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Debruçados sobre a areia, de mãos enluvadas e munidos de baldes e peneiras. O cenário repete-se, por esta altura, em várias praias do norte de Espanha, onde se têm juntado dezenas de voluntários para ajudar as autoridades nos esforços para limpar milhões de minúsculas bolas de plástico que estão a inundar a costa espanhola e levaram várias regiões a declarar um alerta de nível 2 por contaminação marinha.
Tudo começou no dia 8 de dezembro, quando, segundo informações divulgadas pelo governo espanhol, um navio perdeu vários contentores de carga a cerca de 80 quilómetros de Viana do Castelo. No acidente, terão caído ao mar mais de mil sacos com cerca de 26,2 toneladas destas bolas com cerca de 5 milímetros de diâmetro e que estão agora a deixar “areais pintados de branco” em Espanha. “É como apanhar grãos de arroz da areia”, lamentam à imprensa espanhola os que estão envolvidos na limpeza das minúsculas bolas de plástico, designadas por pellets.
A Galiza, as Astúrias e a Cantábria começaram por ativar o nível 1 de alerta do Plano Territorial de Contingências por Contaminação Marinha — o menos grave e que prevê tarefas de vigilância e limpeza. No entanto, face à dimensão do problema, elevaram para o nível 2, para poder obter ajudas do governo estatal. Na terça-feira, o País Basco, já na fronteira com França, anunciava a ativação do respetivo plano pelo risco de que este material chegasse à sua costa e, segundo o jornal El País, as autoridades regionais já estão a analisar algumas pellets que foram encontradas desde então na praia La Arena, em Bizkaia. As Canárias seguiram o exemplo e esta quarta-feira também avançaram com a ativação do respetivo plano.
A situação já mereceu um alerta da Comissão Europeia, que sublinhou tratar-se de uma “ameaça para o ambiente” e para a atividade piscatória. Esta quinta-feira, aliás, é discutida em Bruxelas uma diretiva que pretende impor limites à comercialização destes produtos.
A situação no norte de Espanha está já a deixar em prevenção as autoridades portuguesas, atentas caso este material comece a chegar também à costa nacional. Se para já esse cenário não parece provável, segundo disse ao Observador o porta-voz da Autoridade Marítima Nacional e da Marinha Portuguesa, a situação poderá vir a alterar-se, estando a ser ativado um plano de contenção para garantir uma resposta rápida na eventualidade de isso vir a acontecer.
O que são pellets de plástico?
É nome pelo qual são conhecidas as minúsculas bolas de plástico que são o componente base na produção de variados objetos do dia-a-dia, como garrafas de água ou sacos de plástico. Para os fabricantes, estes pellets representam uma opção fácil em termos de comercialização e transporte. Pelo seu tamanho reduzido, de até cinco milímetros, são por vezes chamadas “lágrimas de sereia”.
Não são tóxicas em si, mas são conhecidas por agravar o problema do plástico que chega aos rios e oceanos em todo o mundo. É que, com cerca de cinco milímetros, estas pequenas bolas de plástico facilmente se partem, passando a microplásticos e, fracionando ainda mais, a nanoplásticos.
“Quando ouvi alguém dizer que os pellets não são perigosos, coloquei as mãos na cabeça (…) Que digam que não são tóxicos, pois, isso já depende [da questão] de para quem”, sublinhou em declarações ao jornal El País a bióloga Eva Jiménez-Guri, investigadora da Universidade de Exeter que se dedica a analisar o efeito destas substâncias na vida marinha e que tem vindo a estudar como os microplásticos afetam o desenvolvimento embrionário de vários animais marinhos.
Várias entidades têm procurado estudar a dimensão deste problema. Segundo dados do EU Monitor, estima-se que só no ano de 2019 se tenham perdido no meio ambiente entre 52.140 e 184.290 toneladas. Já um relatório da Pew Charitable Trusts, citado pela agência Reuters, estima que dez biliões de pellets de plástico contaminam os ecossistemas marinhos todos os anos.
Qual o impacto das pellets na vida marítima?
Os efeitos sentem-se de modo direto e indireto nos seres vivos. “Quando falamos de poluição estamos a falar, obviamente, de um impacto direto e neste sentido os animais são fisicamente afetados porque muitos deles ingerem estes elementos estranhos”, começa por explicar o biólogo Élio Vicente. Nestes casos, pode obstruir, por exemplo, o estômago e intestino dos animais que as ingerem e provocar a sua morte.
