“Em Portugal olhamos muito para o copo meio vazio mas eu apelo a que olhemos para o copo meio cheio – e continuemos a enchê-lo“, afirmou Mário Centeno esta sexta-feira, na apresentação do mais recente Boletim Económico trimestral do Banco de Portugal, onde se reviram em alta as projeções para o crescimento económico (já em 2023) e se passou a prever uma inflação um pouco menos intensa.

O governador do Banco de Portugal reforçou, porém, o alerta para que a descida de vários produtos e matérias-primas nos mercados internacionais “a breve prazo” se reflita mais nos preços pagos pelo consumidor – caso contrário, estaremos perante margens de lucro das empresas que não se “compadecem” com o momento atual e revelam uma visão “míope”, privilegiando os ganhos de curto prazo em detrimento da sustentabilidade da economia a longo prazo.

Embora reconheça que há muita incerteza sobre a evolução do conflito na Ucrânia e, por outro lado, admita que surgiram “fricções” no setor bancário internacional, Mário Centeno transmitiu uma mensagem profundamente otimista sobre as perspetivas económicas de Portugal. O crescimento de 1,8% que passou a ser previsto pelo Banco de Portugal representa um aumento relevante, de três décimas, em relação aos 1,5% que tinham sido previstos em dezembro. Esse crescimento, a par de uma inflação um pouco menos intensa (5,5% versus 5,8% previstos há três meses), justifica a “leitura benigna e positiva” da situação económica que Centeno apresentou aos jornalistas esta sexta-feira.

O governador do Banco de Portugal escusou-se a comentar as medidas anunciadas pelo Governo poucas horas antes (e que levaram a que a apresentação do Boletim Económico fosse alterada das 11h00 para as 15h30), por não conhecer o pacote “em detalhe”. Disse apenas que as medidas “que forem temporárias, focadas no desafio” atual e “que não gerem contravapor com a política monetária são bem-vindas”. Porém, questionado pelo Observador, Centeno comentou, um pouco mais em detalhe, as medidas já publicadas em decreto-lei e que trazem apoios extraordinários na área da habitação, inclusive com bonificações de juros.

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“Nós consideramos que aquele decreto-lei cumpre os princípios [que o BCE tem vindo a defender]: são medidas temporárias, são focadas num conjunto de famílias que sofrem uma vulnerabilidade específica associada ao aumento das taxas de esforço”, respondeu Centeno. “Não sei quantas famílias vão aceder. Não sei qual é a extensão da sua aplicação mas os princípios parecem-me estar a ser cumpridos“, acrescentou.

Economia vai crescer mais do que o previsto em 2023. Banco de Portugal projeta crescimento de 1,8%

Margens de lucro excessivas? Centeno pede às empresas que não sejam “míopes”

O cenário “benigno” e o ímpeto “muito positivo” que Mário Centeno vê na economia, suportado na análise do Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal, tem, porém, uma ameaça que o governador vê como clara – o risco de que a “reversão do choque de preços que houve há um ano” não se repercuta de forma suficientemente integral e/ou rápida nos preços pagos pelo consumidor.

Não foi a primeira vez que Centeno se referiu publicamente à questão das margens de lucro das empresas, mas foi o seu alerta mais contundente sobre esta matéria. Abusar nas margens de lucro, bem como exigir aumentos salariais que superem o ritmo de crescimento da produtividade, “é um comportamento míope, que no médio prazo vai reverter qualquer ganho, quer salarial quer de margens de lucro, que quer trabalhadores quer empresas possam almejar com essa estratégia”.

Os preços internacionais das matérias-primas estão a cair, de forma generalizada. Temos quedas de mais de 10%. A eletricidade na Alemanha estava a cair cerca 65%, há uns dias. É importante que estes preços se traduziam no preço ao consumidor”, atirou Mário Centeno.

Este “não é um processo para o qual precisemos de vigilantes”, afirmou o governador do Banco de Portugal, mas é necessário, sim, uma “coordenação” entre os vários intervenientes para garantir que há uma descida dos preços pagos pelos consumidores: “Estas peças ou funcionam todas em conjunto ou põem em causa todo o exercício”, apontou Centeno, argumentado que fomentar a inflação dessa maneira não é algo que coloque (apenas) os bancos centrais sob pressão – “coloca pressão sobre todos nós”, os cidadãos.

E de que empresas se está a falar, perguntou o Observador: são setores “transversais” à economia portuguesa, respondeu Centeno, alertando que não se pode apenas olhar para o crescimento das margens de lucro de 2022 porque isso pode dizer respeito a uma recuperação face a uma quebra maior nos anos da pandemia.

