primeiro-ministro numa entrevista à revista L’Obs (antiga Le Nouvel Observateur) dizendo que “a esquerda pode morrer” ou que “é preciso acabar com a esquerda do passado”, assim como a resposta “porque não?” a uma possível mudança de nome do Partido Socialista têm vindo a chocar o partido no último ano. Para Valls, a esquerda só tem uma saída: ser “pragmática, reformista e republicana”.
Estas declarações não surgiram como surpresa no seio de um Partido Socialista dividido entre uma linha mais à esquerda e uma linha mais ao centro, onde o próprio Manuel Valls, que foi presidente da câmara de Évry durante 11 anos, já era conhecido como sendo um elemento liberal, não conseguindo evitar as comparações com Nicolas Sarkozy devido aos seus discursos inflamados e frases combativas. No entanto, estas declarações e a sua atuação nos cargos que desempenhou suscitam críticas cada vez mais audíveis dentro do seu partido. Martine Aubry, autarca de Lille que concorreu contra François Hollande nas primárias do PS francês em 2011, nega ser uma socialista do passado. “É um absurdo dizer que não há demanda para a esquerda ou dizer que a culpa é dos rebeldes”, afirmou Aubry, pedindo uma inflexão na política de austeridade.
Mas não está sozinha. Também a ministra da Justiça, Christiane Taubira, diz que a esquerda cometeu um erro ao adotar palavras da direita como “pragmatismo”, em vez de “ideais e utopias”. “Esse não é o vocabulário que eu utilizaria para definir a esquerda”, disse Taubira, enviando uma mensagem clara ao líder do Governo. Menos contido, foi o ex-ministro da Economia, Arnaud Montebourg – substituído por Macron – que acusou Hollande de adotar “políticas absurdas” que “estão a sufocar a economia e são responsáveis pelo aumento do desemprego”. “O Partido Socialista está na rota do PASOK”, avisou Montebourg.
“A Frente Nacional não tem qualquer solução. Tenho medo pelo meu país. Tenho medo que ele fracasse contra a Frente Nacional. A Frente Nacional chegar aos 30% é algo muito grave para o nosso país”, argumentou Valls.
Apesar do clima de tensão no PS francês estar a aumentar desde a indicação de Valls para primeiro-ministro, as críticas aumentaram depois da derrota nas eleições departamentais. “É insuportável dizer-se, como disse o primeiro-ministro na primeira volta, que era uma vitória a Frente Nacional não ser a primeira força política de França”, argumenta Aubry, acusando Valls de ter cometido “erros profundos” durante a campanha, nomeadamente ao entrar em conflito direto com o partido de Marine Le Pen, dizendo mesmo que tinha medo da vitória do partido.
As trocas de palavras entre Valls e os dirigentes da Frente Nacional foram constantes durante a campanha, com o primeiro-ministro a entrar numa discussão tensa com a sobrinha de Marine Le Pen, Marion Maréchal-Le Pen, deputada da Frente Nacional. Nessa ocasião, Valls disse mesmo que a Frente Nacional engana as pessoas mais humildes em França. Jean-Marie Le Pen, fundador do partido e atual presidente honorário, disse que Valls lhe fazia lembrar “os fascistas de outros tempos”.
Esquerda unida, mas não com Valls nem Hollande
A ideia do primeiro-ministro, também vertida na entrevista à revista L’Obs em outubro do ano passado, é deixar para trás a esquerda “revolucionária e nostálgica” e criar uma “casa comum para todas as forças progressistas” para fazer frente à ameaça “de uma direita dura e de uma extrema-direita que estão a progredir”. Valls voltou a este tema na campanha, pedindo na noite da primeira volta das eleições departamentais, que os “republicanos” se unissem, de modo a que a esquerda conseguisse combater o avanço da direita.
Mas estes apelos não parecem convencer os restantes partidos de esquerda. Logo após serem conhecidos os resultados das eleições departamentais, Jean-Luc Mélenchon, co-fundador do partido Frente de Esquerda e ex-socialista, disse que é necessária uma “nova aliança popular entre partidos e personalidades da oposição de esquerda” em França para as eleições regionais que se vão realizar em dezembro deste ano, mas que combata também François Hollande e Manuel Valls. “Não deixamos que François Hollande e Manuel Valls reduzam a esquerda a nada”, escreveu o político na sua conta de Twitter.
Je lance un appel. Ne nous résignons pas ! Ne laissez pas François Hollande et Manuel Valls réduire la gauche à néant. #departementales2015
— Jean-Luc Mélenchon (@JLMelenchon) March 29, 2015
É neste clima que o Partido Socialista francês se vai encontrar no início de junho em Poitiers, para debater e delinear a estratégia para as presidenciais de 2017. As moções ao congresso têm de ser apresentadas até este fim de semana e enquanto Jean-Christophe Cambadélis, secretário-geral do partido e apoiante do Governo e de Hollande, tenta reunir na sua proposta o maior número de sensibilidades, a ala mais à esquerda do partido espera que Aubry avance com uma moção própria. Enquanto a moção de Cambadélis será assinada por Manuel Valls, a experiente socialista Aubry deverá lançar até sábado uma moção em nome de Christian Paul, deputado socialista, próximo da autarca.
A eleição para secretário-geral do partido decorrerá no dia 28 de maio – com um período de campanha na semana antes – e a nova direção tomará posse em Poitiers. Esta escolha será essencial para as presidenciais de 2017 e para o futuro de Hollande e Manuel Valls dentro do Partido Socialista e na política francesa.