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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Margrethe Vestager: "Se crias tecnologia que tira vantagem das pessoas, então se calhar a Europa não é para ti"

Depois de ameaçar novamente a Apple com uma multa, a vice-presidente da Comissão Europeia falou com o Observador sobre regulamentação das Big Tech, inteligência artificial, Trump e do "sofagate".

Tem sido a voz crítica da Europa contra as Big Tech e o rosto por detrás das multas milionárias que envolvem nomes como a Apple ou a Google. Ao Observador — à margem da Cimeira Social, que decorre no Porto esta sexta-feira e sábado –, Margrethe Vestager deixou mais um alerta às grandes empresas tecnológicas: “Se queres desenvolver uma tecnologia que tira vantagem sobre as pessoas, então, se calhar, a Europa não é sítio para ti”. A vice-presidente da Comissão Europeia e responsável pela pasta da Concorrência tem nas mãos propostas legislativas para regulamentar não só as empresas digitais, como também a inteligência artificial.

Sem descartar novas investigações na área do abuso de posição dominante do mercado a empresas como a Google ou a Amazon — a Apple foi alvo de uma recentemente –, diz que é possível chegar a um acordo global de impostos sobre as tecnológicas “talvez algures este ano”, apesar de o processo ter sido “muito lento” e de se sentir “impaciente quanto à justiça fiscal”. Sobre a suspensão das contas de Donald Trump das redes sociais, Vestager refere que “tende a compreender porque é que o fizeram”, mas que é preciso ter um “mecanismo de queixas transparente, que proteja a liberdade de expressão”.

Quanto ao “sofagate”, que envolveu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a comissária dinamarquesa diz ter sido um “abre olhos importante para o quão cuidadoso é preciso ser para haver certeza de que aqueles que nos representam são vistos como iguais que são”.

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Vou começar por perguntar-lhe sobre o recente caso que envolve o Spotify e a Apple. Disse que este não vai ser o único relacionado com a App Store [loja de aplicações da Apple]. Isto quer dizer que a seguir também vai atrás da Google e da Amazon? 
Quando se compra um iPhone, não há mais nenhum lugar a que se possa ir, além da App Store, para se ter um serviço de streaming de música. É por isso que isto se torna num problema quando há esta taxa de comissão de 30% em apps [praticada pela Apple] que competem com as próprias aplicações da Apple. E isto é o que se passa no streaming de música. Empresas como o Spotify, Deezer ou a SoundCloud não podem dizer aos seus subscritores que podem apenas ir ao site para, assim, não terem de pagar a comissão. Podem ter um desconto direto de 30% só por irem ao site. E [estas empresas] não têm autorização para dizer isso aos seus clientes. E, aí, claro que fica um pouco difícil competir de forma justa. Estamos a olhar para os outros gigantes também, mas isto é onde temos um caso específico, com a Apple App Store.

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Mas de certa forma, estas empresas [Google ou Amazon] comportam-se de forma semelhante. Com pequenas nuances, mas também é o que fazem. Por isso, isto quer dizer que também vai haver uma investigação como esta aos concorrentes da Apple? 
Vemos o mesmo que também vê, que, algumas vezes, [estas empresas] fazem coisas semelhantes. Não o mesmo exatamente, mas coisas semelhantes. E isto é a razão de termos “chamado a cavalaria” para propor uma legislação também. Isto para que as coisas que vemos nos casos da concorrência fiquem claras de uma vez todas: não façam isto. Se for um gatekeeper [algo como “porteiro de conteúdos, em português], alguém que fiscaliza a porta para dizer se [os outros] podem ou não estar no mercado, então, aí há um número de coisas que não poderá fazer e um número de coisas que terá de fazer. Por exemplo, uma das coisas que tem de fazer é estar aberto para que outras lojas de apps estejam presentes nos gadgets [aparelhos]. Para que, se não se estiver feliz com os preços numa loja de aplicações, possa fazer o download de outra loja e ir até lá para [obter] novas aplicações. Acontece o mesmo quando não se gosta de um supermercado, pode-se ir a outro.

Ouça aqui a entrevista íntegra (versão em inglês e não traduzida)

Impostos sobre as tecnológicas: “Talvez este ano”

Em 2020, a Apple ganhou o caso interposto pela Comissão Europeia relativamente aos quase 15 mil milhões euros em impostos. Disse muitas vezes publicamente que gostava que existisse uma espécie de imposto global para a indústria tecnológica. Pensa que este é um problema para este seu objetivo? Ainda é possível ter uma discussão relativamente a um imposto global sobre isto? Não é uma utopia?
Obviamente que pedimos recurso quanto à decisão sobre a Apple. Por isso, agora o Tribunal de Justiça da União Europeia vai olhar para isso. Durante muito tempo disse que [este processo] é muito lento. E estou impaciente quanto à justiça fiscal, que pensava que também que era muito lenta. Contudo, agora que os EUA mudaram as instruções [signals, em inglês], pode realmente acontecer termos um consenso global quanto a estas questões fiscais.