Défice. Centeno elogia mas quer mais investimento financiado pelo PRR (e menos pelos impostos)

A conferência de imprensa de Centeno ocorreu poucas horas depois de se confirmar o défice de 0,4% em 2022, um resultado que o governador do Banco de Portugal quis “saudar” mas que salientou que não é garantia de segurança no futuro. “Os bons resultados devem continuar a ser prosseguidos, porque são a única garantia que Portugal tem de poder fazer face àquilo que são as decisões que devemos tomar face ao futuro”, afirmou Centeno, que lamentou o facto de cerca de 80% do investimento público nos últimos anos estar a ser financiado pelo Orçamento do Estado, “ou seja, por impostos”, e não pelos fundos comunitários (incluindo o Programa de Recuperação e Resiliência, o PRR).

Isto é “algo que preocupa, mais do que o ritmo de execução do PRR”, disse Centeno, garantindo ter “uma forte expectativa de que este número baixe, para aliviar as contas públicas”.

Brilharete confirmado. Défice de 2022 ficou nos 0,4%

Sobre o registo do défice mas não só, defendeu Centeno, é preciso que os portugueses notem o “caráter muito ímpar do que Portugal conseguiu fazer, no contexto europeu”. “Muitos países na Europa não conseguiram os resultados que Portugal conseguiu“, sublinhou o governador do Banco de Portugal, retomando a analogia com a tendência que diz existir no país para que se veja sempre mais o copo meio vazio do que o copo meio cheio – “assumindo, claro, que aqui falamos no copo cheio como uma coisa boa”, clarificou, com satisfação.

Mesmo garantindo Centeno que não quer ver apenas o copo meio-vazio, foi apresentado aos jornalistas um “cenário adverso” para a economia – uma simulação menos bafejada pelo otimismo mas que, embora não tenha sido incluída no documento oficial, foi trazida para a conferência de imprensa.

Neste possível “cenário adverso”, o PIB não cresceria 1,8% em 2023 – como agora se passou a prever – mas apenas 0,6%. Também nesse cenário, a taxa de desemprego aumentaria para 7,4% em 2023 e subiria para 7,5% em 2024 – valores algumas décimas mais elevados do que previsão “central” mas que, ainda assim, não apontariam para um azedar grave do mercado de trabalho em Portugal. O cenário adverso não foi colocado, oficialmente, no Boletim Económico porque o BCE não divulgou, ele próprio, um cenário adverso para a zona euro.

Caso o otimismo se confirme, porém, a expectativa é que “a taxa de desemprego aumenta para 7% em 2023, reduzindo-se nos anos seguintes, para se fixar em 6,7% em 2025″. Assim, iriam criar-se as condições para que o consumo privado aumente 0,3% em 2023, num contexto de “crescimento contido do rendimento disponível real [ajustado à inflação] e pela recuperação da taxa de poupança”.

Centeno afirmou que os portugueses ainda não esgotaram a “almofada” de poupança conseguida na pandemia, embora ela esteja a ser usada para mitigar o impacto da inflação e das prestações de crédito (com taxa variável). Mas há que cuidar, avisou, que o grau de incerteza de famílias e empresas é frágil e pode, admitiu, levar a uma mudança de comportamentos de consumo (e poupança) que penalize a atividade económica de forma inesperadamente gravosa.

De um modo geral, porém, o Banco de Portugal constata que no horizonte da projeção (até 2025), a economia portuguesa “retoma algumas das trajetórias [boas] que existiam antes da pandemia”. Nas contas do Banco de Portugal, o crescimento acumulado até 2025 será de 5,8% – um crescimento que se baseia na formação bruta de capital fixo (investimento), que crescerá 12,1% e nas exportações há um aumento de 12,7%. Já o consumo privado cresce “apenas”, disse Mário Centeno, 2,6%.

A composição do crescimento é compatível com um crescimento sustentável da economia portuguesa nos próximos anos“, rematou o governador do Banco de Portugal.

A revisão em alta das projeções do Banco de Portugal já tinha sido sinalizada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações feitas a partir da República Dominicana na noite de quinta-feira.

Questionado pelo Observador na conferência de imprensa, sobre a oportunidade da revelação antecipada feita por Marcelo, Centeno disse que não tem “por costume comentar as declarações do sr. Presidente da República, não me coloquem nessa difícil tarefa”. “Mantemos uma extraordinária relação institucional com o Presidente Marcelo e vamos mantê-la”, concluiu o governador do Banco de Portugal.