Foi Penélope, a heroína grega que se manteve fiel ao marido, Ulisses. Foi a “declamadora do povo”. Foi a mulher na sombra de Mário Soares. Nas palavras da própria, na luta, esteve ao lado dele. Nas palavras dele, era a mulher que o amava da forma que deveria ser o amor, com compreensão. Nas palavras dos filhos, era a mulher de um amor incondicional. Foi atriz e com isso aprendeu a esconder as emoções. Foi professora e com isso ganhou (ainda mais) tolerância. Maria de Jesus Barroso viveu 90 anos, virou um século, deitou abaixo uma ditadura e foi a mulher que viveu a vida de um homem: 27 anos de luta política de prisão e exílio, quatro anos de governo, dez anos como Presidente da República e toda a vida político. Maria também.
A vida de uma mulher, desta mulher, não se resume à vida do marido. Não pode. Não o foi. Mas ficou sempre marcada por ela. Foi Maria Barroso que assim o aceitou quando a 22 de fevereiro de 1949 assinaria o contrato para 66 anos. E fê-lo sinalizando aquilo a que estava disposta: Mário Soares estava preso no Aljube e Maria Barroso estava grávida de três meses do filho mais velho, João Soares. – Isabel Soares nasceria mais tarde. Casaram-se sem pompa, mas com muita circunstância. Afinal, o regresso de Mário Soares à prisão quando ainda não tinha um quarto de século de idade, depois da campanha para as presidenciais de Norton de Matos, deu-lhe maturidade política, ideológica e também pessoal e emocional.
Foi esse contrato com o homem que viria a ser Presidente da República que ofuscou o caráter interventivo da mulher que, segundo as palavras do marido, era conhecida por ser a “declamadora do povo”. O selo tinha-lhe sido atribuído por ser uma oposicionista ao Estado Novo, e Maria, atriz no Teatro Nacional D. Maria II, viu a intervenção política na CEUD atravessar-se no caminho da representação e acabaria por ser despedida.
Sair do Teatro abriu-lhe as portas da universidade, onde foi estudar Ciências Histórico-Filosóficas, o canudo que lhe permitiu dar aulas e mais tarde dirigir o Colégio Moderno. O colégio da família de Mário Soares foi a casa onde trabalhou quase toda a vida e onde tinha estado na véspera de uma queda, que a levou ao Hospital da Cruz Vermelha, onde faleceu.
O trabalho enquanto professora permitiram à família viver durante os anos em que Mário Soares teve uma intensa atividade política como opositor ao regime. Numa primeira fase como opositor (nos movimentos estudantis e também na campanha de Norton de Matos), depois na luta declarada pelo fim da ditadura que o levou várias vezes à prisão, ao exílio em São Tomé e Príncipe e também à fundação do PS. Maria Barroso foi a única mulher a estar presente e a ter o nome na pedra na criação do partido, que nasceu em 1973 em Bad Munstereifel. Apesar de ter votado contra a fundação do partido por achar que não era altura de o fazer.
A filha acreditava que a mãe poderia ter sido mais, poderia ter ido mais longe não fosse a aliança que a ligou a Soares. “Se ela não tivesse casado com ele, teria tido outro tipo de atividade, mas acho que se apagou, e sempre nos passou isso. Ela tinha-lhe um amor incondicional, e nós tínhamos até um bocadinho de ciúmes”, disse a filha em entrevista para a biografia de Mário Soares de Joaquim Vieira.
Em cartas a Mário Soares, durante o longo período em que estiveram afastados pela luta anti-fascista, Maria Barroso auto-apelidava-se de Penélope. A ideia era só uma: dizer a Mário Soares que continuava ali, a tratar de tudo e à espera dele, tal como em tempos fez a deusa grega. Tinha carregado nesse apelido todo o sentimento de injustiça que não conseguia disfarçar. Poderia ter sido mais, não tivesse ficado na sombra do marido. “Quando a história é contada depois, as mulheres ficam na sombra. Mas, quando lutam, estamos ao lado deles”, disse a própria também no livro de Joaquim Vieira.