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E quando é que acha que isso pode acontecer?
Dedos cruzados, talvez algures este ano. Porém, nada é adquirido no que toca a impostos, como toda a gente sabe.

Mas estamos a falar de um futuro no curto prazo, então. 
É num período curto, mas estamos a trabalhar nisto há muito, muito tempo.

Numa Web Summit passada disse algo que me ficou na memória. Pediu ao Facebook mais ação em vez de palavras. Sente que conseguiu isso?
De facto, temos visto algumas mudanças. Infelizmente, não são mudanças que signifiquem que já não temos trabalho a fazer na aplicação do direito da concorrência. Mas temos tido uma grande cooperação com as plataformas durante a Covid-19, para garantir que as pessoas vejam factos verdadeiros e informação verdadeira, em primeiro lugar, se estiverem a procurar informação sobre a Covid-19. E acho que isso é uma coisa boa. E também o trabalho [que têm feito] para retirar algumas das coisas mais ultrajantes. Estou a falar de coisas horríveis, horríveis que aparecem por lá, como decapitações, e incitamento ao terror, esse tipo de coisas. Por isso, estão a fazer alguma coisa. A Apple está a trabalhar agora no que toca à privacidade, perguntando ao utilizador se deixa que certa app o rastreie mesmo quando não a está a utilizar. Penso que há coisas interessantes. Mas para garantir que é uma regra geral para todos, penso que a regulação é importante.

E uma das coisas que mudaram, que foi completamente nova, foi todas as redes sociais terem banido Donald Trump. O que é que pensa sobre isto? Devem as empresas ter este poder e tomar este tipo de decisões?
Na verdade, tendo a compreender porque é que o fizeram. Como sabe, como em qualquer outro serviço, eles têm termos e condições. Por isso, de acordo com esse argumento, compreendo que há uma altura… [em que é preciso tomar uma decisão]. Até porque agora estamos a pedir-lhes para que obedeçam a nova legislação. É preciso que se perceba que podem fazer isso [banir] se o utilizador fizer algo que seria ilegal no mundo offline, como partilhar imagens de abuso de crianças ou receitas para bombas, coisas horríveis, Mas quando se chega a áreas mais difíceis como o discurso de ódio… Em alguns países o discurso de ódio é ilegal. Se um post for retirado, [estas empresas] têm de contar às pessoas e elas têm de ser capazes de se queixar sobre isso, para ficarmos, então, com uma espécie de sistema de mecanismo de queixas transparente, que proteja a liberdade de expressão. Porque, nas áreas cinzentas, há coisas que eu consideraria como sendo danosas e profundamente ofensivas, mas que podem ser legais. Penso que é importante que eles [as empresas] criem [regras], mas que as criem dentro de uma estrutura em que exista transparência de procedimentos para proteger a liberdade de expressão.

A segunda coisa que lhes estamos a pedir [às tecnológicas] é que façam uma espécie de análise de risco sobre como é que os seus serviços funcionam. Para garantir que, caso os repensem, estes sistemas podem implicar um risco para a democracia. E que possam, então, implementar coisas para lidar com esses riscos. As plataformas, as redes sociais, tudo isso, são muito úteis em inúmeras circunstâncias, mas apenas se não enfraquecerem as democracias.

Mas está confiante o suficiente de que estas plataformas vão ser recetivas a todo este processo de transparência e capazes de responder às medidas que a União Europeia pode pôr em vigor?
A Europa é um mercado muito interessante. É um bom sítio para se estar se se quiser fazer negócios e acho que há uma regra geral. Se o Parlamento Europeu e o Conselho decidirem, juntos, nestas duas propostas de legislação [Digital Services Act e a Digital Market Act], é claro que dou como garantido que estes negócios as vão adotar.

Uma das suas grandes missões é mudar a forma como as grandes tecnológicas operam. Está a lançar a Digital Services Act e a Digital Market Act. Está confiante de que estas duas propostas vão servir os seus objetivos e que as empresas tecnológicas não vão encontrar buracos legais para as evitar?
Bom, acho que o mundo seria um lugar melhor se toda a criatividade fosse posta ao serviço da produção de algo que seguisse a lei e servisse bem a democracia. Mas, infelizmente, a criatividade também serve para encontrar buracos legais e fazer coisas que, na verdade., não são legais. Não acho que vamos ficar sem trabalho, ainda acho que há necessidade de aplicarmos uma lei da concorrência vigilante. Mas também acho que as coisas vão ser melhores, vai ser mais fácil para as empresas mais pequenas apresentarem os seus produtos a potenciais clientes. E, se for esse o caso, então também é mais fácil encontrar financiamento para os seus processos de inovação. Porque a alternativa é a que não se vai querer encontrar inovação se esses produtos inovadores nunca tiverem oportunidade de chegar aos consumidores.