No entanto, há também que ter em conta os efeitos químicos, esses já a médio e longo prazo. “À medida que estes plásticos se tornam em microplásticos e, depois, nanoplásticos e se vão decompondo nas suas componentes originais que, como sabemos, têm origem no crude, vão trazer impactos para todo o sistema endócrino dos seres vivos”, aponta.
Vários investigadores se têm vindo a dedicar a estudar os efeitos do plástico nos seres vivos. A bióloga Eva Jiménez-Guri tem analisado concretamente o impacto no desenvolvimento embrionário de vários tipos de animais marinhos. “Trabalho com pellets que recupero numa praia em Inglaterra e com os que compro a uma empresa que os importa para fabricar todo o tipo de plásticos. Coloco estas bolinhas na água e deixo-as lá por três dias, depois tiro-as e uso essa água para fazer crescer embriões. Seja com pellets que ficaram no mar ou com os da fábrica, os embriões não se desenvolvem bem”, disse na mesma entrevista ao El País.
Quais os perigos para o ser humano?
Estes plásticos, refere ainda o biólogo Élio Vicente, vão-se introduzindo facilmente ao longo do tempo na cadeia alimentar marinha, nomeadamente de peixes e bivalves e daí é possível chegar até ao ser humano. Daí que a Comissão Europeia já tenha alertado que o plástico que está a dar à costa no norte de Espanha é uma ameaça não só para o ambiente marinho, mas também para atividades económicas como a pesca, ainda que o governo espanhol tenha adiantado que “não existe neste momento nenhuma informação” sobre eventuais riscos para a saúde decorrentes do consumo de peixes contaminados com pellets.
Bruxelas diz que bolas de plástico que estão a dar à costa em Espanha ameaçam ambiente e pesca
“Geralmente, o plástico ingerido pelos peixes está no intestino, que as pessoas não comem. Isso não causa tanta preocupação, mas se houver contaminação química, a quantidade de plástico que passou pelo peixe também é importante”, destacou ainda Jiménez-Guri.
Ainda se está a estudar o impacto que os microplásticos e os nanoplásticos podem ter no sistema fisiológico do ser humano. Há, desde já, vários fatores a ter em conta: nem todo o plástico é igual nem feito da mesma maneira, não se degrada da mesma forma e à mesma velocidade, destaca Élio Vicente. “Sabemos que os nanoplásticos podem rapidamente passar as barreiras celulares e, portanto, entrar nas nossas células, mas ainda está muito por descobrir sobre o impacto que pode ter”, refere o biólogo.
É possível limpar todo o material da costa espanhola?
As últimas informações divulgadas pelo governo espanhol eram de que caíram ao mar mais de mil sacos com cerca de 26,2 toneladas destas minúsculas bolas de plástico. Os primeiros sacos foram identificados a 13 de dezembro em praias da Galiza, na fronteira com o Norte de Portugal, mas só no final da semana passada começaram a chegar à costa da região as bolas de plástico dispersas, já fora de sacos, em grande quantidade.
A vice-presidente da associação ambiental Zero alerta que as operações de limpeza serão extremamente difíceis e que será mesmo impossível recolher todo este material. “São milhões e milhões de pellets que estão a circular. São muito pequenos e é muito difícil conseguir retirá-los agora do ambiente“, alerta Susana Fonseca, que acredita que uma “grande parte” deste material irá permanecer no ambiente.
No mesmo sentido, o biólogo Élio Vicente acrescenta que muitos dos pellets já estarão a ser enterrados no areal. “Existem muitos estudos a nível mundial quando se faz a identificação da presença de microplásticos nas nossas praias e que mostram que se pode encontrar estes materiais a dezenas e centenas de centímetros abaixo da areia onde nós colocamos as nossas toalhas”, refere. Há ainda aqueles que se encontram no mar e que dificilmente se conseguem retirar. “Não estamos a conseguir tirar aqueles que estão ainda na praia dentro de água. E podem estar dentro de água a dois centímetros da linha de maré ou a dez metros ou vinte metros, mas já nós não vamos conseguir remover em tempo útil”, explica.
É pior que um acidente petrolífero?
“Todos nos recordamos de imagens do passado que gostaríamos de apagar”. As palavras da primeira vice-presidente do Governo espanhol, Maria Jesus Montero, em declarações à imprensa espanhola trazem à memória um dos piores desastres ecológicos na Europa: o naufrágio do petroleiro liberiano Prestige, que se afundou no Atlântico, ao largo da Galiza, seis dias após sofrer uma avaria durante uma tempestade, levando a que, durante várias semanas, mais de 63 mil toneladas de combustível fossem derramadas e poluíssem milhares de quilómetros do litoral de Espanha, Portugal e França.