Chorar é para e por dentro
Maria já sabia o que era o exílio. Sabia-o desde que o pai tinha tido bilhete de ida para o Forte de Angra do Heroísmo, nos Açores. Viu mais tarde, já com Soares Presidente, o nome “Tenente Alfredo Barroso” escrito numa parede, durante uma visita enquanto casal presidencial. Maria também sabia, assim, o risco quando casou com Mário Soares. Mas isso não evitou o choque que teve quando foi chamada à sede da PIDE para receber a notícia de que o marido, preso político, tinha como destino um exílio sem data de regresso para São Tomé e Príncipe. Conteve-se. “Foi como se um raio caísse dentro de mim, uma coisa terrível, uma sensação de mágoa, vontade de gritar, chorar, mas contive-me muito. O meu filho é que desatou a chorar e se agarrou a mim. Lembro-me de que eu lhe disse uma frase de que nunca mais me esqueci: ‘João, é preciso aprender a chorar para dentro'”. Só chorou para fora de raiva e tristeza quando saiu da António Maria Cardoso e chegou a casa.
A curta carreira como atriz tê-la-á ajudado no controlo das emoções. Mas fora num descontrolo que conheceu Mário Soares. Sentada num banco na Faculdade de Letras chorava por ter faltado a uma cadeira, Mário passou e sorriu-lhe. Só mais tarde começaram a namorar.
Precisou dessa agilidade facial muitas vezes na vida. Durante todo o tempo do exílio de São Tomé ou durante o período que se seguiu de intensa atividade política do marido fora das fronteiras portuguesas. Soares diz que Maria nunca se queixou. Mas queixava-se volta e meia, sim. Depois, arrependia-se. As descargas emocionais contidas eram vertidas em letras e palavras em cartas dirigidas a Soares. Aqui fica um excerto de uma delas:
“A vida é uma coisa de tal modo complexa que eu, muitas vezes, me pergunto se vale a pena andarmos para aqui a representarmos a comédia da felicidade. O coração dos homens é demasiado pequeno para conter o amor verdadeiro que é grande e duradoiro, não achas? Portanto há que vê-lo nas suas pequenas dimensões e não fazer exigências a que ele não poderá corresponder”, escrevia numa das muitas cartas que foram posteriormente editadas em livro.
Para Maria Barroso, durante estes anos, foram anos a cuidar dos filhos, da casa e do Colégio Moderno. Foram também anos em que a dada altura também houve dificuldades – sobretudo durante o exílio forçado de Mário Soares, em que nenhum dos dois conseguia trabalhar. Maria esteve durante anos impedida de ser professora e até diretora do Colégio Moderno, apesar de tratar de tudo nos bastidores. Chegou a ser interrogada duas vezes, mas nunca foi presa.
Durante os longos anos da década de 60 e 70, sobretudo, várias foram as fases do casamento entre Mário Soares e Maria de Jesus Barroso.
Soares era o centro, mesmo não estando em casa. Maria de Jesus segurava as pontas e esse trabalho doméstico, mas também profissional, é reconhecido pela família. “Nós [os filhos] não reclamávamos propriamente, e também a minha mãe nos fez ver as coisas de forma a protegê-lo sempre: ele estava a tratar de outros assuntos e, portanto, tudo em casa era em função dele, das necessidades dele, dos problemas dele, e desde muito cedo fomos habituados a ver que tínhamos de aceitar; e aceitávamos, porque ele estava a trabalhar para todos nós, pelo país pelos interesses superiores. Ela transmitia um bocadinho essa mensagem”, conta Isabel Soares.
O reconhecimento partia dos filhos, mas também do próprio Mário Soares. Apesar dos altos e baixos de todos os relacionamentos, foram mais de 60 anos de convivência e para o ex-Presidente da República, a mulher foi essencial para manter o casal unido.
“A Maria de Jesus sempre me acompanhou com compreensão e tolerância. Não direi com agrado; ela gostaria que eu fosse mais caseiro. A maneira mais inteligente de preservar o casamento é que cada um aceite o outro tal como é e não o queira à sua imagem e semelhança. O amor, quando não é apenas o puro egoísmo da satisfação dos sentidos, não é senão isso mesmo: uma forma superior de compreensão e de aceitação”, disse Soares numa entrevista a Maria João Avillez.
Com a democracia, a vida de Maria de Jesus não ficou menos atribulada. Afinal, a política estava-lhe no sangue e tornou-se até tão importante quanto as artes. Ao longo dos anos, foi perdendo família. Ficou com uma irmã viva até ao fim, de que, disse, era muito chegada.
Com o tombar da ditadura, Soares começou o seu caminho no Governo. E ela ficou na sombra. Depois, foram anos a acompanhar o marido durante os dez anos em que este esteve na Presidência da República.
Ainda no Palácio de Belém, fundou a Fundação Pro Dignitate e mais tarde tornou-se também presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, ligação que manteve até 2003. Foi essa ligação à Fundação que a fez ir para o Hospital da Cruz Vermelha no dia da queda.
Morreu a primeira-dama. “Valeu a pena ter vivido”.