Está a lançar uma regulamentação para a inteligência artificial, que é pioneira, tal como foi o RGPD, mas já há algumas críticas em relação à recolha de dados biométricos e eventual vigilância pública. Não seria mais fácil excluir todas as exceções? As pessoas podem sentir receio em relação a um eventual abuso destas mesmas exceções. Corremos o risco de cair numa espécie de sociedade Big Brother?
Isso é exatamente o que queremos evitar. Por uma matéria de princípio, não é permitido usar dados biométricos remotamente para identificar todos aqueles que passem numa praça pública ou que vão a um espaço público. Porque este não é o tipo de sociedade onde queremos viver. Mas queremos criar algumas exceções se um juiz disser: “Ok, tudo bem, precisas mesmo de encontrar este terrorista ou esta criança que está desaparecida”. Então, podes usar esta tecnologia durante um certo período de tempo e acho que isso é justificado. Também acho que, pelo menos para mim, enquanto cidadã, isto é um bom equilíbrio. Por uma matéria de princípio não estou a ser identificada quando estou a andar pela cidade, mas se alguma coisa muito, muito séria acontecer, então, as nossas forças policiais têm ferramentas [que podem usar].

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É mulher, é vice-presidente da Comissão Europeia. O que tem a dizer sobre o “sofagate” que se passou recentemente?
É muito interessante como a mobília pode desempenhar um papel na geopolítica. Acho que é um abre olhos importante para o quão cuidadoso é preciso ser para haver certeza de que aqueles que nos representam são vistos como iguais que são.

Alguma vez viveu algo semelhante no universo tecnológico?
Se vivi já esqueci há muito tempo. Porque não costumo guardar esse tipo de coisas. Acho que, às vezes, se se começar a guardar [este tipo de episódios] na memória, afundamo-nos em vez de dizer: “Não! Vai, vai vai”. E também porque acho que só assim podemos mudar a cultura, tendo cada vez mais mulheres nestes lugares. Porque essa é que é mesmo a mudança cultural: quando se tem um equilíbrio de género. E sinto na Comissão Europeia que é difícil fixar o ponto, mas há uma atmosfera diferente quando [no mesmo sítio] metade são homens e metade são mulheres.

Em relação à TAP, o que é que se está a passar? Porque é que ainda não há plano de reestruturação?
Para a TAP, há dois processos paralelos. [A TAP] recebeu uma compensação pelos danos que teve, como a maioria das companhias aéreas, porque, devido aos confinamentos, foram muito poucas as pessoas que viajaram. E estão a ser compensados por isso. Há algum tempo, também tiveram uma operação de resgate e, quando se tem este tipo de ajuda, tem de se reestruturar a empresa para se certificar que é uma empresa forte e viável para o futuro. E estamos no processo de lidar com esta parte, no momento. Estamos a cooperar muito bem com as autoridades portuguesas, por isso, espero que muito em breve tenhamos um resultado.

Tendo em conta o Plano de Recuperação e Resiliência europeu, Portugal foi o primeiro país a entregar o plano. Isto pode ter algum impacto na altura de receber os fundos? Pode ser o primeiro também? Já há alguma decisão tomada neste sentido?
O que é importante agora é que todos os Estados-membros ratifiquem [o plano], para que possamos ir ao mercado e pedir emprestado todo este dinheiro. Ainda temos alguns países que não o fizeram e estamos mesmo, mesmo, mesmo a encorajá-los para que o façam, porque, então, conseguimos ir ao mercado antes do verão. E, aí, claro, todos os países que estiverem preparados, com planos forte, podem ter acesso os seus fundos.

Tem estado a implementar várias medidas e regulamentações na União Europeia, não receia que este tipo de iniciativas possa restringir o empreendedorismo e a inovação na Europa? Ou acha que isso não vai acontecer?
Claro que restringe as pessoas que querem inovar em tecnologia para [fomentar] uma sociedade vigiada. Se queres criar uma tecnologia que tira vantagem das pessoas, então, não, se calhar a Europa não é realmente um sítio para ti. Mas a todos os outros — e há tantas coisas tão maravilhosas que se pode fazer com tecnologia –, dizemos: “Venham, venham [para a Europa]”.

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