Susana Fonseca, da Zero, destaca que a diferença está sobretudo ao nível do impacto mais imediato que tem um derrame, por oposição a um impacto mais de longo prazo, no caso dos plásticos. “Quando temos um derrame, as espécies que sejam apanhadas por aquele derrame morrem, as pessoas envolvidas na limpeza têm que ter equipamentos especiais e vários cuidados no contacto com as substâncias. No caso dos microplásticos, destas pellets de plástico, não se coloca essa questão, mas, a longo prazo, há todos os outros impactos: vai fragmentar-se mais e mais, vai entrar necessariamente nas cadeias alimentares e depois estas materiais podem vir a absorver químicos e substâncias poluentes”, refere.
Há também uma maior preparação para lidar com acidentes como os de um derrame de petróleo. “O derrame de petróleo, ironicamente, tem uma vantagem: é mais fácil de conter caso aconteça perto da costa e já existem instrumentos, técnicas e equipas preparadas para lidar com isso”, aponta Élio Vicente, tomando como exemplo o POLEX, um exercício de combate à poluição do mar promovido pela Direção de Combate à Poluição do Mar da Autoridade Marítima Nacional.
Os pellets de plástico vão chegar a Portugal?
As autoridades portuguesas estão atentas às toneladas de minúsculas bolas de plástico que deram à costa no norte de Espanha e, para já, não detetaram “qualquer vestígio” na costa portuguesa, segundo revelou na terça-feira uma fonte do Ministério do Ambiente à Lusa.
Ao Observador, o porta-voz da Autoridade Marítima Nacional e da Marinha refere que está a fazer-se uma monitorização das condições meteorológicas e oceanográficas e um cálculo permanente das pellets, com o apoio do Instituto Hidrográfico da Marinha Portuguesa. José Sousa Luís explica que, para já, e de acordo com os modelos de deriva, com base no vento, ondulação e correntes, a probabilidade de chegar à costa portuguesa “é baixa”, explicando que esse cenário pode mudar caso as condições meteorológicas e oceanográficas se alterem.
“Não se prevê que [as pellets] cheguem, ou pelo menos, [que não cheguem] em grandes quantidades.” Mas os cenários traçados são voláteis. “Daqui a uma hora ou duas, a situação pode reverter ou existir alguma alteração significativa das condições meteorológicas e isso pode mudar, por isso é que estamos a fazer uma monitorização permanente”, refere José Sousa Luís.
O hidrobiólogo Adriano Bordalo e Sá, do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar da Universidade do Porto, não tem dúvidas de que esta “maré de plástico” pode mesmo afetar Portugal. “Neste momento, as correntes dominantes são para norte. É provável que estas partículas cheguem a Portugal lá para a primavera, quando mudar a direção das correntes, e se não tiver dado à costa todo o conteúdo (dos contentores que transportavam o plástico) que caiu ao mar, embora com um impacto menor”, disse à agência Lusa.
O que está Portugal a fazer por prevenção?
Para além da monitorização das condições meteorológicas e oceanográficas, o porta-voz da Autoridade Marítima Nacional explica que se está a ativar um plano de contenção, que está previsto a nível nacional, para combate à poluição marítima. “Está a ser ativado esse plano de forma a ter equipas prontas para recolha das bolas, caso estas cheguem à costa portuguesa”, garante José Sousa Luís. Este plano envolve não só elementos da Autoridade Marítima Nacional, mas também várias outras entidades, incluindo autarquias e órgãos da proteção civil.
Para Élio Vicente, importa fazer uma maior aposta na prevenção destes acidentes, na sensibilização da população para a sustentabilidade e numa aposta das alternativas ao plástico. “Este caso, destes milhões de pequenas partículas que agora foram perdidos, é literalmente uma gota no oceano”, alerta, acrescentando que a introdução de plásticos nos ecossistemas aquáticos e nas cadeias marinhas terá sempre um impacto a curto, médio e longo prazo independentemente do local. “Pode demorar mais tempo a ter um impacto em Portugal dos portugueses, mas tem um impacto”, acrescenta.
“Neste momento estamos preocupados porque isto está perto da nossa costa, mas muito mais materiais deste género, microplásticos e nanoplásticos, vão parando todos os anos ao meio ambiente. Isto acontece pelo mundo inteiro e são mesmo muitos milhões de toneladas que todos os anos são introduzidas inadvertidamente ou deliberadamente ou por encolha nos nossos oceanos”, sublinha.